sábado, 25 de outubro de 2014

Pagu: a última combatente do modernismo

METRALHADORA
As 23 prisões não foram suficientes para cessar a crítica da 
escritora ao sistema capitalista, às mulheres e aos 
colegas do movimento modernista, que representou 
em sua fase mais radical

Ana Weiss - do portal da revista ISTOÉ

Em pesquisa que traz textos inéditos de Pagu, Augusto de Campos defende a musa da antropofagia como a mais combativa artista do movimento modernista brasileiro
Patrícia Redher Galvão traduzia Kafka e Ionesco quando quase ninguém os conhecia no Brasil. Era cartunista, crítica, colaborou e fundou periódicos revolucionários e escreveu uma das mais importantes obras proletárias do modernismo, “Parque Industrial”. Mas o olhar lânguido e a boca sempre retinta de Pagu colocaram-na no panteão diferente de seus pares e ela entrou para a história como musa modernista, ou musa antropofágica, como defendeu Décio Pignatari em uma das primeiras ações de resgate da obra da escritora, nos anos 1970. Dito, portanto, como um elogio.
Pagu, alcunha dada por Raul Bopp, era mais jovem e, pelo que mostra o levantamento de Augusto de Campos, ampliado em edição que sai pela Companhia das Letras, a mais entusiasmada integrante do grupo de modernistas brasileiros de segunda geração, a “segunda dentição da antropofagia”. Seu compromisso com o projeto de revolução estética e social a levou a colocar o dedo na cara de parceiros e mestres, como Mário de Andrade, a quem acusou de abandonar o movimento de 22 em artigo polêmico publicado em 1948 na revista “Clima”, assinado em conjunto com o intempestivo e irrefreável Oswald de Andrade. Mas, além da coragem de se opor aos movimentos que abraçava – o modernismo e o socialismo –, Pagu tinha o hábito de seguir seu coração. Com pouco mais de 20 anos, se envolveu com Oswald, que deixou a pintora Tarsila Amaral para ficar com a muito mais nova ex-normalista.
“A exuberante beleza pessoal talvez tenha contribuído para vitimizá-la, antes que para promovê-la”, escreve Augusto de Campos na edição de “Pagu Vida-Obra”, agora acrescido de textos inéditos da colunista de “A Mulher do Povo”, publicado pelo jornal fundado por ela e por Oswald de Andrade e fechado depois de oito números pela polícia, diante da pressão de estudantes de direito da Universidade de São Paulo. “Ela era autora de artigos (sob diversos pseudônimos) e das ilustrações, charges, vinhetas, títulos e legendas, como comprova a comparação com desenhos de ‘Álbum de Pagu’, da ‘Revista de Antropofagia’ e outras fontes”, escreve o autor. Na coluna anônima que Campos republica agora, Pagu não poupava nem mesmo a ala da sociedade que poderia ter lhe dado, em vida, algum abrigo.
Em “O Retiro Social”, ela alveja, com ironia cortante, as novas feministas brasileiras, que imitavam sem muita verdade um modelo importado dos países anglófonos. “Agora que nós caminhamos para uma época sem recalque e de moral biológica racionalizada, onde não existirão nem desvios sexuais nem retiros físicos, Freud e o Padre Manfredo podem pedir demissão.” Pelo destemor, pela inteligência e, mais que tudo, pela coerência com que vivia os princípios de liberdade na sua vida profissional e particular, o autor considera Patrícia Galvão – que não conheceu em vida – “a primeira mulher nova brasileira”.
“Nenhuma correu os riscos, nenhuma defendeu com tanto ardor a arte de vanguarda, nenhuma se pode comparar, em termos de atuação ética e estética, com ela. De um modo ou de outro, todas acabaram cedendo, menos ela.”

Pagu foi presa 23 vezes na vida. A primeira prisão, pelo governo Vargas durante a greve dos estivadores de Santos, é, de acordo com Geraldo Ferraz, seu segundo companheiro, o primeiro encarceramento político de uma mulher no País. Expatriada da França, onde foi detida como comunista, voltou para trás das grades por cinco anos, mais uma vez pela polícia varguista. Teve dois filhos, o cineasta Rudá de Andrade, com o primeiro marido, e o jornalista Geraldo Galvão Ferraz, com o segundo. Mesmo sequelada pelas torturas sofridas na prisão, a escritora continuou produzindo, tendo sido autora das críticas mais contundentes escritas na ocasião da Primeira Bienal de São Paulo, em 1951. “Quando eu morrer, não quero que chorem a minha morte. Deixarei o meu corpo pra vocês”, diz em uma das charges reproduzidas pelo livro de Augusto de Campos, que traz ainda um belo caderno de retratos cedidos pela irmã da modernista, Sidéria Rehder Galvão. Pagu deixou o corpo em 1962, aos 52 anos, depois da tentativa frustrada de curar um câncer e outra de se suicidar, na casa de sua família paterna em Santos, litoral de São Paulo.