segunda-feira, 28 de maio de 2012

Flip - maior evento literário do Brasil – vai de Drummond a Francisco Dantas


Flip homenageia Carlos Drummond de Andrade e traz de volta alguns escritores. Entre os novos homenageados está Francisco Dantas, de Sergipe.
     por Anna Carolina Lementy – da revista BRAVO!
Carlos Drummond de Andrade
A simpatia por estilos variados é a marca que a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) vem tentando imprimir a cada edição. Na décima, a intenção fica mais evidente com a homenagem a Carlos Drummond de Andrade. Embora seu nome esteja mais ligado à poesia, Drummond consolidou uma produção multifacetada, com prosa, crônicas, contos e livros infantis. Sua obra será discutida e celebrada em três mesas de debate, uma exposição e um monólogo criado a partir da correspondência entre o escritor e sua filha.
O jornalista Miguel Conde será responsável pela
programação da Flip 2012 (Foto: Divulgação)
Além de Drummond, a Flip deste ano espera que o público conheça as ideias de outros brasileiros, como Rubens Figueiredo, Francisco Dantas, Zuenir Ventura, Fabrício Carpinejar, João Paulo Cuenca e outros. Ao todo, serão 40 escritores, vindos de 14 países. Mas nem todos são “virgens de Flip”. Retornam à cidade de Paraty, no Rio de Janeiro, os escritores britânicos Hanif Kureishi e Ian McEwan, que fará o lançamento mundial de Serena, seu novo livro, e o autor espanhol Enrique Vila-Matas. Eles participaram das primeiras edições e voltam para comemorar os 10 anos do evento.
Francisco Dantas
Francisco J. C. Dantas, autor de Os desvalidos
Um dos grandes autores brasileiros em atividade, o sergipano Francisco Dantas está na Flip deste ano e fez sua estreia na literatura aos 50 anos de idade, com Coivara da memória (1991). Logo conquistou a admiração de leitores como Benedito Nunes, José Paulo Paes e Alfredo Bosi, que, a propósito de seu livro seguinte, Os desvalidos (1993), resumiu assim o estilo do autor: “A sua prosa alcança o equilíbrio árduo entre a oralidade da tradição (…) e uma dicção empenhadamente literária que modula o fraseado clássico até os confins da maneira”. Sem perder de vista a espontaneidade da fala, a escrita exaustivamente trabalhada apresenta um universo de paixões próximas do registro mítico. O destino de seus personagens, porém, permanece ligado ao fio da história. É com esses elementos que Dantas compõe a trama cerrada de sua obra.
PROGRAMAÇÃO
Jennifer Egan
Ian McEwan e Jennifer Egan, vencedora do prêmio Pullitzer de ficção do ano passado com A visita cruel, debaterão o deslocamento do próprio ponto de vista ao escrever, característica marcante dos dois. “Ambos conseguem ver o mundo pelos olhos de outra pessoa, num processo que exige bastante empatia e capacidade de percepção do outro”, diz Miguel Conde, curador da Flip 2012, durante entrevista coletiva. Mestre em Letras pela PUC do Rio de Janeiro, Conde trabalhou como jornalista no jornal "O Globo" durante oito anos. Ele assumiu o posto dia 1º de outubro do ano passado e começa a trabalhar na programação da nova edição da festa literária, que terá como homenageado o poeta Carlos Drummond de Andrade. Segundo Mauro Munhoz, diretor presidente da Associação Casa Azul, entidade responsável pela organização da Flip, a escolha por Miguel Conde "é uma aposta na inovação e na criatividade”.
Imagem
Jonathan Franzen
Já Vila-Matas e o jovem autor chileno Alejandro Zambra discutirão se a literatura da pós-modernidade está voltada apenas para si mesma – “já adiantamos que não e que o nome da mesa da qual os dois participam, ‘Apenas Literatura’ é totalmente irônico”, afirma Miguel. Miguel também falou sobre a mesa “Entre fronteiras”, que coloca o russo Gary Shteyngart e Hanif Kureishi, filho de pai paquistanês, para discutir a percepção das diferenças culturais. “Eles têm um olhar irônico sobre o tema e esvaziam as ideias mais extremistas”. Outro destaque é a participação do americano Jonathan Franzen, autor do elogiado Liberdade, publicado no ano passado, e o francês Le Clézio, o quinto prêmio Nobel a participar da Flip (já participaram Orhan Pamuk, Toni Morrison, Nadine Gordimer e J.M. Coetzee).
ORÇAMENTO
O orçamento da Flip neste ano é de R$ 7 milhões, 23% maior do que no ano passado, sendo que 44% do montante foi captado via Lei Rouanet. A organização estima que 20 mil pessoas participem do evento, que tem trazido melhorias para a cidade, embora ainda não haja estrutura suficiente para receber tantos turistas (os preços, altíssimos, também estão em desacordo com o que é oferecido). “Antes da Flip, havia meia dúzia de livros em Paraty. Hoje temos bibliotecas nas escolas e um pedido de líderes comunitários para que façamos uma rede de espaços de leitura”, diz Cristina Maseda, coordenadora da Flipinha e moradora de Paraty.
     Informações complementares do G1 e do portal da Flip. Clique aqui para ter acesso à toda programação.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Quadro que exibe genitais do presidente sul-africano é danificado


