Um movimento entre a ruptura
estética e o valor do passado. Projeto de brasilidade do modernismo ainda era
incipiente na Semana de 1922
Suzana Velasco – do jornal O
GLOBO
O grupo organizador da Semana de Arte de 22 |
RIO - Falar em modernismo
brasileiro é mais do que localizar no país tendências artísticas de pretensões
universais. O brasileiro é a marca fundamental pela qual o movimento, aqui, se
garantiu modernista. Pensar no nosso modernismo é pensar no folclore do "Macunaíma"
(1928) de Mário de Andrade e da música de Villa-Lobos; na antropofagia de
Oswald de Andrade e do "Abaporu" (1928) de Tarsila do Amaral,
retomada pela Tropicália. Antes de tudo isso, até hoje o marco do movimento no
imaginário corrente é a Semana de Arte Moderna de 1922. Só que naqueles dias
13, 15 e 17 de fevereiro de 90 anos atrás, a ideia de brasilidade era apenas um
borrão. O Brasil ainda era sobretudo um país cujo atraso deveria ser superado —
mesmo que os "passadistas" a serem combatidos estivessem na plateia
do Teatro Municipal de São Paulo, representados pela elite cafeeira
financiadora da programação de artes, música e literatura da Semana, no ano do
centenário da independência.
Em "A brasilidade
modernista: sua dimensão filosófica" — que, publicado originalmente em
1978, será reeditado em março pela Móbile —, Eduardo Jardim trata de dois
tempos do modernismo brasileiro. Segundo ele, a partir de 1917, havia uma
preocupação imediatista com a inserção na ordem moderna internacional, com uma forte
ideia de ruptura, norteadora da Semana de 1922. Já a partir de 1924, molda-se
um caminho construtivo para essa inserção, o da particularidade nacional — e
então a tradição cultural brasileira passa a ter valor.
— No primeiro momento, a
oposição de modernismo e passadismo é muito clara — afirma Jardim. — A
discussão era como modernizar a produção cultural brasileira pela absorção de
recursos expressivos modernos. Em 1924, já se percebe que essa perspectiva não
vai funcionar, e que se pode assegurar a entrada numa ordem universal por uma
mediação dos traços nacionais. Esses traços perduram ao longo do tempo, como o
folclore. Isso faz com que a ideia de ruptura seja revista.
Professor de Filosofia da
PUC-Rio, Jardim coordena a coleção Modernismo +90, da Casa da Palavra, que terá
11 livros sobre os desdobramentos do movimento em diversas áreas da cultura. Em
15 de março, serão lançados os dois primeiros: "Olhares sobre o moderno —
Arquitetura, patrimônio e cidade", com textos e entrevistas do arquiteto
Ítalo Campofiorito; e "Semana sem fim — Celebrações e memória da Semana de
Arte Moderna de 1922", em que Frederico Coelho analisa a visão desse marco
cultural ao longo do tempo, entre o mito, a crítica ponderada e a condenação.
— Em 1924, numa longa viagem
pelas cidades históricas de Minas, Oswald, Mário e Tarsila veem o barroco
mineiro, e todos falam da importância disso para suas pesquisas — conta Coelho,
professor de Literatura da PUC-Rio. — Por que essa viagem não foi considerada o
marco do modernismo? Existe um modelo de análise que vem dos manifestos e
movimentos de vanguarda europeus, e que a Semana seguiu. Mas isso não quer
dizer que ela não teve importância.
Mistura de interesses se
refletiu na programação
O "primeiro momento"
do modernismo — que Mário de Andrade, em 1942, chamaria de "tempo
destruidor" — é contado pelo jornalista Marcos Augusto Gonçalves em
"1922 — A semana que não terminou", que a Companhia das Letras lança na
próxima sexta, dia 10. Numa reportagem de cunho histórico, ele explora a rede
de relações que culminou na Semana, inaugurada com uma exposição de artistas
como Victor Brecheret, Di Cavalcanti e Anita Malfatti.
Depois de estudos em Berlim e
Nova York, Anita abrira em 1917 — ano que Jardim usa como início desse primeiro
tempo — a primeira mostra no país a se autodenominar moderna, que entrou para a
História pela crítica feroz de Monteiro Lobato. O escritor condenou aquela
"arte caricatural" tipicamente europeia, vinculando-a à perturbação
mental. Já para Oswald, sua pintura causava "impressão de originalidade e
de diferente visão". Mais do que por características próprias, naquele
momento a obra era moderna sobretudo por ser diferente — e essa diferença ainda
era, em grande medida, representada pelo que se criava lá fora.
