sábado, 1 de dezembro de 2012

A vitalidade da obra de Clarice Lispector III

Conto: O chamado do cego
Obra se baseia num personagem de 'O Amor', obra-prima da narrativa clariciana

Silviano Santiago – de O ESTADO DE SÃO PAULO

Saio de casa às três da tarde. Todos os dias. Faça sol faça chuva. Não há motivo para eu sair de casa a essa hora ou em dia que não me convida ao prazer da caminhada pelas ruas de Botafogo, a não ser o fato de mamãe me perguntar, depois de o cuco cantar três vezes na sala de estar, por que você não vai dar a sua voltinha pelo Largo dos Leões.
Está na hora ? insiste ela, se não me mexo.
Quando estou para abrir a porta do apartamento, escuto sua voz de novo. Não vá esquecer a bengala na chapeleira. Às vezes a esqueço. Não é por esquecimento que a esqueço. Quem é que gosta de sair para passear com uma bengala branca? Está na cara que eu sou quem eu sou. A bengala branca é o pior dos chamarizes. Os passantes me encaram como se fosse bicho do mato em exposição numa jaula do Largo dos Leões. Pressinto o susto e pior! a piedade. Mais que os pressinto, tenho certeza. Interjeição é interjeição, nada é mais espontâneo no mundo. Foge do coração sem que a pessoa se dê conta.
Mamãe nunca diz para eu não esquecer o guarda-chuva quando está chuviscando. Ela sabe que não o esquecerei.
Ao sentar-me no banco para relaxar as pernas, deixo a bengala dependurada para o lado da relva e não do passeio. Se não a esqueço em casa, escondo-a quando posso. Às vezes peço ao dono da banca de jornal para guardá-la. Pego-a na volta, digo, quando for pegar Tribuna da Imprensa para a mamãe.
Mamãe pensa diferente. Sempre diz que um dia, sem a bengala, você ainda será atropelado por um doido ao volante. Quando ela diz doido ao volante, não tem jeito, penso logo em ás do volante. E é o nome de Chico Landi que me vem à mente, junto com o de Fangio. Mamãe não pode adivinhar que ser atropelado no Humaitá pelo grande vencedor do circuito de Bari, na Itália, seria a glória para o temerário homem da bengala branca.
Penso que canso mamãe. O dia inteiro em casa, ao seu lado, sem fazer nada de útil. Tem o direito de ter o apartamento só para ela, ainda que por algumas horas da tarde. Ela deve ter o direito de fazer o que bem entende sem ter de pensar que alguém da sua intimidade escuta os passos e os ruídos e adivinha tudo o que faz nas horas de folga. A vida íntima não é diferente da vida cotidiana? Será que ela não luta por conseguir manter como só suas algumas horas que serão vividas em total segredo de todas as pessoas, até do filho?
Mamãe é tolerante, embora nunca mais me tenha dado banho. Contratou a empregada da vizinha para vir dar-me banho pela manhã. Mamãe tem medo de que eu perca o equilíbrio e escorregue no piso ou na própria banheira. Eu também passei a ter medo e a exigir que a empregada me desse banho todos os dias. Só tiro a roupa depois que ela tranca a porta por dentro.
Sei que a empregada é preta retinta. Sei por que ela me disse. Disse-me também que, mesmo se eu pudesse enxergá-la, eu não a veria. Sua mãe me proíbe ? disse-me ela ? de acender a luz do banheiro e de abrir a janela que fica atrás da privada e dá para os fundos do prédio. Meu banho de chuveiro é na penumbra e, nas manhãs geladas do meio do ano, quando o chuveiro elétrico está no máximo, o banheiro parece um salão de banho turco, é o que a preta retinta me diz. Saio toda suada daqui, precisando dum banho. Posso ensaboar-me e me enxugar sem problema, mas mamãe insiste em dizer que quer me ver limpo e asseado, como o filho de Deus que sou.
Aliás, de há muito Terezinha deixou de ensaboar o que ela chama de minhas partes feias. Ordens de sua mãe - ela se justificou no primeiro dia e nunca mais voltou a tocar naquelas partes. Segura as mãos, mas não consegue segurar a língua. Vira e mexe toca no assunto. Mamãe tem razão. Quando ela me ensaboava as partes feias, era eu que tinha de me controlar. Fazia de conta que estava na rua e começava a chover, a ventar e a fazer frio. Imaginava que tinha de correr de volta ao apartamento antes que apanhasse um resfriado. Ensaboado, debaixo do chuveiro, controlo-me. Fico como se estivesse perdendo o fôlego por causa da correria. Fico resfolegando, que nem cavalo no Jóquei Clube depois da corrida.