O quadro original da polêmica. A obra intitula-se “The Spear” (a lança)
e já foi vendida

     Dois indivíduos não identificados jogaram tinta vermelha e preta nesta terça-feira em um polêmico quadro que retrata o presidente da África do Sul, Jacob Zuma, com os genitais descobertos, informou à Agência Efe uma funcionária da galeria na qual está exposto. Segundo esta fonte, os dois indivíduos destruíram a obra do artista sul-africano Brett Murray lançando tinta no rosto e nos genitais retratados e depois a espalharam por todo o quadro. A imprensa local apontou que dezenas de pessoas se reuniram na frente da galeria para aclamar a ação dos dois indivíduos --um professor universitário e um menor--, que se encontram em uma delegacia de Johanesburgo para prestar depoimento. As duas pessoas realizaram esta ação apesar do aumento das medidas de segurança da galeria, após a polêmica gerada pela obra na África do Sul. A Juventude Comunista da África do Sul, ligada ao partido governamental Conselho Nacional Africano (CNA), advertiu que invadiria a galeria para destruir a obra, indicou à Efe o porta-voz do grupo, Mangaliso Khonza.
Dois homens são flagrados cobrindo
com tinta genitais de Jacob Zuma
 retratados em obra polêmica
     O quadro, intitulado "The Spear" ("A Lança"), faz parte da exposição "Deus Salve o Ladrão II" e estava sendo exibido na galeria Goodman de Johanesburgo desde o último dia 10 de maio. O ato de vandalismo aconteceu no mesmo dia em que o CNA apresentou perante um tribunal local um processo pedindo a retirada da obra. Não é a primeira vez que Zuma processa um artista por satirizar sua pessoa: o líder sul-africano iniciou um processo legal contra o famoso Zapiro por várias vinhetas nas quais o presidente abusava sexualmente de uma mulher que representava a Consituição. Murray afirmou que não pretendia ofender a dignidade de ninguém com o retrato de Zuma, que foi recentemente qualificado "para adultos" pelo Conselho de Televisão e Cinema da África do Sul. "É uma sátira humorística sobre o poder político e o patriarcado", afirmou Murray, em palavras divulgadas hoje pelo jornal local "Times".
     O Congresso Nacional Africano, partido no poder na África do Sul, ameaça agir judicialmente contra os autores do acrílico com 1,85 metros, que até já foi vendido e estava em exibição na Goodman Gallery em Joanesburgo. Jackson Mthembu, porta-voz do ANC, refere que o partido “está extremamente incomodado e indignado com a indecência com que Brett Murray e a Goodman Gallery em Joanesburgo estão a mostrar o camarada presidente Jacob Zuma”. “Pedimos aos nossos advogados para entrarem com uma acção no tribunal para retirar o quadro de exposição bem como do site e destruir todo o material promocional”, refere o partido em comunicado.
     Informações da Folha de São Paulo e da revista Africa Today.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Um pouco de Drummond


