A morte, a vida, a
arte...Gilberto Gil passou sete décadas fazendo perguntas a si e aos outros.
Não chegou às respostas, mas aprendeu algo importante: fazer mais perguntas
Julio Maria – de O Estado de
S.Paulo
O garoto que vinha naquele trem
direto de Bonsucesso pra depois do ano 2000 chega introspectivo, cheio de
perguntas, mais ‘da terra’ e menos tropicalista que seu outro passageiro,
Caetano Veloso. Gilberto Gil, 70 anos em 26 de junho próximo, não sente falta
da sauna a vapor que fazia suas ideias ferverem em outras eras. Arrisca-se a
dizer que prefere o Gil de hoje. Ao contrário de Caetano e Chico Buarque, que
considera artistas em pleno processo evolutivo de linguagem, ele quer a calma
dos recantos, a serenidade. Seu próximo disco, diz ao C2+Música, será enfim o
álbum só de sambas anunciado há mais de dez anos. Um parceiro sambista, ainda
sob sigilo, será chamado para dividir o projeto com ele. E a produção deverá
ficar nas mãos de Moreno Veloso, filho de Caetano, e de seu próprio filho, Bem
Gil. Com sua obra toda na internet recém-reunida no site gilbertogil.com.br, o
baiano de Tororó diz que não se preocupa em ter respostas para tudo. Mas tem.
"Meu filho disse: 'É
gozado alguém ter orgulho do pai ter sido preso, mas eu tenho orgulho de
você'"
Existe essa história de que o tempo dá sabedoria, serenidade,
equilíbrio..
Caetano diz que quem não morre
fica velho. E quem fica velho amadurece, passa a ter mais escopo, mais visão,
mais clareza, quietude.
Mas isso é bom para o criador? A voracidade não lhe faz falta?
Isso cria uma rarefação da
atmosfera criativa. Na juventude, a atmosfera é densa, saturada de paixão,
interesse, tensão, desejo permanente de apropriação da poesia, da música. Não
sei se o jovem cria melhor, mas cria mais. O tempo tira a sauna a vapor, não há
mais aquele desafio.
A sauna não lhe faz falta?
Olha, para lhe ser sincero eu
até gosto mais hoje, eu me preparei para a velhice. Eu venho ficando velho há
muito tempo, me preparo para a velhice, me preparo para a morte, coisas que não
interessam a muita gente.
Se prepara para a morte?
Entro com tranquilidade em cada
novo portal da vida, sendo que a morte é o último deles. Você entra em um, em
dois, três, quatro, cinco... A morte é o último e faz parte da vida.
Vejamos na hora...
(Risos) Ah, na hora é outra
coisa. Digo lá na última estrofe daquela música (Não Tenho Medo da Morte), como
é? (Repórter cantarola "Se Eu Quiser Falar com Deus"). Não, não é
essa. Essa é sobre Deus, Não Tenho Medo da Morte é sobre mim. Não tem Deus
nenhum na história (risos). "Naquele instante então, sentirei quem sabe um
choque, um piripaque, um baque, um calafrio ou um toque. Coisas naturais da
vida, como comer, caminhar. Morrer de morte matada, morrer de morte morrida,
quem sabe eu sinta saudade, como em qualquer despedida..." Isso é lindo.
Só na hora que vou ver. Quem sabe eu sinta saudade, como em qualquer
despedida...
E você continua não dando a mínima para o que está lá do outro lado...
Sim, porque o que está lá do
outro lado não nos diz respeito. Por isso é que digo que não tenho medo da
morte, mas sim medo de morrer, porque morrer é ato, me dirá respeito, estarei
envolvido naquilo. "Terei que morrer vivendo, sabendo que já me vou."
A felicidade produz menos?
Sei não, os momentos de júbilo
são muito generosos, eles mexem com a fantasia. Me deram muita música de festa,
muita celebração.
Mas não foram nos anos de ditadura, de sofrimento coletivo e social,
que formou-se uma escola de grandes metáforas? Devemos à ditadura a qualidade
poética de nossas letras?
Sim, pelo menos em uma boa
parte. Eu, Caetano, Chico, Edu Lobo, Vandré, Gal, Rita Lee... Vá botando nome
nisso aí. A gente tinha de criar os simulacros disso e daquilo, as metáforas, a
gente tinha que ficar ali fazendo o trabalho que o publicitário faz. Como é que
doura essa pílula, como é que fala da revolta sem dizer o nome dela, como falar
da indignação sem levantar suspeitas?
