sábado, 15 de setembro de 2012

12 contos de Machado de Assis analisados resumidamente


                                  Landisvalth Lima
1 - A Igreja do Diabo

Machado de Assis
O conto está dividido em 4 capítulos e narra a idéia do Diabo de construir uma igreja. Percebeu o adversário do Divino que as pessoas freqüentavam a igreja de Deus pregavam bondade, igualdade, fraternidade, amor ao próximo, mas, no comportamento cotidiânico, faziam exatamente o contrário. Era hora, pois, de fazer uma igreja que pregasse o que os homens de fato faziam. Assim procedeu, comunicando ao Senhor sua decisão. A igreja prosperou. Adeptos e seguidores lotavam suas dependências. “Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova.”. Um tempo depois, o Diabo percebeu que muitos começavam a praticar antigas virtudes. “Certos glutões recolhiam-se a comer frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas; vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros”. O Diabo ficou espantado e indignado. Foi aos céus para falar com Deus e buscar uma explicação para o fenômeno. Deus lhe disse: “— Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.”.

2 – Cantiga de esponsais

O nome é Romão Pires, o mestre Romão. Músico, 60 anos. Presença quase que obrigatória em festas, batizados, espetáculos. Era o maestro que regia todas as festas. Mas por que Romão Pires era triste? Simples.” Tinha a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no papel. Esta era a causa única da tristeza de mestre Romão.” Queria produzir algo de seu, para ficar na história, para ser executado por outros maestros. Bem que tentou. Chegou inclusive a iniciar alguma coisa, mas nada definitivo. Um dia o mestre adoeceu e desejou produzir sua sonata.” O princípio do canto rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo, que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.
— Aqueles chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão tocar...
Impossível. Nenhuma inspiração.” Desesperado, deixou o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.
A lição do conto é a verdade do fato de haver pessoas que nascem apenas para reproduzir; algumas produzem, criam.

3 - Marcha fúnebre

O deputado Cordovil recebe a noticia da morte de um inimigo político seu. Nada de alegria ou alívio. Ao contrário, ao saber do sofrimento, da morte lenta, dolorosa, parecia até perdoar o inimigo morto.Um dia, ao voltar de um baile, Cordovil enfrenta novamente a morte. Um homem havia morrido na estrada de repente.Morte rápida, sem sofrimentos. O deputado passou a imaginar de como morreria e a imaginar as diversas situações possíveis de sua morte.”Então a morte, que ele imaginara pudesse ter sido no baile, antes de sair, ou no dia seguinte em plena sessão da Câmara, apareceu ali mesmo no carro. Supôs ele que, ao abrirem‑lhe a portinhola, dessem com o seu cadáver. Sairia assim de urna noite ruidosa para outra pacífica, sem conversas, nem danças, nem encontros, sem espécie alguma de luta ou resistência.” E de tanto pensar na morte, chegou a imaginar que amanheceria morto. O sonho não se fez. “Quando veio a falecer, muitos anos depois, pediu e teve a morte, não súbita, mas vagarosa, a morte de um vinho filtrado, que sai impuro de uma garrafa para entrar purificado em outra; a borra iria  para o cemitério. Agora é que lhe via a filosofia; em ambas as garrafas era sempre o vinho que ia ficando, até passar inteiro e pingado para a segunda. Morte súbita não acabava de entender o que era.

4 - Miss Dollar

É o único conto romântico do livro e narra a história de amor entre Mendonça e Margarida. O conto está dividido em 8 capítulos e é a cadelinha Miss Dollar o motivo principal da união dos protagonistas. “Mendonça era um homem como os outros; gostava de cães como outros gostam de flores. Os cães eram as suas rosas e violetas; cultivava-os com o mesmíssimo esmero.”. Margarida era “uma moça que representava vinte e oito anos, no pleno desenvolvimento da sua beleza, uma dessas mulheres que anunciam velhice tardia e imponente.(...) Mas a grande distinção daquele rosto, aquilo que mais prendia os olhos, eram os olhos; imaginem duas esmeraldas nadando em leite.”. Detalhe mais significativo de Margarida: era viúva. O desaparecimento de Miss Dollar e a publicação do anúncio fizeram com que Mendonça conhecesse Margarida. Missa Dollar estava em seu canil. Foi entregá-la e conhece a paixão. É Andrade o personagem que informa ao Mendonça a viuvez de Margarida e o fato de ela já ter rejeitado cinco casamentos. Andrade foi uma das vítimas.”Mendonça desde esse momento tratou de cortejar assiduamente a viúva; Margarida recebeu os primeiros olhares de Mendonça com um ar de tão supremo desdém, que o rapaz esteve quase a abandonar a empresa; mas, a viúva, ao mesmo tempo que parecia recusar amor, não lhe recusava estima, e tratava-o com a maior meiguice deste mundo sempre que ele a olhava como toda a gente.” Mas a viúva não correspondia. No fundo ela tinha medo de os pretendentes estarem apenas interessados nos bens que ela possuía. Mendonça partiu para o ataque e resolveu escrever uma carta abrindo o jogo. Andrade disse-lhe que fizera mal. Todos os outros pretendentes fizeram a mesma coisa e foram rejeitados. Mas Margarida respondeu. Ele escreveu outra, mas não houve resposta. Mendonça afastou-se. Um dia, D. Antônia, tia de Margarida, vai visitá-lo, diz que a viúva está doente e que o amava. Isto depois de uma visita noturna inesperada de Mendonça ao lar de Margarida, numa hora pouco recomendável. Fato é que Mendonça e Margarida se casaram. “Foi modesta e reservada a cerimônia do casamento. Andrade serviu de padrinho, D. Antônia de madrinha; Jorge falou no Alcazar a um padre, seu amigo, para celebrar o ato.
D. Antônia quis que os noivos ficassem residindo em casa com ela. Quando Mendonça se achou a sós com Margarida, disse-lhe:
- Casei-me para salvar-lhe a reputação; não quero obrigar pela fatalidade das cousas um coração que me não pertence. Ter-me-á por seu amigo; até amanhã.”.
Fato é que tudo acabou mais ou menos bem. “Os dous esposos são ainda noivos e prometem sê-lo até a morte. Andrade meteu-se na diplomacia e promete ser um dos luzeiros da nossa representação internacional. Jorge continua a ser um bom pândego; D. Antônia prepara-se para despedir-se do mundo.
Quanto a Miss Dollar, causa indireta de todos estes acontecimentos, saindo um dia à rua foi pisada por um carro; faleceu pouco depois. Margarida não pôde reter algumas lágrimas pela nobre cadelinha; foi o corpo enterrado na chácara, à sombra de uma laranjeira; cobre a sepultura uma lápide com esta simples inscrição: A Miss Dollar.