  Nascido e criado na cidade mineira de Itabira, Carlos Drummond de Andrade levaria por toda a sua vida, como um de seus mais recorrentes temas, a saudade da infância. Precisou deixar para trás sua cidade natal ao partir para estudar em Friburgo e Belo Horizonte.
 Formou-se em Farmácia, atendendo a insistência da família em graduar-se. Trabalha em Belo Horizonte como redator em jornais locais até mudar-se para o Rio de Janeiro, em 1934, para atuar como chefe de gabinete de Gustavo Capanema, então nomeado novo Ministro da Educação e Saúde Pública.
 Em 1930, seu livro "Alguma Poesia" foi o marco da segunda fase do Modernismo brasileiro. O autor demonstrava grande amadurecimento e reafirmava sua distância dos tradicionalistas com o uso da linguagem coloquial, que já começava a ser aceita pelos leitores.
 Drummond também falava sobre temas como o desajustamento do indivíduo, ou as preocupações sócio-políticas da época, como em “A Rosa do Povo” (1945). Apesar de serem temas fortes, ele conseguia encontrar leveza para manter sua escrita com humor e uma sóbria ironia.
 Produzindo até o fim da vida, Carlos Drummond de Andrade deixou uma vasta obra. Quando faleceu, em agosto de 1987, já havia destacado seu nome na literatura mundial. Com seus mais de 80 anos, considerava-se um "sobrevivente", como destaca no poema "Declaração de juízo".
              ASPECTOS DE SUA POESIA:
     Sobre Alguma poesia ,publicado em 1930, o volume apresenta 49 poesias, reunindo produções de Carlos Drummond de Andrade de 1925 a 1930, e está dedicado ao poeta e amigo Mário de Andrade, que publica, no mesmo período, Remate dos Males, obra que viria a dar uma nova conformação à poética do Papa do Modernismo. Alguma Poesia é volume escrito sob o ímpeto da modernidade de 1922, pratica o poema-piada, utiliza os coloquialismos apregoados pela estética, cultiva a poesia do cotidiano, repudiando as tendências parnasiano-simbolistas que dominaram a poesia até então. No entanto, o poema-piada de Drummond é antes um desabafo de um tímido que procura afogar (disfarçar) no humor os sentimentos que o amarguram. No prosaísmo esconde a procura de uma expressão poética autêntica e autônoma e, ao se voltar para o cotidiano, transcende o tempo e o espaço em busca do perene e universal. Dos supostos acima enunciados, pode-se traçar uma espécie de linha temática que Drummond seguirá em Alguma Poesia e que permanecerá durante sua trajetória poética, que, grosso modo, pode ser identificada como se segue, a partir do que o próprio autor sugere como condução temática de sua obra: 1. O indivíduo – "um eu todo retorcido"( Seção que investiga a formação do poeta e sua visão acerca do mundo. Sempre lúcido, discorre com amargor, pessimismo, ironia e humor o que ele, atento observador, capta de si mesmo e das coisas que o rodeiam. Alguns poemas sintetizam a visão do indivíduo, como o poema de abertura "Poema de sete faces" em que vaticina seu destino) 2. A família – "a família que me dei" ( Uma das constantes temáticas de Drummond, presente desde Alguma Poesia até seus versos finais, é a família, sua vivência interiorana em Minas Gerais, a paisagem que marca sua memória. Contrariando o lugar-comum, ao invés de se referir à família como algo que lhe foi atribuído por Deus, o poeta coloca um "que me dei" a analisa suas relações pessoais, consciente de que se assentam na perspectiva pessoal. De modo muito individual, retrata o escoar do tempo, como é possível observar em "Infância", "Família", "Sesta", alguns dos mais significativos poemas de Alguma Poesia.) 3. O conhecimento amoroso – "amar-amaro" ( Com o jogo de palavras amar-amaro, título emprestado de um poema do livro Lição de Coisas, o poeta acrescenta ao substantivo "amar" o adjetivo "amargo", sentimento recorrente em alguns de seus poemas e livros escritos posteriormente. Em Alguma Poesia o tema é tratado com boas doses de humor, sátira ou pitadas de idealismo, como em "Toada do amor", "Sentimental", "Quero me casar", "Quadrilha".. ) 4. Paisagem e viagens (Um grupo de poesias faz anotações sobre viagens, retratando paisagens vistas e vividas, mas também recuperando as influências recebidas da sempre subserviente postura brasileira ante as supercivilizações, como em "Lanterna mágica", "Europa, França e Bahia "). 5. O social e a evolução dos tempos ( Drummond constrói poemas em que contempla a mudança dos tempos, o progresso chegando e invadindo a antiga paisagem, como em "A rua diferente" ou "Sobrevivente".)
·       Rosa do Povo – publicado em 1945, é considerado um livro crucial em meio ao conjunto da obra de Drummond. São 55 poemas escritos durante a Segunda guerra Mundial. Trata-se de um de seus livros mais fortes, tanto poética quanto politicamente.
·       Claro enigma – publicado em 1951 - tem sido considerado o livro ícone da maturidade existencial e artística de Drummond. Além de eterno e insuperável, é também, provavelmente por isso mesmo, extremamente atual.
·       José & Outros poemas – de 1967 – é a reunião de três livros: ‘José’, ‘Novos Poemas’ e ‘Fazendeiro do Ar’, que não constituem uma seqüência no conjunto da obra poética de Carlos Drummond de Andrade. Além da pequena extensão dos três livros, eles foram editados lado a lado por estarem próximos de obras de maior porte e maior importância. O poema José, por exemplo, é considerado como uma das maiores jóias do lirismo da língua portuguesa e uma etapa decisiva na obra do autor. Em ‘Novos Poemas’, chama de imediato a atenção o caráter neutro do título, se levarmos em consideração que ele segue livros fortes como ‘Rosa do Povo’ e ‘Claro Enigma’. Dessa maneira, o autor acentua em ‘Novos Poemas’ uma intenção bem firme de se contrapor a uma poesia de excessos. Em ‘Fazendeiros do Ar’, seu próprio título guarda traços que podem ser associados ao percurso do poeta, na medida em que é possível ler em ‘Fazendeiro’ resquícios da história familiar presente ao longo da obra drummondiana.
·       Corpo – de 1984 – mostra que a poesia de Drummond tem a capacidade de renovar-se sempre. Ela aponta perplexidades e contradições, o espanto, o amargo, o gosto do tempo. Nessa obra o poeta, de certa forma, redime o passado e se redime, salvando num belo poema toda a pureza da sua infância. Faz emergir, assim, o homem maduro em “doce canção de Itabira”. Ao mesmo tempo, nunca entre nós a indignação soube exprimir-se com tanta veracidade, tanto vigor, tanta lucidez poética.
·       O Amor Natural é sem dúvida o livro mais ousado do poeta. Publicado após a sua morte, trata do amor com uma linguagem desnuda, quase pornográfica, dividindo as opiniões sobre seu conteúdo: seria uma obra obscena ou um exercício estético do erotismo? Muitos dos poemas foram compostos antes mesmo da década de 1970, e já frequentaram revistas eróticas como Homem, Ele&Ela e Status. Durante sua vida, Drummond evitou publicá-los em livro, antes da revolução sexual e de costumes, por receio de serem confundidos com pornografia. Em 1985, o poeta — que nunca considerou esses escritos um trabalho menor — concordou em ceder 39 dos 40 poemas reunidos em O AMOR NATURAL à pesquisadora Maria Lúcia Pazo Ferreira, para que esta os analisasse em tese acadêmica. A conclusão a que chegou Maria Lúcia é de que o erotismo em Drummond tem um fundo místico e se afasta da pornografia. O escritor tampouco teve intenção de privar o público de conhecer seus poemas eróticos. O que fez foi instruir seu neto e herdeiro Pedro Augusto a publicá-los após sua morte, na data em que achasse mais conveniente.
·       Em FAREWELL está claro que Drummond optou por adiar o lançamento para depois de sua morte. O título não deixa dúvida de que quis fazer dessa coletânea o fecho de sua produção poética. Farewell inclui dois poemas considerados os últimos a serem escritos pelo autor. 
·       Sentimento do Mundo – 1940. Nessa obra, o sentimento do mundo está na essência do corpo rebelde e solitário do poeta, na premência da vida presente e da solidariedade entre os homens. Está também na urgência da luta de classes, na violência da guerra contra Hitler, na iminência da revolução sócio-econômica e na ardência da utopia socialista. O Sentimento do Mundo reúne poemas escritos entre 1935 e 1940, inaugurando uma nova fase na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Permanece um livro inigualável. 
  

