Landisvalth Lima
1 - A
Igreja do Diabo
Machado de Assis |
O conto
está dividido em 4 capítulos e narra a idéia do Diabo de construir uma igreja.
Percebeu o adversário do Divino que as pessoas freqüentavam a igreja de Deus
pregavam bondade, igualdade, fraternidade, amor ao próximo, mas, no
comportamento cotidiânico, faziam exatamente o contrário. Era hora, pois, de
fazer uma igreja que pregasse o que os homens de fato faziam. Assim procedeu,
comunicando ao Senhor sua decisão. A igreja prosperou. Adeptos e seguidores
lotavam suas dependências. “Todas as
virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela
franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova.”. Um tempo depois, o Diabo percebeu que muitos
começavam a praticar antigas virtudes. “Certos glutões recolhiam-se a comer
frugalmente três ou quatro vezes por ano, justamente em dias de preceito
católico; muitos avaros davam esmolas, à noite, ou nas ruas mal povoadas;
vários dilapidadores do erário restituíam-lhe pequenas quantias; os
fraudulentos falavam, uma ou outra vez, com o coração nas mãos, mas com o mesmo
rosto dissimulado, para fazer crer que estavam embaçando os outros”. O
Diabo ficou espantado e indignado. Foi aos céus para falar com Deus e buscar
uma explicação para o fenômeno. Deus lhe disse: “— Que queres tu, meu pobre
Diabo? As capas de algodão têm agora franjas de seda, como as de veludo tiveram
franjas de algodão. Que queres tu? É a eterna contradição humana.”.
2 – Cantiga
de esponsais
O nome é
Romão Pires, o mestre Romão. Músico, 60 anos. Presença quase que obrigatória em
festas, batizados, espetáculos. Era o maestro que regia todas as festas. Mas
por que Romão Pires era triste? Simples.” Tinha
a vocação íntima da música; trazia dentro de si muitas óperas e missas, um
mundo de harmonias novas e originais, que não alcançava exprimir e pôr no
papel. Esta era a causa única da tristeza de mestre Romão.” Queria produzir
algo de seu, para ficar na história, para ser executado por outros maestros.
Bem que tentou. Chegou inclusive a iniciar alguma coisa, mas nada definitivo.
Um dia o mestre adoeceu e desejou produzir sua sonata.” O princípio do canto
rematava em um certo lá; este lá, que lhe caía bem no lugar, era a nota derradeiramente
escrita. Mestre Romão ordenou que lhe levassem o cravo para a sala do fundo,
que dava para o quintal: era-lhe preciso ar. Pela janela viu na janela dos
fundos de outra casa dois casadinhos de oito dias, debruçados, com os braços
por cima dos ombros, e duas mãos presas. Mestre Romão sorriu com tristeza.
— Aqueles
chegam, disse ele, eu saio. Comporei ao menos este canto que eles poderão
tocar...”
Impossível. Nenhuma inspiração.” Desesperado, deixou
o cravo, pegou do papel escrito e rasgou-o. Nesse momento, a moça embebida no
olhar do marido, começou a cantarolar à toa, inconscientemente, uma coisa nunca
antes cantada nem sabida, na qual coisa um certo lá trazia após si uma linda
frase musical, justamente a que mestre Romão procurara durante anos sem achar
nunca. O mestre ouviu-a com tristeza, abanou a cabeça, e à noite expirou.”
A lição do conto é a verdade do fato de haver pessoas
que nascem apenas para reproduzir; algumas produzem, criam.