Teatro Municipal de São Paulo em 22 |
Lobato defendia um caminho
próprio para a arte brasileira — e o "moderno" era sinônimo de
estrangeiro. Seu nacionalismo se voltava para o mundo rural paulista,
representado por artistas como Almeida Júnior (1850-1899), mas a São Paulo que
se projetava na jovem República era a cidade industrial, do progresso. As
contradições desse momento são bem representadas no livro de Gonçalves por
encontros como o do restaurante Trianon em 1921, em homenagem a Menotti del
Picchia, com "homens das finanças, jornalistas, poetas e escritores da
velha e da jovem guarda". Ali, Oswald exaltou o "tumulto egoísta e
inteligente de São Paulo" e vociferou contra os "formalistas negados
e negadores", num discurso que, mantendo o tom antiquado desses mesmos
formalistas, foi aplaudido por eles.
— O projeto da Semana se
inscrevia num projeto maior de projeção de São Paulo no plano intelectual — diz
Gonçalves. — São Paulo, que rapidamente passou de vila colonial a cidade
grande, já tinha um poder econômico definido e lançava suas ambições culturais.
Havia um setor esclarecido dessa elite, que valorizava a independência
proclamada na cidade e o mito do bandeirante paulista. Isso cabia bem a uma
cidade mais provinciana, buscando se afirmar.
Teatro Municipal de São Paulo hoje |
A mistura de interesses se
refletiu na Semana, que, encapada por um discurso revolucionário, ainda
misturava a arte "acadêmica" e as experimentações. Com grande
improviso, o evento foi pensado também por homens vinculados a círculos mais
tradicionais, como o diplomata e escritor Graça Aranha e o investidor Paulo
Prado, que assegurou a realização do evento. A Semana teve a pianista Guiomar Novaes tocando Debussy e a
música inovadora de Villa-Lobos, com 20 composições, vaiadas e aplaudidas; os
trechos do primeiro romance de Oswald, de linguagem ainda convencional, e a
leitura do poema "Os sapos", de Manuel Bandeira, causador de reações
inflamadas; a conferência morna de Graça Aranha e o discurso triunfalista de
Menotti del Picchia, uma ode a "motores, chaminé de fábricas, sangue,
velocidade, sonho".
Tarsila do Amaral, que se tornaria símbolo do modernismo, estava em Paris, e
voltou ao Brasil em junho de 1922.
Nos anos 1980, críticas à
centralidade dada à Semana
Passeando pela imprensa do
século XX, Frederico Coelho nota como o mito de uma Semana divisora de águas na
cultura se consolidou nos anos 1970, quando o modernismo foi celebrado tanto
pela esquerda quanto pelo governo da ditadura, pela valorização da identidade
nacional. Nesse momento, a ideia de antropofagia trazida pelo Manifesto
Antropófago e pelo "Abaporu" de Tarsila, ambos de 1928, tinha sido
levada a sua máxima potência com o tropicalismo, na arte de Hélio Oiticica, no
teatro de José Celso Martinez Corrêa, na música de Tom Zé, Mutantes, Caetano e
Gil.
Três décadas antes, conta o
pesquisador, a revista "Dom Casmurro" decretara a morte do
modernismo, em 1942, ideia reforçada três anos depois com a morte de Mário de
Andrade e o fim do Estado Novo. Uma reflexão menos dicotômica se deu nos anos
1980, quando pesquisadores passaram a questionar a excessiva centralidade dada
à Semana no modernismo, sem decretar sua morte. Foi um momento marcado pela
crise do ideal universal de progresso — que norteou o movimento mesmo quando
ele se voltou para traços do passado nacional em seu projeto de brasilidade,
como lembra Pedro Duarte, professor de Filosofia da UniRio, que prepara "A
palavra modernista: vanguarda e manifesto" para a coleção Modernismo +90.
— No modernismo, questiona-se a
forma pela qual o Brasil vai se inserir no Ocidente, ao qual ele pertence, mas
de um modo próprio — afirma Duarte, que vê a presença de um pensamento
modernista no Brasil até os anos 1970. — O discurso de Caetano no Festival da
Canção de 1968 talvez seja um dos últimos manifestos modernistas, com o
enfrentamento do público, a ligação entre arte e política, a colocação de uma
primeira pessoa do singular, tudo sob o título de "é proibido
proibir", um grito de liberação de cânones e preconceitos que me parece
típico dessa modernidade.