Canção Amiga

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
Que passa por muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
E saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
Como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
Dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
E tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

Poema de sete faces

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, 
pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atras do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atras dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria solução.
Mundo mundo vasto mundo ,
mais vasto é o meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
                               (Alguma poesia)

No meio do caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas, tão fatigadas,
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
(Alguma poesia)

Quadrilha

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estado Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
                               (Alguma poesia)
Segredo

A poesia é incomunicável
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.

Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.
                               (Brejo das Almas)
  
AMOR - POIS QUE É PALAVRA ESSENCIAL

Amor - pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da prórpia vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o climax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
nu úmido subterrâneoda vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.
                               (O amor natural)

 Eu, etiqueta


Em minha calça está grudado um nome
que não é meu de batismo ou de cartório,
um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
que jamais pus na boca, nesta vida.
Em minha camiseta, a marca de cigarro
que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produto
que nunca experimentei
mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
de alguma coisa não provada
por este provador de idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
minha gravata e cinto e escova e pente,
meu copo, minha xícara,
minha toalha de banho e sabonete,
meu isso, meu aquilo,
desde a cabeça até o bico dos sapatos,
são mensagens,
letras falantes,
gritos visuais,
ordem de uso, abuso, reincidência,
costume, hábiot, premência,
indispensabilidade,
e fazem de mim homem-anúncio intinerante,
escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É doce estar na moda, ainda que a moda
seja negar minha identidade,
trocá-la por mil, açambarcando
todas as marcas registradas,
todos os logotipos de mercado.
Com que inocência demito-me de ser
eu que antes era e me sabia
tão diverso de outros, tão mim-mesmo,
ser pensante, sentinte e solitário
com outros seres diversos e conscientes
de sua humana invencível condição.
Agora sou anúncio,
ora vulgar, ora bizarro,
em língua nacional ou em qualquer língua
(qualquer, principalmente).
E nisto me comprazo, tiro glória
de minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
para anunciar, para vender
em bares festas praias pérgulas piscinas,
e bem à vista exibo esta etiqueta
global no corpo que desiste
de ser veste e sandália de uma essência
tão viva, independente,
que moda ou suborno algum compromete.
Onde terei jogado fora
meu gosto e capacidade de escolher,
minhas indiossicrasias tão pessoais,
tão minhas que no rosto se espelhavam,
e cada gesto, cada olhar,
cada vinco de roupa
resumia uma estética?
Hoje sou costurado, sou tecido,
sou gravado de forma universal,
asio de estamparia, não de casa,
da vitrine me tiram, me recolocam,
objeto pulsante mas objeto
que se oferece como signo dos outros
objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
de ser não eu, mas artigo industrial,
peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem,
meu nome novo é coisa.
Eu sou a coisa, coisamente.
                               (Corpo)

As sem-razões do amor

Eu te amo  porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabe sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque te amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Para Sempre

Por que Deus permite
 que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.

Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça, é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
- de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.  
(Lição de coisas)

Quero

Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao dizer: Eu te amo,
dementes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.
Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,
a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão,
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.

No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de ama-me,
que nunca me amaste antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.

 

Outro presente para a senhora (conto)