3 - Marcha fúnebre
O deputado Cordovil recebe a
noticia da morte de um inimigo político seu. Nada de alegria ou alívio. Ao
contrário, ao saber do sofrimento, da morte lenta, dolorosa, parecia até
perdoar o inimigo morto.Um dia, ao voltar de um baile, Cordovil enfrenta
novamente a morte. Um homem havia morrido na estrada de repente.Morte rápida,
sem sofrimentos. O deputado passou a imaginar de como morreria e a imaginar as
diversas situações possíveis de sua morte.”Então a morte, que ele imaginara
pudesse ter sido no baile, antes de sair, ou no dia seguinte em plena sessão da
Câmara, apareceu ali mesmo no carro. Supôs ele que, ao abrirem‑lhe a
portinhola, dessem com o seu cadáver. Sairia assim de urna noite ruidosa para
outra pacífica, sem conversas, nem danças, nem encontros, sem espécie alguma de
luta ou resistência.” E de tanto pensar na morte, chegou a imaginar que
amanheceria morto. O sonho não se fez. “Quando veio a falecer, muitos anos
depois, pediu e teve a morte, não súbita, mas vagarosa, a morte de um vinho
filtrado, que sai impuro de uma garrafa para entrar purificado em outra; a
borra iria para o cemitério. Agora é que
lhe via a filosofia; em ambas as garrafas era sempre o vinho que ia ficando,
até passar inteiro e pingado para a segunda. Morte súbita não acabava de
entender o que era. “
4 - Miss Dollar
É o único conto romântico do
livro e narra a história de amor entre Mendonça e Margarida. O conto está
dividido em 8 capítulos e é a cadelinha Miss Dollar o motivo principal da união
dos protagonistas. “Mendonça era um homem como os outros; gostava de cães
como outros gostam de flores. Os cães eram as suas rosas e violetas;
cultivava-os com o mesmíssimo esmero.”. Margarida era “uma moça que
representava vinte e oito anos, no pleno desenvolvimento da sua beleza, uma
dessas mulheres que anunciam velhice tardia e imponente.(...) Mas
a grande distinção daquele rosto, aquilo que mais prendia os olhos, eram os
olhos; imaginem duas esmeraldas nadando em leite.”. Detalhe mais
significativo de Margarida: era viúva. O desaparecimento de Miss Dollar e a
publicação do anúncio fizeram com que Mendonça conhecesse Margarida. Missa
Dollar estava em seu canil. Foi entregá-la e conhece a paixão. É Andrade o
personagem que informa ao Mendonça a viuvez de Margarida e o fato de ela já ter
rejeitado cinco casamentos. Andrade foi uma das vítimas.”Mendonça desde esse
momento tratou de cortejar assiduamente a viúva; Margarida recebeu os primeiros
olhares de Mendonça com um ar de tão supremo desdém, que o rapaz esteve quase a
abandonar a empresa; mas, a viúva, ao mesmo tempo que parecia recusar amor, não
lhe recusava estima, e tratava-o com a maior meiguice deste mundo sempre que
ele a olhava como toda a gente.” Mas a viúva não correspondia. No fundo ela
tinha medo de os pretendentes estarem apenas interessados nos bens que ela
possuía. Mendonça partiu para o ataque e resolveu escrever uma carta abrindo o
jogo. Andrade disse-lhe que fizera mal. Todos os outros pretendentes fizeram a
mesma coisa e foram rejeitados. Mas Margarida respondeu. Ele escreveu outra,
mas não houve resposta. Mendonça afastou-se. Um dia, D. Antônia, tia de
Margarida, vai visitá-lo, diz que a viúva está doente e que o amava. Isto
depois de uma visita noturna inesperada de Mendonça ao lar de Margarida, numa
hora pouco recomendável. Fato é que Mendonça e Margarida se casaram. “Foi
modesta e reservada a cerimônia do casamento. Andrade serviu de padrinho, D.
Antônia de madrinha; Jorge falou no Alcazar a um padre, seu amigo, para
celebrar o ato.
D. Antônia quis que os noivos
ficassem residindo em casa com ela. Quando Mendonça se achou a sós com
Margarida, disse-lhe:
- Casei-me para salvar-lhe a
reputação; não quero obrigar pela fatalidade das cousas um coração que me não
pertence. Ter-me-á por seu amigo; até amanhã.”.
Fato é que tudo acabou mais ou
menos bem. “Os dous esposos são ainda noivos e prometem sê-lo
até a morte. Andrade meteu-se na diplomacia e promete ser um dos luzeiros da
nossa representação internacional. Jorge continua a ser um bom pândego; D.
Antônia prepara-se para despedir-se do mundo.
Quanto a Miss Dollar, causa
indireta de todos estes acontecimentos, saindo um dia à rua foi pisada por um
carro; faleceu pouco depois. Margarida não pôde reter algumas lágrimas pela
nobre cadelinha; foi o corpo enterrado na chácara, à sombra de uma laranjeira;
cobre a sepultura uma lápide com esta simples inscrição: A Miss Dollar.”