Terezinha me perguntava se cego já nasce cansado. Aí eu já não pensava em mais nada, a não ser em reganhar a respiração normal.
Não conseguiria bater uma punheta na frente dela, embora não me faltasse a vontade, que deixo guardada lá dentro de tudo o que tem de ficar bem escondidinho na vida de todos os dias.
Terezinha insiste em me perguntar se eu sinto que estou pelado. Ela acha que, como sou cego, não sei quando estou vestido e quando estou sem roupa. Gosta de certificar-se se sei que estou assim ou assado. Depois de ela me tirar a roupa e de eu lhe assegurar que sei que estou assim ou assado, pergunta-me se eu, mesmo sendo cego, consigo ver os olhos de Deus e se passo pela vergonha que Adão e Eva passaram no paraíso, antes de serem expulsos por ordenação divina.
Ela não conversa comigo de maneira franca e direta sobre as partes feias. Enquanto me ensaboa ou me enxuga, fica resmungando que cego não deve saber o que é o pecado. Se soubesse, ia sentir vergonha, e eu não tinha vergonha nenhuma de me exibir para uma desconhecida. A inocência é a forma de misericórdia que Deus encontrou para compensar o ser humano da cegueira. Mais ela resmunga, mais me sinto feliz, embora eu saiba que ela, no fundo, está me pregando uma baita duma mentira.
Diz também que aprendeu com o padre no confessionário as palavras que fala. Ela lhe disse numa tarde e desde então passou a repetir que todos os dias dá banho num vizinho cego. Num marmanjão. O padre lhe garante que mulher dar banho em homem necessitado não é pecado. Deus sabe bem o que Ele nos manda e o que Ele não nos manda fazer, mas mesmo assim ele lhe passa a penitência de dez ave-marias, cinco padre-nossos e uma salve-rainha.
Ela discorda do julgamento do padre. Contrapõe à penitência a garantia de que nunca toca com maldade nas partes do corpo de homem que não são as partes do seu homem. Continua resmungando. E aí me garante que não é filha de Eva. Jura por tudo o que é mais sagrado.
Ela acha que o padre acha que ela tem a mente suja e que o homem cego, mesmo sendo um marmanjo, tem a mente limpa. Um dia perguntou ao padre se o cego tem a mente limpa só porque não enxerga. Ela se lembra da frase que ele lhe disse antes de fazer o pelo sinal da santa cruz que dava por terminada a confissão: É uma benesse de Deus poder remover dos olhos, para todo o sempre, a imagem profana. A misericórdia de Jesus é infinita.
Penso também que mamãe pensa que tenho de arriscar-me a sair sozinho em terreno estranho às quatro paredes do apartamento. Se eu não exijo nada dela, por que será que ela exige tanto de mim? Por que será que ela não gosta de me dar a mão na rua? Saio sozinho, ela sai sozinha. Caminho sozinho pelas ruas do Humaitá, ela caminha sozinha pelas ruas de toda a cidade. Tenho de sair de bengala branca e ela sai sem bengala, só com a rede para as compras.
Antes, aos sábados pela manhã, eu saía com o papai. Pegávamos o 21 aqui em frente de casa e íamos sacolejando pelos trilhos até o Jardim Botânico.
Papai sentia prazer em segurar minha mão e me mandar atentar para o cheiro das árvores, para o zumbir das abelhas e o chilrear das aves. Dizia-me que ficava siderado com a beleza e a diversidade da natureza. Deus é pai, e o homem é uma peste... - me diz ? penso assim porque tenho vontade de deitar com você na relva e lá está a tabuleta a nos avisar que é proibido pisar na grama. Dá multa pisar na grama.
Em companhia dele, cada detalhe do Jardim Botânico me parecia estranho. Suave demais, grande demais.
Caminhávamos os dois por uma das aleias do jardim e aí apareceu um gato. Vinha de detrás de uma árvore e devia estar com fome. Eu era então menininho. Papai me disse olha o gato! sem saber que eu não poderia ver o gato. Olho o gato e lhe digo não vejo o gato. Ele me diz pode ver sim, pode sim, garanto. Pela voz dele, posso ver o gato e, pelas palavras dele, posso sentir como o pelo do animal é macio e fofo. Ele anuncia que o gato angorá vem caminhando na nossa direção. Ele gosta da gente. Apanha-o no chão. Como é dócil o bichano, diz, e o acarinha e me pede para que eu o toque também. Veja como ele é belo e amigo.