- Mãe. taqui seus chocolates!
- Que chocolates, meu anjo?
- A senhora não sabe que, no Dia das Mães, dê chocolate pra ela? Comprei um pacotão divino-maravilhoso-fora-de-série, pra senhora. Tem bombons, tablettes, figurinhas, pastilhas, drágeas... Um negócio, mãe!
- Filhinho, eu não posso comer chocolate.
- Como não pode? É uma curtição. Todas as mães do Brasil, no Dia das Mães, vão saborear produtos achocolatados. Não precisa engolir tudo e duma vez. .guarda pra semana toda, pro mês inteiro.
- Alfredinho, o médico me proibiu de comer chocolate.
- E daí? Esquece o médico. Não é Dia dos Médicos, é Dia das Mães, dia da senhora. Quando é que as mulheres vão se emancipar da tutela dos homens?
- E você não é homem, criatura? Você quer que eu seja independente comendo o chocolate que você faz questão de me dar?
- Fico triste com a senhora.
- Fique não, querido. Vamos fazer uma coisa. Dê esse pacote tão lindo pra sua namorada.
- A Georgiana? A Georgiana não é casada nem mãe solteira, como é que eu vou dar presente a ela no Dia das Mães. Pega mal.
- Toda namorada merece ganhar presentes em qualquer dia do ano.
- Não posso dar chocolates a Georgiana.
- Não pode por quê?
- Engorda.
- Ah, muito bonito. Então a Georgiana não pode engordar , e eu, que sou mãe do namorado dela, posso, né?
- Não é nada disso, mãe. Também não quero que a senhora engorde, mas se engordar, problema de papai.
- O problema é meu antes de mais ninguém, ouviu? Ou você não acha mais que a mulher deve resolver por si mesma o que lhe convém ou não convém?
- Mas chocolate, uma coisa à toa... Que importância tem isso?
- Tem importância pra Georgina, tem importância pra você que não quer ver Georgina barriguda por causa de chocolate, não tem importância pra mim, só porque no Dia das Mães usa oferecer chocolate à autora dos seus dias?
- Autora de Quê? A senhora tá falando difícil, mãe. Até parece linguagem de vestibular. Deixa, não tem importância. Quer dizer que a senhora está mandando meu presente praquela parte.
- Alfredmho, não repita!
- Não disse nada de mal.
- Disse sem dizer. Não admito que você use essas expressões falando comigo.
- Que expressões? Desculpe. Não quis ofender a senhora, evidente. Estou só defendendo o chocolate, entende?
- Está bem.
- É muito alimentício.
- Eu sei.
- Numa dieta bem balanceada...
- Chega, Alfredinho. Não precisa falar em calorias. Quem não sabe que chocolate é bom e gostoso? Eu adoro chocolate, mas...
- Então pega o pacote.
- É uma tentação. Mas eu resisto.
- Eu ajudo a destruir o que tá aí dentro, mãe.
- Não
- Prova só um chocolatezinho mais legal, com recheio de licor.
- Não.
- Unzinho só. Delícia.
- Nããããão. Leve prá Georgiana, já disse.
- Já vi tudo. A senhora quer ter uma nora de barrigona estufada de tanto comer chocolate, só pra ter o gosto de mostrar que a sogra dela é mais leve que manequim!
- Bandido, some da minha frente com essa porcaria, que eu não sou mais sua mãe!

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Educação: Artigo de Gustavo Ioschpe em VEJA: 'Nossa escola não é feita para dar certo'