5 – Missa
do Galo
Nogueira vai visitar o amigo
Menezes na noite de Natal. Recebe-o Conceição, esposa do amigo. Enquanto
aguardava o horário da Missa do Galo, Nogueira tem longo diálogo com Conceição
e a mãe dela. Com o sono da mãe, Conceição ficou a sós com o convidado. A
ausência do marido e o ato de vestir um roupão dão o toque de sensualidade a
permitir ao leitor imaginar o início de um adultério. Bem que Conceição faz seu
papel, mas quem parecia conter-se era Nogueira. “Queria e
não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e
arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era
aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A
conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo”.Fato é que o
amigo da hora marcada chegou no momento crucial: Conceição parecia estar
devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz
que bradava: "Missa do galo!” (...) “Na manhã seguinte, ao almoço
falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a
curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna,
sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para
Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro em março, o escrivão tinha morrido
de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a
encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.”
6 – O espelho
O conto é narrado em terceira
pessoa. Quatro ou cinco senhores debatem questões em torno de um novo esboço da
alma humana, como reza o sub-título. O local é uma casa no alto do morro de
Santa Teresa. O quinto membro do grupo não falava, não discutia. Era Jacobina.
Casmurro, capitalista, instruído. Foi chamado a opinar. Não quis, mas narrou um
fato a partir da idéia de ter o ser duas almas. “Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que
olha de dentro para fora, outra que olha de fora para entro... Espantem-se à
vontade, podem ficar de boca aberta, dar de ombros, tudo; não admito réplica.
Se me replicarem, acabo o charuto e vou dormir. A alma exterior pode ser um
espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos,
por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa;
— e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas,
uma cavatina, um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é
transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é,
metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde
naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da
alma exterior implica a da existência inteira.” Jacobina inicia a narrativa
do fato. Ele era pobre, tinha 25 anos e foi nomeado alferes da Guarda
Nacional, motivo de orgulho de toda a família. Uma tia sua, D. Marcolina,
viúva do Capitão Peçanha, pediu-lhe que fosse ao sítio dela. Lá, Jacobina era
tratado como autoridade. Era Sr. alferes pra lá, Sr. alferes pra cá. O
entusiasmo da tia era tão grande que chegou a colocar um enorme espelho no
quarto do sobrinho. O tratamento era superior. Daí, “— O alferes eliminou o
homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou
que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade.
Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os
olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa,
tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do
cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a
outra dispersou-se no ar e no passado”. Mas a tia fez uma viagem inesperada e o
alferes ficou só com os escravos. Também tratado com gentilezas pelos escravos,
não percebeu que estavam armando fuga. Indo os escravos embora, Jacobina ficou
só. Viveu dias de solidão e abandono. No fim de
oito dias, “deu-me na veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de
achar-me dois. Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do
universo; não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada,
difusa, sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o
espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; assim
devia ter sido”. Mas, em seguida: “— Lembrou-me vestir a farda de
alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho,
levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a figura
integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o
alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma ausente com a dona do
sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho.”
Em contato com sua alma,
enfrentou mais seis dias de solidão sem maiores preocupações.
7 – A chinela turca
O
bacharel Duarte está pronto para ir ao encontro de dois belos olhos, namorados
de uma semana, quando recebe a visita do major Lopo Alves. Além de ser
enfadonho, Lopo Alves aparece numa hora inoportuna e traz consigo um drama.
Claro, queria a opinião embasada do bacharel sobre os seus dotes literários. Ao
todo, 180 páginas em 7 quadros recheados de mortes, suicídios e lágrimas. A
leitura do drama fez chegar meia noite e decretar o fim do baile. De
repente, Lopo Alves se ergue e sai de
cena irritado, um homem gordo aparece e o acusa de roubar uma chinela turca. É
preso e levado para um lugar exótico. Lá descobre que a chinela turca era uma
metáfora. Ele havia roubado o coração de Cecília, sua namorada. Duarte é levado
a um lugar e um homem lhe apresenta a dona da chinela. Era belíssima e parecida
com Cecília. Ele teria que se casar com a moça, fazer o testamento e tomar
veneno. Antes do casamento, um padre propõe que ele fuja se atirando pela
janela. Sai correndo desesperadamente, rompendo obstáculos, até chegar em sua
casa e avistar o major Lopo Alves que lia o último quadro de sua enfadonha peça
teatral. Duarte tivera um pesadelo enquanto o major lia seu drama. “Duarte acompanhou o major até à porta, respirou
ainda uma vez, apalpou-se, foi até à janela. Ignora-se o que pensou durante os
primeiros minutos; mas, a cabo de um quarto de hora, eis o que ele dizia
consigo: — Ninfa, doce amiga, fantasia inquieta e fértil, tu me salvaste de uma
ruim peça com um sonho original, substituíste-me o tédio por um pesadelo: foi
um bom negócio. Um bom negócio e uma grave lição: provaste-me ainda uma vez que
o melhor drama está no espectador e não no palco.”