5 – Missa do Galo

Nogueira vai visitar o amigo Menezes na noite de Natal. Recebe-o Conceição, esposa do amigo. Enquanto aguardava o horário da Missa do Galo, Nogueira tem longo diálogo com Conceição e a mãe dela. Com o sono da mãe, Conceição ficou a sós com o convidado. A ausência do marido e o ato de vestir um roupão dão o toque de sensualidade a permitir ao leitor imaginar o início de um adultério. Bem que Conceição faz seu papel, mas quem parecia conter-se era Nogueira. “Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.Fato é que o amigo da hora marcada chegou no momento crucial: Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo!” (...) “Na manhã seguinte, ao almoço falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.”

6 – O espelho


O conto é narrado em terceira pessoa. Quatro ou cinco senhores debatem questões em torno de um novo esboço da alma humana, como reza o sub-título. O local é uma casa no alto do morro de Santa Teresa. O quinto membro do grupo não falava, não discutia. Era Jacobina. Casmurro, capitalista, instruído. Foi chamado a opinar. Não quis, mas narrou um fato a partir da idéia de ter o ser duas almas. “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; — e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira.” Jacobina inicia a narrativa do fato. Ele era pobre, tinha 25 anos e foi nomeado alferes da Guarda Nacional, motivo de orgulho de toda a família. Uma tia sua, D. Marcolina, viúva do Capitão Peçanha, pediu-lhe que fosse ao sítio dela. Lá, Jacobina era tratado como autoridade. Era Sr. alferes pra lá, Sr. alferes pra cá. O entusiasmo da tia era tão grande que chegou a colocar um enorme espelho no quarto do sobrinho. O tratamento era superior. Daí, “— O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado”.  Mas a tia fez uma viagem inesperada e o alferes ficou só com os escravos. Também tratado com gentilezas pelos escravos, não percebeu que estavam armando fuga. Indo os escravos embora, Jacobina ficou só. Viveu dias de solidão e abandono. No fim de oito dias, “deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim devia ter sido”. Mas, em seguida: “— Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho.”
Em contato com sua alma, enfrentou mais seis dias de solidão sem maiores preocupações.

7 – A chinela turca

O bacharel Duarte está pronto para ir ao encontro de dois belos olhos, namorados de uma semana, quando recebe a visita do major Lopo Alves. Além de ser enfadonho, Lopo Alves aparece numa hora inoportuna e traz consigo um drama. Claro, queria a opinião embasada do bacharel sobre os seus dotes literários. Ao todo, 180 páginas em 7 quadros recheados de mortes, suicídios e lágrimas. A leitura do drama fez chegar meia noite e decretar o fim do baile. De repente,  Lopo Alves se ergue e sai de cena irritado, um homem gordo aparece e o acusa de roubar uma chinela turca. É preso e levado para um lugar exótico. Lá descobre que a chinela turca era uma metáfora. Ele havia roubado o coração de Cecília, sua namorada. Duarte é levado a um lugar e um homem lhe apresenta a dona da chinela. Era belíssima e parecida com Cecília. Ele teria que se casar com a moça, fazer o testamento e tomar veneno. Antes do casamento, um padre propõe que ele fuja se atirando pela janela. Sai correndo desesperadamente, rompendo obstáculos, até chegar em sua casa e avistar o major Lopo Alves que lia o último quadro de sua enfadonha peça teatral. Duarte tivera um pesadelo enquanto o major lia seu drama. “Duarte acompanhou o major até à porta, respirou ainda uma vez, apalpou-se, foi até à janela. Ignora-se o que pensou durante os primeiros minutos; mas, a cabo de um quarto de hora, eis o que ele dizia consigo: — Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que o melhor drama está no espectador e não no palco.