     Isso se por "dar certo" entendermos a formação de uma pessoa com as habilidades mínimas para navegar o mundo e desenvolver seu potencial
     Gustavo Ioschpe – da revista VEJA
Empresas - tocadas como escolas iriam à falência (Iconica/ Getty Images)
     Imagine que você trabalha em uma empresa em que os funcionários não ganham de acordo com sua competência, mas sim segundo seu tempo de casa e nível de estudo. Não há promoções, mas também só há demissão em casos de violação grotesca. Mesmo faltando repetidamente ao serviço, não alcançando sua meta ano após ano e maltratando seu cliente, você continua no posto até se aposentar. Imagine que não exista, em sua região, universidade que prepare bem para o seu emprego, de forma que você já chega ao trabalho não sabendo muito. Pior: tem gente que trabalha em área diferente daquela em que foi formada; o cara de vendas se formou em letras. Imagine que essa empresa só tenha dois cargos (funcionário e chefe) e que quase metade dos chefes tenha chegado ao cargo por indicação de um conhecido dos donos (o restante é majoritariamente eleito para a posição pelos funcionários). Imagine que os donos são muitos, que eles não costumam frequentar a empresa e que a herdaram como parte de um conglomerado, do qual a sua empresa é uma das que agregam menos valor aos donos. Imagine agora que o serviço prestado pela sua empresa é complexo e dirigido a crianças e jovens. Imagine também que essas crianças e seus pais não saibam julgar a qualidade do serviço, mas achem que está tudo bem, desde que você o empacote em uma embalagem bonita e dê aos clientes alguns brindes (uns livros, umas roupas, de repente até um laptop aos mais sortudos). A empresa consegue dar todos esses brindes; a maioria dos clientes está, portanto, satisfeita. Imagine que os clientes e seus familiares não precisem pagar diretamente pelo serviço: o pagamento vem da empresa-mãe (a que congrega todos os negócios do grupo) e é baseado na compra de outros produtos e serviços oferecidos por outras empresas do grupo.
Agora pense nesse ambiente de trabalho e responda às seguintes perguntas. Se você trabalhasse nele, estaria motivado a dar o seu melhor ou pegaria leve, esperando o contracheque no fim do mês? Como você acha que seus outros colegas de empresa se comportariam? Se lhe dessem um aumento salarial, você se esforçaria mais? Se você fosse uma pessoa carreirista, permaneceria nessa empresa? Aliás, você teria entrado nela? No caso dos chefes indicados pelos amigos dos donos, você acha que eles estariam mais preocupados em agradar aos clientes ou aos donos e seus amigos? No caso dos chefes eleitos por você e seus colegas, acha que eles comprariam briga com você para defender os interesses dos clientes ou virariam seus aliados? Presumindo que os clientes permanecessem satisfeitos e que continuassem pagando indiretamente pelo serviço, você acha que os donos se interessariam em reformar a empresa para que ela servisse melhor sua clientela, desse mais resultados? Ou será que suas prioridades seriam manter a coisa no estado em que se encontra e devotar suas energias para os outros braços do conglomerado, os que dão mais retorno?
Não sei qual o grau de sua fé na humanidade nem suas crenças na natureza humana, mas eu tendo a achar que a empresa acima seria uma balbúrdia, com profissionais desmotivados e trabalhando abaixo de sua capacidade, clientes mal atendidos, conchavos entre funcionários e chefes, donos desinteressados e pouco envolvidos. Eu acho que melhorar o salário dos funcionários não mudaria o problema. Vou além: enquanto essa estrutura de incentivos não fosse alterada, qualquer investimento numa empresa assim seria um desperdício de tempo e dinheiro. Aliás, não é uma opinião, até porque esse cenário não é hipotético nem trata de empresas. O quadro descrito retrata a maioria das escolas públicas brasileiras. Os funcionários são os professores, os chefes são os diretores de escola, os donos são a classe política, os clientes são os alunos. O resto não carece de alterações para chegar à realidade.
O desafio é vencer as adversidades - Washington Alves/AE
Aposto que você sabe que nossa educação é péssima e que esse problema é fatal para nossas possibilidades de desenvolvimento. Aposto também que você acha que esse problema não o afeta, especialmente se você põe seu filho em escola particular. Aposto que gasta mais tempo na seção de esportes do seu jornal do que naquela que cuida de educação. Se é que o seu jornal tem uma seção devotada ao assunto, já que 90% da cobertura do tema se limita a notícias sobre greves, ameaças de greve e outras reclamações salariais. E, até porque o assunto é apenas esse — dinheiro —, você acha (acha não: você tem certeza, depois de vinte ou trinta anos de leituras sobre o assunto) que o principal problema da educação brasileira é o salário dos professores. Aposto também que, dois parágrafos antes, você respondeu que aumentar o salário dos funcionários não resolveria nada, e aposto também que você gosta dos brindes (se você for mais pobre, merenda; se mais rico, lousa eletrônica ou currículo bilíngue) que a escola do seu filho dá.
Antes que os patrulheiros se arvorem, não estou querendo comparar a escola a uma empresa. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Apenas propus um exercício mental. O que espero que esse exercício tenha deixado claro é o seguinte: não é que a educação brasileira fracassa misteriosamente apesar dos melhores esforços de todos os envolvidos. Ela fracassa porque esse arranjo institucional requer a irracionalidade de todos os envolvidos, do prefeito ao professor. Nossa escola não é feita para dar certo — se por "dar certo" entendermos a formação de uma pessoa com as habilidades mínimas para navegar o mundo e desenvolver seu potencial.
    O professor apaixonado - supera deficiências
Não faz sentido para um professor brasileiro comprar a briga: com má formação, precisaria de um esforço hercúleo para obter grandes resultados. Mas esses resultados não lhe trariam reconhecimento, promoções, prêmios ou aumentos. Não faz sentido para o aluno brasileiro se esforçar: a aula que ele recebe é extremamente chata, a maioria dos professores não está muito preocupada com o seu aprendizado, e ele sabe que, se fizer um esforço mínimo, vai continuar sendo aprovado, mesmo sem aprender bulhufas. Não faz sentido para o diretor de escola se insurgir contra essa situação e querer mudar radicalmente o status quo. Se a sua nomeação depende de eleição dos professores, ele não vai querer exigir de seus eleitores mais trabalho e dedicação, até por não ter nada a lhes oferecer em troca. Se o diretor tiver indicação política, então, Deus o livre de qualquer incômodo: o importante é dar vida fácil a todos, carregar nos "brindes" e deixar os eleitores do seu padrinho político felizes. Não faz sentido para os pais dos alunos protestar contra o atual estado de coisas, porque a maioria deles está satisfeita com a educação que o filho recebe (em pesquisa recente do Inep, a nota média dada pelos pais de alunos da escola pública à qualidade da educação do filho foi 8,6!). E a maioria está satisfeita porque não tem condições intelectuais de avaliar o que é uma boa educação, pois é semiletrada, e nem sabe que existem avaliações oficiais sobre a qualidade do ensino do filho. Finalmente, não faz sentido para o político trabalhar para melhorar a qualidade do ensino: não há pressão por parte de alunos nem de seus pais, e há uma enorme resistência a qualquer mudança por parte dos sindicatos de professores e funcionários. Politicamente, só há custos, sem 
benefícios. Nenhum político racional mexe nesse vespeiro. Há, é claro, as exceções. O professor apaixonado pelo que faz, que dá duro independentemente do salário, da carreira desanimadora, dos alunos desmotivados e dos colegas que o pressionam para se aquietar. O diretor comprometido, que se orgulha de fazer uma grande escola e seleciona profissionais que comprem essa batalha. Os alunos e seus pais que querem melhorar de vida e sabem que precisam de educação de qualidade, que lutam contra a pasmaceira. E os políticos comprometidos com a próxima geração, e não com a próxima eleição. Mas esses são minoria, e o sistema está contra eles. Enquanto a lógica do sistema não for alterada, todas as ações pontuais para melhorá-lo — da lousa eletrônica ao salário mais alto — provavelmente irão para o ralo. Acredito que o quadro só mudará quando a população passar a ver a educação brasileira como ela realmente é. Somente aí poderemos esperar a pressão popular por uma educação de qualidade, que gerará incentivo para que políticos cobrem desempenho dos funcionários do sistema. Ou seja, o problema é seu. Está esperando o que para fazer alguma coisa?