8 – Teoria
do medalhão
O
conto pauta-se no diálogo entre Janjão e seu pai. Janjão vai completar a
maioridade e o pai resolve dar-lhe conselhos. O melhor ofício? O de medalhão.” Ser medalhão foi o sonho da minha mocidade;
faltaram-me, porém, as instruções de um pai, e acabo como vês, sem outra
consolação e relevo moral, além das esperanças que deposito em ti. Ouve-me bem,
meu querido filho, ouve-me e entende. És moço, tens naturalmente o ardor, a
exuberância, os improvisos da idade; não os rejeites, mas modera-os de modo que
aos quarenta e cinco anos possas entrar francamente no regime do aprumo e do
compasso. O sábio que disse: "a gravidade é um mistério do corpo",
definiu a compostura do medalhão.”.
A tônica da narrativa é mostrar todo um aparato de atitudes sociais que
beneficiam aqueles que adotam o comportamento do medalhão. Ou seja, é, na
verdade, uma crítica ao comportamento artificial dos nossos vultos sociais. Ao
final, o pai sugere ao filho, já com 22 anos, que leia O príncipe, de
Maquiavel.
9 – Pai contra mãe
Narrado em terceira pessoa, o
conto trata de Cândido Neves, o Candinho, que vivia de capturar escravos
fugidos, depois de tentar vários ofícios. Casou-se o protagonista com Clara,
que morava com Mônica, tia da moça. Após o casamento, a idéia de ter um filho
começa a ganhar corpo e enfrentar a resistência de Mônica. Ela sabia que o
casal não tinhas condições financeiras para tanto. O filho veio e as despesas
também, mas os escravos fugidos estavam rareando. A concorrência aumentara. “Postos
fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dous dias depois nasceu a
criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu
em dar a criança à Roda. "Se você não a quer levar, deixe isso comigo; eu
vou à Rua dos Barbonos." Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que
ele mesmo a levaria.” Sem
solução aparente para resolver o problema, Candinho foi levar seu filho para a
Roda, instituição que cuidava de menores. De repente, avistou uma mulata fugida
que procurava e que lhe daria boa remuneração. Era mesmo a mulata Arminda.
Deixou a criança numa farmácia e foi à captura. “Cândido Neves, com as mãos
robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar,
parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu
logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse
pelo amor de Deus.
--Estou grávida, meu senhor!
exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me
solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu
senhor moço!
-- Siga! repetiu Cândido Neves.
--Me solte!
--Não quero demoras; siga!”
Levada aos sopapos, Arminda foi
entregue ao seu senhor, mas perdeu a criança. Candinho recebeu os cem mil réis
salvadores e correu em busca do filho.” O pai recebeu o filho com a mesma
fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente,
fúria de amor. Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda
dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo com o filho e os cem mil-réis de
gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma
vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra
a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho,
entre lágrimas, verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
--Nem todas as crianças vingam,
bateu-lhe o coração.”
10 – A
cartomante
Camilo e Vilela eram amigos de
infância. Amigos inseparáveis. Vilela era magistrado e Camilo virou funcionário
público. Um dia, Vilela encontra Rita. Apaixona-se. Casamento. Camilo era quase
irmão de Rita. Vira seu amante. Triângulo amoroso e visitas constantes de Rita
a cartomantes para ter a certeza de que Vilela de nada sabia. “Um dia,
porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e
dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as
suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as
ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz.
Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram
inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma
intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia
do ato.
Foi por esse tempo que Rita,
desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira
causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a
confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda
algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão
apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum
pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas,
formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem
papel; só o interesse é ativo e pródigo.”