Seu pelo é macio e fofo. Passei-lhe a mão direita.
Não é um gato, é uma gata - ele descobre e me diz.
Aí ele solta a gata no chão, que volta a caminhar pelo Jardim Botânico, e voltamos os dois felizes para casa.
Penso ainda que, desde que papai morreu e mamãe se aposentou, ela sente falta da Tribuna da imprensa que ele trazia debaixo do braço e lia todo santo dia. Para o seu pai, Lacerda está no céu e Deus na terra - me diziam os vizinhos no elevador. Nunca a tinha visto ler jornal. Papai é que chegava com o jornal na hora do jantar. Agora, mamãe se acostumou a lê-lo antes do jantar e a escutar, depois do jantar, o Repórter Esso na Rádio Nacional.
Antes, se os dois não fossem ao cinema na sessão das oito, ficavam conversando até que a noite caísse de vez. Quando iam ao cinema, não me deixavam sozinho em casa. Tínhamos empregada e ela ficava tomando conta de mim até eles voltarem. Pela conversa deles ficava sabendo do que acontecia no mundo, no Brasil e no Rio de Janeiro. Quando papai falava demais em política, mamãe dizia que não tolerava política. Quando papai falava demais em futebol, mamãe dizia que não tolerava futebol. Papai torcia pelo Fluminense e lembro que execrava três dos jogadores do Flamengo, Bria, Biguá e Pirilo, salvava Zizinho, um craque aquele. Ele voltava ao futebol e lhe dizia escuta mulher, vencemos de goleada o Flamengo, por 4 a 0, há que comemorar. Depois de muita prosa, passavam os dois da sala de estar ao quarto de dormir como o próprio dia passa para a noite e depois volta a ser dia.
Na minha cabeça mamãe gosta de comparar o que se escreve pela manhã sobre cada dia com o que se diz dele à noite. Não tenho coragem de lhe perguntar se é por isso que todos os dias lê o jornal e escuta a rádio. As notícias que saem na Tribuna da Imprensa e as que são ditas na Rádio Nacional não são as mesmas? Prefiro calar-me e adivinhar a resposta. Ela nunca me diz nada sobre as manchetes do dia, apenas repete que gosta da voz do Heron Domingues, o primeiro a dar as últimas. Voz viril, segundo ela. Admiro também sua dicção máscula ? diz. Vira-se para mim e acrescenta você deveria imitá-lo quando conversa com os outros na rua. Quando eu o escuto é como se estivesse a ouvir a voz do seu pai.
Volto para casa lá pelas cinco da tarde. Passo antes pela banca de jornal. Na ida, passo também pela banca de jornal. Nem preciso mais pedir ao seu Giuseppe as duas caixinhas de chicletes Adams a que tenho direito por ordem de mamãe. Uma com sabor de hortelã e a outra com sabor de tutti-frutti. Em cada caixinha vêm duas pastilhas dizem que brancas. Masco primeiro as pastilhas de hortelã. A primeira, e a outra logo em seguida. As duas formam um bolo dizem que cinzento que tira o gosto de almoço e de pasta dentifrícia que fica na boca. O ar escorre limpinho até os pulmões. Não ponho a mão no bolo, cuspo na sarjeta o chiclete insosso. Masco depois as duas pastilhas de sabor tutti-frutti. Adocicam e refrescam o hálito. Sinto o frescor na garganta e nas narinas. Antes de voltar para casa, cuspo a maçaroca na sarjeta.
Mamãe deixa que eu masque chicletes. Você gosta. Mas ela não gosta de me ver mascando. Só pode na rua, longe dos meus olhos. Diz que lembra o pai do pai dela que, depois de tomar café, ficava sentado na cadeira de balanço, mascando fumo de rolo. Era um nojo só. A mãe do pai dela achava o mesmo. Mas quem é que iria falar alguma coisa ao velho desdentado, um caipira que tinha vindo do interior de Minas? Outras vezes, me diz você parece boi ruminando capim no meio do pasto. Não nega a raça.