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Roteiro de viagem: MACHU PICCHU


Haroldo Castro viaja como jornalista,
fotógrafo e conservacionista.
O fundador do Clube de Viajologia
visitou 138 países.
Esta foi sua 24ª viagem ao Peru

Fortaleza inca no alto dos Andes Eleita uma das Sete Novas Maravilhas do Mundo, a cidadela inca continua a surpreender visitantes - mas seu estado de conservação demanda cuidados
Texto e fotos: Haroldo Castro – da Revista PLANETA – edição 432.
Machu Picchu é o maior tesouro que os incas deixaram ao Peru moderno. O lugar rende mais riquezas do que ouro que os conquistadores derreteram e levaram para a Espanha. Por ano, o santuário histórico movimenta cerca de US$ 150 milhões e recebe 500 mil visitantes!
Pode parecer clichê, mas o lugar é mesmo espetacular. Já estive oito vezes em Machu Picchu e nunca senti que havia perdido a viagem. Sempre encontro algo diferente. Entretanto, chegar de trem e de ônibus apinhado de turistas – como fazem 90% dos visitantes – é, no mínimo, banal. Por isso, dessa vez, preferi suar um pouco e conquistar Machu Picchu a pé!
À esquerda, o Templo das Três Janelas, cuja função seria a de marcar os solstícios e
os equinócios. Na foto ao centro, as begônias rosas, flor endêmica da região.
À direita, o Intihuatana de Machu Picchu, fotografado antes de ter tido sua ponta
fraturada por um acidente durante a produção de um comercial de cerveja.
Havia uma vasta rede de caminhos por todo o território inca. Várias trilhas ainda existem e uma delas leva até Machu Picchu. Junto a outros andarilhos, desço do trem no km 104. Atravessamos o caudaloso rio Urubamba e damos início a nossa jornada a 2.150 metros de altitude, nas ruínas de Chachabamba.
A chamada Trilha Inca atravessa montanhas, vales e até florestas. Seus 35 quilômetros são percorridos em quatro dias. Mas a opção que escolhi é o caminho de apenas um dia, uma alternativa à trilha completa. Mesmo assim, são sete quilômetros de encostas para chegar às ruínas de Wiñay Wayna e mais outros seis quilômetros até Machu Picchu.
Wiñay Wayna significa em quéchua “sempre jovem”. A 500 metros de altitude acima do rio Urubamba, é a etapa de descanso antes de chegar a Machu Picchu. Nesse ponto, nosso caminho junta-se com a trilha de quatro dias. Aqueles que atingiram Wiñay Wayna percorreram três dias de sobe-e-desce. Cruzaram montanhas, venceram desfiladeiros e passaram pelo ponto mais alto da trilha, Warmiwañusca, a 4.200 metros.
Percorri a Trilha Inca completa de quatro dias em 1978. Na época, não existia nenhuma infra-estrutura ou segurança. Apenas os mais atrevidos ousavam encarar as subidas e descidas íngremes. Com as décadas, o caminho tornou-se tão popular que milhares de pessoas passaram a usar a trilha. O impacto dessa massa de caminhantes foi violento. Toneladas de lixo foram deixadas pelos turistas. O movimento provocou erosão em alguns trechos e ameaçou a integridade de várias ruínas arqueológicas.
O governo peruano precisou intervir e impor restrições. Agora é necessário ter uma autorização para percorrer o caminho e, no mínimo, US$ 400 para cobrir os gastos. Quinhentas pessoas, incluindo as equipes de apoio, podem iniciar o caminho a cada dia. E, para poder estar entre os escolhidos, é necessário reservar lugar com três meses de antecedência.
O momento culminante da Trilha Inca é a chegada em Inti Punku, a Porta do Sol, entrada original de Machu Picchu. Acredita-se que esse acesso não era uma via comercial, mas um percurso cerimonial. Era considerado uma peregrinação, onde cada etapa incluía rituais, inclusive para os Ápus, as montanhas sagradas.
Depois de mais de seis horas de caminhada, a nossa recompensa é uma visão grandiosa. Dá para entender o impacto que Machu Picchu produz nas pessoas. O lugar impõe respeito e admiração. A paisagem transmite a força da natureza. O ambiente transporta as pessoas a um outro espaço e tempo.
Mas, afinal, o que teria sido Machu Picchu? Apenas uma fortaleza, como dizem alguns arqueólogos? Mas para proteger o que e de quem? Isolada pelas correntezas do rio Urubamba, que passa a seus pés, e por um anel de picos montanhosos, Machu Picchu não tem as características de uma fortaleza clássica ou de um centro administrativo. Mais lógico seria conceber a cidadela como um refúgio espiritual – ou até mesmo um esconderijo político.
A cidade é uma obra auto-sustentável, com plataformas agrícolas e edificações talhadas na própria montanha. Todo material utilizado na construção veio das redondezas. As estruturas são de granito; os muros ligeiramente inclinados compensam o impacto de possíveis terremotos. Formam um conjunto arquitetônico de alto valor estético. No total, são 150 casas, além de palácios, templos e aquedutos. Tudo muito bem preservado.
Os vestígios arqueológicos de Machu Picchu confirmam que a maioria das edificações data do início do século 15, bem antes da chegada dos conquistadores. A cidade continuou habitada até 40 anos depois da tomada de Cuzco.