E aí você vai para o exílio, e isso é um prato cheio para um criador,
não?
Quando me exilei, aquilo tudo
foi-se embora também, foi comigo para o exílio. Exilou-se comigo. Eu não era
como os meninos da militância política, para quem o exílio era classicamente
exílio. Eu era um artista e minha militância era um episódio de minha vida de
artista, não era a essência, não era meu ofício militar.
Mas ali você também ganha um carimbo a seu favor, o de 'exilado'.
Sem dúvida. Ontem mesmo meu
filho disse para mim: "É gozado alguém ter orgulho de o pai ter sido
preso, mas eu tenho um orgulho danado de você ter sido preso, pai". (Em
1976, Gil foi preso por porte de maconha). Ser contra a ditadura era um ato
heroico, era grandioso. O exílio carimbou um passaporte para mim (risos).
Agora dá até parar rir.
Quando fomos para Londres, o
fantasma da prisão era muito recente, a gente tinha medo, ninguém sabia como
seria o futuro do Brasil. Eu pensava em quando poderia voltar, como voltar...
Fiquei 1969, 1970, 1971. E se tudo permanecesse, sei lá por quanto tempo, e se
esse tempo tomasse minha vida toda? Poder sorrir do exílio não era tão possível
no exílio.
Colocar Beatles com Banda de Pífanos de Caruaru, você diz, foi a semente
da Tropicália. A teoria era fantástica, mas a turma não deixou muita gente boa
de fora? Excluir não foi um erro?
Nós pagamos por sermos
radicais. Quem pagou o preço por fazer o que fizemos fomos nós, e um dos preços
foi o exílio. Não flutuamos na superfície da facilidade, da unanimidade, da
grande recepção popular. A Tropicália tinha um preço, mas também tinha um
resultado, um produto. Quem não veio participar não deixou seu peso na
história.
Foi de gaiato que você entrou naquela Passeata Contra a Guitarra
Elétrica (liderada por Elis Regina em 1967, com Edu Lobo e Jair Rodrigues)?
Era um prazer, eu era atraído
por Elis, sonhei em ser namorado dela, me apaixonei, mas nunca disse nada. Eu
participava com ela daquela coisa cívica, em defesa da brasilidade, tinha
aquela mítica da guitarra como invasora, e eu não tinha isso com a guitarra,
mas tinha com outras questões, da militância, era o momento em que nós todos
queríamos atuar. E aquela passeata era um pouco a manifestação desse afã na
Elis.
E foi a maior prova de amor que você já deu a alguém.
(Risos) Sem dúvida a maior que
já dei em minha vida (risos). Caetano não quis participar porque aquilo tinha
um resultado negativo, negava uma série de coisas que a ele interessava afirmar
naquele momento. No meu caso, eu saí desse jogo. Não quis fazer esse jogo, se
eu fosse colocar como termo da equação essas questões e tirar a Elis da equação
eu não teria ido. Mas eu fiz o contrário, eliminei todos os outros termos da
equação e deixei ali só a Elis. Determinei meu ato, pautei meu ato por aquela
questão. A questão era ela. Eu não tinha nada contra a guitarra elétrica.
Ouviu o disco novo da Gal, produzido pelo Caetano? Não estranhou nada?
Não me estranhou nada, primeiro
porque é uma iniciativa do Caetano, faz parte da linha evolutiva dele, que
acontece desde o Estrangeiro, ou se quisermos, desde o Cê.
E como fica Gal?
A Gal está ali, ela sempre foi
uma coadjuvante importante para Caetano, desde Domingo. Na turma baiana, esse
par se fez logo, Gal e Caetano são uma parelha. Caetano não tem inibição
nenhuma em colocar a Gal nesses trabalhos de coadjuvância.
Eles arriscam bem, não parecem estar na desaceleração que você diz
estar aos 70 anos.
Ah sim. E na mesma direção vai
o disco novo do Chico Buarque, que é de progressão de uma proposta. Chico e
Caetano estão em progressão. Eu sou outra pessoa. Ao menos como proposta, não
estou em evolução. Estou no caminho contrário, revisitando recantos da infância,
da festa nordestina.
Seu próximo disco assim?
Vou fazer o disco de sambas
finalmente, mas já falei demais sobre isso, parece que quando falamos não
acontece. Bom, posso te dizer que vou chamar o Moreno Veloso e meu filho, Bem,
para produzir. E que terá um sambista importante. Vamos ver.