Não pago as duas caixinhas de chicletes e não pago o jornal. Não me lembro de ter tido muito dinheiro no bolso. Quando sai à rua, mamãe paga a conta ao italiano da banca. Ela não sai à rua como antes. Fica em casa o dia inteiro, lendo alguma coisa ou escutando o rádio. Na terça-feira ela faz as compras na feira e na mercearia. Todos os dias faz o café da manhã e cozinha o almoço e o jantar. Também os serve e lava a louça. Ajudo a secar os pratos, os talheres, os copos e até as panelas. Depois que o papai morreu ela despediu a empregada. Não se podia mais contar com ela. Tinha virado um traste inútil.
Tão logo o radinho de pilha apareceu nas Lojas Americanas, ela comprou o seu, que substituiu o outro grandote, modelo capelinha da Philco, que ocupava mais da metade de uma das prateleiras da cozinha. Era um verdadeiro estrupício. Mamãe gosta de ouvir esses programas infinitos em que o locutor conversa com alguém sobre as mil e uma mazelas e misérias por que a pessoa ou a família atravessam. Gosta mais dos programas da manhã. Se há um locutor que ela detesta é o Júlio Louzada. Piegas demais - diz.
Mamãe não gosta que eu diga chicletes. Corrige-me sempre: é goma de mascar, meu filho. Chicletes é palavra estrangeira. Eu respondo que chicletes é palavra estrangeira porque o chiclete é coisa estrangeira. O jornaleiro me disse que é coisa de inventor gringo que morou no México. Ele se chamava Adams, por isso é que a caixinha de chicletes se chama Adams. Adams é também nome estrangeiro. Não posso dizer chicletes, mas posso dizer Adams.
Ela me diz que sou pirracento e turrão. Puxei ao meu bisavô mineiro.
Mesmo estando aposentada, ela não perde o hábito de professora primária. Quando ela corrige minhas palavras ou quer mudar meu modo de falar, não acho que seja minha mãe. É pessoa diferente da que é quando pede que tome assento ao lado dela no sofá e diz para eu deitar o rosto no seu colo.
Eu disse ao Giuseppe que gosto de ficar deitado no sofá com o rosto recostado no colo da mamãe. O italiano me disse que estava virando 24 veado, que eu me cuidasse. Dia destes, você cai na boca do povo. Pergunto-lhe o que há de mal em ser 24 veado. Responde-me que nada, depende da parte que eu gosto de usar. Se a parte da frente ou se a parte de trás. Tem homem que sente mais prazer usando a parte de trás que a da frente. É 24 veado.
Respondi-lhe que usava a parte de trás e a parte da frente. Uma para cagar e a outra para mijar.
É bene, não é disso que estou falando, seu bobo. Deixa pra lá. Você não é 24 veado, é só filhinho da mamãe. Sorte sua que não vive solto no mundo. Teria virado um schifoso.
Nas manhãs de sábado, depois do passeio pelas aleias do Jardim Botânico, às vezes caminhávamos os dois até a Praça Santos Dumont, onde o público tem acesso ao hipódromo do Jóquei Clube. Papai não apostava em cavalos. Tinha raiva do vício de jogar, do uso lotérico do dinheiro e tinha ainda mais raiva das pessoas que iam apostar nos cavalos como se fossem eles encarnação de algum número de jogo do bicho. Corrida de cavalos não é uma roleta de cassino na Urca. Ia ao hipódromo da Gávea porque gostava de se ver cercado por cavalos de raça, com os cascos duros de pedra e o pescoço potente. No meio da arruaça do mundo moderno, tinha vontade de ser um deles. Fazer parte do bando.
Depois de passear pelo Jardim Botânico com você, eu sinto mais vontade ainda de ser cavalo. Eles me deixam desassossegado, me dizia, e repetia várias vezes a palavra desassossegado ao ritmo do trote dos animais em corrida e da voz do locutor que escoava do alto-falante. Existe um mundo de animais, a que eu não pertenço.
É uma pena - sua voz abandonava os cavalos e se virava para mim ? que você não escute o chamado deles. Quem sabe se você não foi chamado a ser um deles quando nasceu? Sua mãe pensa assim. Eu também penso assim, mas de maneira diferente. Desde criancinha você vê as coisas e o mundo como um cavalo os vê. Você não é um animal, é um potro selvagem! E esse é, na verdade, o meu maior desejo. Ter nascido como você é o meu desejo mais profundo.