   8 – Teoria do medalhão

  O conto pauta-se no diálogo entre Janjão e seu pai. Janjão vai completar a maioridade e o pai resolve dar-lhe conselhos. O melhor ofício? O de medalhão.” Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade; faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem, meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do compasso. O sábio que disse: "a gravidade é um mistério do corpo", definiu a compostura do medalhão.”. A tônica da narrativa é mostrar todo um aparato de atitudes sociais que beneficiam aqueles que adotam o comportamento do medalhão. Ou seja, é, na verdade, uma crítica ao comportamento artificial dos nossos vultos sociais. Ao final, o pai sugere ao filho, já com 22 anos, que leia O príncipe, de Maquiavel.

9 – Pai contra mãe

Narrado em terceira pessoa, o conto trata de Cândido Neves, o Candinho, que vivia de capturar escravos fugidos, depois de tentar vários ofícios. Casou-se o protagonista com Clara, que morava com Mônica, tia da moça. Após o casamento, a idéia de ter um filho começa a ganhar corpo e enfrentar a resistência de Mônica. Ela sabia que o casal não tinhas condições financeiras para tanto. O filho veio e as despesas também, mas os escravos fugidos estavam rareando. A concorrência aumentara. “Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria.”  Sem solução aparente para resolver o problema, Candinho foi levar seu filho para a Roda, instituição que cuidava de menores. De repente, avistou uma mulata fugida que procurava e que lhe daria boa remuneração. Era mesmo a mulata Arminda. Deixou a criança numa farmácia e foi à captura. “Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.
--Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!
-- Siga! repetiu Cândido Neves.
--Me solte!
--Não quero demoras; siga!”
Levada aos sopapos, Arminda foi entregue ao seu senhor, mas perdeu a criança. Candinho recebeu os cem mil réis salvadores e correu em busca do filho.” O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
--Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.

10 – A cartomante

Camilo e Vilela eram amigos de infância. Amigos inseparáveis. Vilela era magistrado e Camilo virou funcionário público. Um dia, Vilela encontra Rita. Apaixona-se. Casamento. Camilo era quase irmão de Rita. Vira seu amante. Triângulo amoroso e visitas constantes de Rita a cartomantes para ter a certeza de que Vilela de nada sabia. “Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo. 
Mesmo assim, Camilo continuou desconfiado e procurou a ajuda de uma cartomante, após receber um bilhete de Vilela convidando-o a uma visita.” A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela. curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita. . . Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
Na casa de Vilela é recebido pelo amigo. Rita está morta e Camilo é assassinado com dois tiros certeiros.

11 – Uns braços

 Inácio era o agente do solicitador Borges. Tinha quinze anos e vivia no mundo do aéreo. Era filho de um barbeiro da Cidade nova. No início do relato, Borges se queixa da falta de aptidão do rapaz para os afazeres burocráticos. Inácio, no fundo, vivia um mundo de solidão. Pensou em fugir, mas uma coisa o segurava: os braços de D. Severina, esposa do Borges. “Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços. D. Severina começou a perceber que toda distração do garoto era paixão por ela. Inicialmente  foi tomada por vaidade, depois chegou a pensar em contar ao marido. Por fim, resolveu ser áspera e não dar chance ao garoto, para que ele pudesse esquecer tudo. Com o tempo, a aspereza de D. Severina foi diminuindo e o rapaz chegou a ser tratado com certo carinho. Inácio, por sua vez, sonhava com D. Severina. Era a única coisa que fazia suportar a vida que levava. Um dia, deitado na rede, e após leitura de folhetins, Inácio cai no sono e sonho com D. Severina. Ela, após a saída do marido, olha para o quarto e contempla o garoto e se imagina no sonho dele.” D. Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas, principalmente novas, — ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.” O sonho coincidiu com a realidade. O garoto sonhava e D. Severina realizava a ação. Mas ela recuou com medo de que o garoto pudesse estar fingindo que dormia. Mas ele dormia muito. Na idéia dele fora apenas um sonho. Quando saiu da casa do Borges, o garoto achou estranho D. Severina não se despedir dele.

12 – Um homem célebre

A temática é a mesma de Cantiga de esponsais. O protagonista desta vez é o Pestana. Maestro das polcas, Pestana lutava para criar sua grande obra. “Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia: ele corria ao piano para aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão: a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart: mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça: mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.” E voltavam-lhe apenas as inspirações de polcas populares, feitas para inaugurações, vitórias do partido a ou b. Veio o casamento com Maria. Daí esperava tirar a inspiração para um noturno. Conseguiu, mas era idêntico ao de Chopin. Foi a própria Maria quem o alertou. A mulher veio a falecer. Tentou um réquiem, não deu certo. Desistiu. Voltou a fazer polcas, adoeceu. “Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarineta de teatro , referiu-lhe o estado do Pestana , de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era, o editor obedeceu.
— Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
— Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.
Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarineta foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.
— Adeus.
— Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.
Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo. “