Os espanhóis jamais conheceram Machu Picchu. Foi o explorador norte-americano Hiram Bingham que descobriu as ruínas, em 1911. Quando ele chegou a Machu Picchu, a cidade estava escondida, recoberta por 400 anos de vegetação. Depois de dois anos de exploração arqueológica, patrocinada pela Universidade de Yale e pela National Geographic, Bingham voltou aos Estados Unidos com mais de 5 mil artefatos. A maioria deles continua nos depósitos do museu da universidade. Hoje, o governo peruano e Yale discutem sobre o retorno dessas peças para que sejam expostas em um museu local. Bingham nunca teria imaginado que, um século depois da descoberta, a antiga cidade seria uma das Sete Novas Maravilhas do Mundo.
O explorador não encontrou nenhum objeto que poderia ser considerado como tesouro. Não foi descoberta nenhuma cerâmica espetacular ou qualquer objeto de ouro ou de prata. Apenas algumas peças de bronze e de uso diário. Na verdade, o “tesouro” mais extraordinário de Machu Picchu é sua localização natural, cercada de montanhas e florestas. É esse entorno, esse ambiente mágico, que faz com que visitantes de todas as partes do mundo sejam atraídos por Machu Picchu.
Pela sua localização, Machu Picchu parece estar sempre brincando com as nuvens. Até mesmo na época seca, quando o sol deveria brilhar sozinho no céu, nuvens de chuva podem se formar a qualquer momento. É essa água que dá vida à vegetação das encostas das montanhas.
Com 32 mil hectares, o Santuário Histórico de Machu Picchu concentra uma grande biodiversidade. Isso acontece porque ele abrange dez diferentes zonas ecológicas, com altitudes que variam de 1.700 metros, no rio Urubamba, a mais de 6.200 metros de altitude, com o pico nevado Salcantay.
Apenas um terço do Santuário foi explorado por biólogos. Mas já se sabe que a flora é rica e variada, com uma grande quantidade de arbustos, samambaias e trepadeiras. Foram identificadas cerca de 300 espécies de orquídeas e existem dezenas de espécies de bromélias, cada uma adaptada a uma diferente altitude. Uma begônia rosa é nativa da região.
Em sentido horário, a partir do alto: a esplanada principal de Machu Picchu;
a Torre de Machu Picchu parece ter tido mais uma função cerimonial
do que militar; casa inca na parte leste de Machu Picchu; as pedras brutas
parecem ter sido transformadas em habitações no próprio local.
Machu Picchu foi construída de acordo com a magia da natureza. O Templo das Três Janelas é uma prova, pois marca as quatro estações do ano. Nos dias de equinócio da primavera e do outono, o sol nasce na janela do centro. Nos solstícios do inverno e do verão, aparece na janela das pontas.
Esse conhecimento dos mzovimentos dos astros parece ter sido uma marca registrada da cultura inca. Não é apenas o Templo das Três Janelas que marca a passagem das estações. O Intihuatana, o coração do centro cerimonial de Machu Picchu, também dá essa informação. Inti (“sol”, em quéchua) e Huatana (da palavra Huata, “amarrar”) significaria “lugar onde se amarra o sol”.
Esse pedaço de granito, esculpido em uma forma bem particular, era utilizado como instrumento para medir o ciclo do tempo e das estações do ano. São as sombras projetadas pela pedra – ou a ausência delas – que dão a informação necessária. Esse calendário natural teria uma função importante para organizar a vida social, agrícola e religiosa dos incas. Assim, Machu Picchu poderia ter sido também um observatório astronômico.
Mas a principal função do Intihuatana não está descrita em textos arqueológicos. A tradição andina atribui ao aparelho solar o poder de captar a energia do sol, permitindo uma maior visão espiritual do iniciado. Pedras como o Intihuatana eram sagradas para os incas e existiam em todo o território. Por essa razão, foram alvo de destruição sistemática pelos espanhóis. Os conquistadores entendiam que, ao arrasar as pedras sagradas, estariam também desconectando os incas de seus deuses.
Como não foi descoberto pelo conquistador, o Intihuatana de Machu Picchu foi poupado. Porém, em setembro de 2000, um triste acidente, durante a gravação de um comercial de cerveja, danificou o que os espanhóis não haviam conseguido. Um equipamento pesado caiu em cima da ponta do Intihuatana, fraturando oito centímetros da pedra sagrada.
Na verdade, o estado de conservação do santuário é delicado. Machu Picchu, considerado Patrimônio Mundial Natural e Cultural desde 1983, tomou um cartão amarelo da Unesco no ano passado. O órgão das Nações Unidas, que trata da área cultural, científica e educacional, vem demonstrando sua crescente preocupação com o impacto provocado pelo turismo de massa. A última missão da Unesco concluiu que Machu Picchu tem problemas sérios de desmatamento, desenvolvimento urbano desenfreado e acesso ilegal, além de correr graves riscos de deslizamento de terra.
A esperança é que o Instituto Nacional de Cultura e outras instituições peruanas envolvidas na região saibam ouvir as advertências da Unesco e passem a administrar Machu Picchu com uma visão integrada e não apenas como uma fonte inesgotável de renda.