Não conheci direito o papai. Saía pela manhã, chegava à noite com a Tribuna da imprensa debaixo do braço e ficava conversando com a esposa até altas horas da noite. Conversávamos quando íamos ou ao Jardim Botânico ou ao Jóquei Clube. Só aos sábados. O domingo era também dela, ou da família dela. Ele não tinha medo de mim. Tinha medo da mamãe e do seu ar de ameaça. Se ele se aproximava de mim para saber melhor quem eu era e para eu saber melhor quem ele era, o mundo, por ordem e vontade dela, despencaria do galho e se esborracharia no chão que nem fruta podre. Só ela tinha o direito de saber que havia uma fruta podre em casa. Era dela a fruta podre. Só dela.
Será que ela me escondia? Será que ainda me esconde? Se quiser me esconder, por que me pergunta se eu não vou dar a minha voltinha pelo Largo dos Leões.
Quando chegava sozinho do hipódromo da Gávea, ela me perguntava: e o seu pai?

Eu respondia dizendo que ele tinha me mandado descer do bonde e que ele ia continuar até a praia de Botafogo.
Cismava. Praia de Botafogo, praia de Botafogo... Só cego é que não vê.
Perdão, meu filho - disse logo depois.
Será que menino cego tem serventia? Serve para não ver o que o pai faz. Serve para enxergar o que a mãe não vê e quer saber sobre o marido? Será que papai traía mamãe às escondidas e com a ajuda do filho cego? Será que tenho alguma serventia? Não tinha como responder a essas perguntas, e o cuco cantava três vezes na sala de estar. Por que você não vai dar a sua voltinha pelo Largo dos Leões? - escutei.
Antes de abrir a porta, passei pela chapeleira e me muni da bengala branca.
Sentado no banco, mascando chicletes, escutei o 21 que subia a Rua São Clemente. Capengava mais que o normal. À entrada do Largo dos Leões o bonde latia que nem cão raivoso. Respirei profundamente e meus dentes mascavam com maior firmeza o chiclete de hortelã. Tive medo de morrer atropelado. O motorneiro perdia o controle dos freios, o coletor de energia perdia o contato com a rede aérea, o bonde saía dos trilhos, avançava para o espaço vazio e atropelava o cego que, sentado no banco, mascava seu chiclete de todas as tardes.
Varri o desastre da imaginação e, para enfrentar de cabeça erguida o perigo que vinha pela frente, levantei-me do banco onde estava sentado. Dei três passos até o meio-fio. Apoiei-me no poste para reganhar o equilíbrio. Estava apoiado no poste quando o motorneiro freava o bonde. Soltei o poste para apoiar todo o corpo na bengala branca. Através dela minha mão direita se comunicava com a pedra do meio-fio. Não ia escorregar para a sarjeta e ser atropelado por carro. Ouvi o bonde parar no ponto, em frente a mim. Foi aí que eu vi a mulher que me encarava. Estava sentada no banco de trás do bonde. Encarava-me como se estivesse vendo uma girafa no Jardim Zoológico.
Sou cego - gritei-lhe para que não tivesse medo de mim.
A mulher estava intranquila e continuava com medo. Não tinha medo da girafa, tinha medo de mim por ser um cego que mascava chicletes no Largo dos Leões. Mais me encarava, mais me iluminava e mais eu sentia o pau intumescer. Ele já gritava dentro das calças e ela o escutou gritando porque me encarou mais firmemente. Tive vergonha. Por ordenação divina, fui expulso do Paraíso. Como se se tratasse de uma enxada, segurei forte o cabo da bengala branca e, com as duas mãos tensas, levei-a até à altura da braguilha para controlar o descontrole repentino. A mulher me encarava. Ela sorria. Ria de mim? Meu pau se espichava bengala abaixo até encontrar apoio na pedra do meio-fio. Virei um homem cego de três pernas. Terezinha me dizia que tinha virado católica praticante no dia em que tinha sonhado com Exu.
Sentada, a mulher tinha me visto de pé, mascando chicletes, no ponto do bonde e teve medo. Sorria, no entanto. Não, não era riso de deboche. Eu vi. Juro que vi. Um sorriso de alegria desabrochava nos seus lábios. Ela me ama. O bonde deu a arrancada para partir. O solavanco despertou a mulher. Soltou um grito mais lancinante que o grito que meu membro intumescido e contido pela bengala branca soltava. Os dois gritos se cruzaram pelos ares do Largo dos Leões. Ela me amava. Sem se darem conta de mim, todos os passageiros olharam assustados para ela.
Voltei a sentar-me no banco. Era a vez das pastilhas com sabor de tutti-frutti.