Mesmo assim, Camilo continuou
desconfiado e procurou a ajuda de uma cartomante, após receber um bilhete de
Vilela convidando-o a uma visita.” A cartomante não sorriu: disse-lhe só que
esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos
finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas. três
vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela. curioso e
ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma
a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada
aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante,
era indispensável muita cautela: ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor
que os ligava, da beleza de Rita. . . Camilo estava deslumbrado. A cartomante
acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao
espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da
cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo
innamorato...”
Na casa de Vilela é recebido pelo
amigo. Rita está morta e Camilo é assassinado com dois tiros certeiros.
11 – Uns braços
Inácio era o agente do
solicitador Borges. Tinha quinze anos e vivia no mundo do aéreo. Era filho de
um barbeiro da Cidade nova. No início do relato, Borges se queixa da falta de
aptidão do rapaz para os afazeres burocráticos. Inácio, no fundo, vivia um
mundo de solidão. Pensou em fugir, mas uma coisa o segurava: os braços de D.
Severina, esposa do Borges. “Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A
educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente, parece até
que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que
eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No
fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso.
Agüentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do
silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por
dia, o famoso par de braços. “ D. Severina começou a perceber que toda
distração do garoto era paixão por ela. Inicialmente foi tomada por vaidade, depois chegou a
pensar em contar ao marido. Por fim, resolveu ser áspera e não dar chance ao
garoto, para que ele pudesse esquecer tudo. Com o tempo, a aspereza de D.
Severina foi diminuindo e o rapaz chegou a ser tratado com certo carinho. Inácio,
por sua vez, sonhava com D. Severina. Era a única coisa que fazia suportar a
vida que levava. Um dia, deitado na rede, e após leitura de folhetins, Inácio
cai no sono e sonho com D. Severina. Ela, após a saída do marido, olha para o
quarto e contempla o garoto e se imagina no sonho dele.” D.
Severina ter-se-ia visto a si mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto
diante da rede, risonha e parada; depois inclinar-se, pegar-lhe nas mãos,
levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos braços. Inácio, namorado
deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas cálidas,
principalmente novas, — ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não
conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se,
para tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou
atravessando o corredor com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando,
inclinava-se, pegava-lhe outra vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até
que inclinando-se, ainda mais, muito mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um
beijo na boca.” O sonho coincidiu com a realidade. O garoto
sonhava e D. Severina realizava a ação. Mas ela recuou com medo de que o garoto
pudesse estar fingindo que dormia. Mas ele dormia muito. Na idéia dele fora
apenas um sonho. Quando saiu da casa do Borges, o garoto achou estranho D.
Severina não se despedir dele.
12 – Um homem célebre
A temática é a mesma de Cantiga
de esponsais. O protagonista desta vez é o Pestana. Maestro das polcas, Pestana
lutava para criar sua grande obra. “Às vezes, como que ia surgir das
profundezas do inconsciente uma aurora de idéia: ele corria ao piano para
aventá-la inteira, traduzi-la, em sons, mas era em vão: a idéia esvaía-se.
Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os dedos correrem, à ventura, a ver se
as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart: mas nada, nada, a inspiração
não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia,
definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e
que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte,
ir plantar café ou puxar carroça: mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com
os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.” E voltavam-lhe apenas as
inspirações de polcas populares, feitas para inaugurações, vitórias do partido
a ou b. Veio o casamento com Maria. Daí esperava tirar a inspiração para um
noturno. Conseguiu, mas era idêntico ao de Chopin. Foi a própria Maria quem o
alertou. A mulher veio a falecer. Tentou um réquiem, não deu certo. Desistiu.
Voltou a fazer polcas, adoeceu. “Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que
em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. Já estava em perigo, quando lhe
apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos
conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarineta
de teatro , referiu-lhe o estado do Pestana , de modo que o editor entendeu
calar-se. O doente é que instou para que lhe dissesse o que era, o editor
obedeceu.
— Mas há de ser quando estiver
bom de todo, concluiu.
— Logo que a febre decline um
pouco, disse o Pestana.
Seguiu-se uma pausa de alguns
segundos. O clarineta foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e
despediu-se.
— Adeus.
— Olhe, disse o Pestana, como é
provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra
servirá para quando subirem os liberais.
Foi a única pilhéria que disse em
toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas
e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo. “