sexta-feira, 13 de abril de 2012

Por dentro da Tropicália


Artigo de 29/10/2009
por Luciano Trigo – de O GLOBO (G1)
Christopher Dunn analisa o impacto do movimento na (auto)imagem do Brasil

Christopher Dunn
Gosto de ler ensaios sobre a cultura brasileira escritos por estrangeiros, porque às vezes o Brasil parece mais claro e compreensível quando é visto por quem está fora do que por quem está dentro. Talvez isso aconteça porque, nas análises domésticas, a opinião muitas vezes prevalece sobre a pesquisa, e se dá mais importância ao estilo que ao rigor. Por exemplo, acabo de ler Brutalidade Jardim – A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira, do americano Christopher Dunn (UNESP, 280 pgs. R$37), que combina clareza e profundidade como raras vezes se vê nos livros nacionais sobre o assunto. Mais que uma recapitulação histórico-jornalística dos principais personagens e episódios da Tropicália, Dunn, professor da Tulane University, onde dirige o Brazilian Studies Council, investiga as raízes, as contradições e os desdobramentos do movimento que teve um impacto profundo na imagem que temos (e que os outros têm) do Brasil. “Brutalidade Jardim” é um verso da música Geléia Geral, de Gilberto Gil, tirado das Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. O livro de Christopher Dunn tem prefácio de José Celso Martinez Corrêa.
- Que relação você estabelece entre a Tropicália e a Semana de Arte Moderna de 22?
CHRISTOPHER DUNN: A Semana de 22 foi um marco importante da tradição cultural e intelectual de se “pensar o Brasil” e, portanto, pode ser vista como uma das várias raizes da Tropicália, sobretudo a antropofagia de Oswald de Andrade.
- A ditadura foi um dos períodos mais criativos no Brasil, em termos de música, cinema e teatro. A tensão política pode tornar a cultura mais interessante?
DUNN: Não necessariamente. O Brasil teve também um período de muita criatividade no final dos anos 50, durante a euforia do desenvolvimentismo democrático de Kubitschek. Foi quando surgiram a Bossa Nova, a poesia concreta, o neoconcretismo, o Cinema Novo, os teatros Arena e Oficina, toda aquela efervescência cultural na Bahia ligada à Universidade da Bahia, a construção de Brasília etc. Viver sob uma ditadura tornou-se um tema de extrema importância durante o regime militar, mas a criatividade floresceu apesar, e não por causa, da repressão. As tensões sempre existem, mesmo quando uma sociedade tem liberdades democráticas, porque sempre permanecem contradições e conflitos. Nesse sentido, o momento atual no Brasil pode ser considerado bem interessante de ponto de vista da criação artística. O momento tropicalista foi particularmente criativo, porque houve um diálogo muito intenso entre artistas de vários campos, algo que é sempre possível.
- Os tropicalistas debochavam das imagens fantasiosas do Brasil e, ao mesmo tempo, a influência crescente dos meios de comunicação de massa e a mentalidade consumista. Mas, no final das contas, essas imagens e essa mentalidade não sobrevivem?Em outras palavras, a contracultura não foi derrotada?
DUNN: Os tropicalistas brincaram com as imagens absurdas do Brasil, algo que incomodou o crítico Roberto Schwarz. Ele achava que o deboche podia até reforçar algumas das contradições históricas do país, em vez de resolvê-las dialeticamente. Alguns anos depois, Caetano respondeu ao crítico na música “Love, love, love” dizendo que o Brasil “pode ser um absurdo, mas ele não é surdo/ o Brasil tem um ouvido musical que não é normal.” Outra pessoa muito atenta a essas imagens absurdas do Brasil é o grande diretor Zé Celso Martinez Correa, cuja produção, em 1967, de O rei da vela, de Oswald de Andrade, revolucionou o palco brasileiro e teve uma influência profunda nos baianos. A idéia básica da Tropicália era ressaltar o absurdo, a contradição em si, sem propor uma solução, justamente para incomodar o público. O perigo, para Schwarz, era que essas imagens, essencialmente irônicas e carnavalescas, passando pela estética do kitsch, podiam ser consumidas de forma acrítica e celebratória, à maneira do Chacrinha. Hélio Oiticica também se incomodava com o que chamou de “celebração das bananas”, que ele via como uma deturpação da idéia original da Tropicália, que procurava lidar criticamente com o “problema” da imagem — aliás, The Image Problem é o título de um texto que ele escreveu em inglês. É verdade, que essa vertente pop-kitsch teve mais ascendência que a vertente construtivista-vanguardista do Hélio, pelo menos naquele tempo. Nesse sentido, as canções tropicalistas tinham mais em comum com as obras de artistas plásticos como Rubens Gerchman, que lidava mais com imagens “popularescas” e com a estética do kitsch. Por outro lado, as performances aproximavam Hélio no sentido de criar um “ambiente total” de imagem e som, como ele próprio afirmou em um texto de 1968. Devemos lembrar que os músicos tropicalistas, sobretudo Caetano Veloso e Gilberto Gil, não “criticavam” tanto assim o consumo e a mídia, nem em sua forma “chacrinesca”. Eles queriam fazer sucesso, cantar na televisão, fazer pop music. Se entendemos por contracultura uma atitude anti-consumo, então a contracultura de fato “perdeu”, mas acho que a contracultura teve outras facetas, inclusive facetas que dependiam do consumo de novos estilos e produtos culturais. Nesse sentido, a contracultura é ambígua.
- Na música, a Tropicália não trouxe exatamente um gênero novo, mas reprocessou elementos do passado. Você concorda?
DUNN: Sem dúvida. Em termos de música, os tropicalistas nunca propuseram um novo estilo, como a Bossa Nova, e muito menos um novo gênero musical, como o samba. A proposta era de fazer samplings e justaposições de vários estilos e gêneros musicais oriundos não somente do Brasil, mas também da Hispano-América, sobretudo Cuba, e do mundo afro-anglo do rock e do soul.
- Não é estranho que muitos artistas da Tropicália, um movimento que desafiava o establishment, tenham se tornado bem-sucedidas estrelas internacionais, sendo, de certa forma, absorvidos pelo sistema que combatiam?
DUNN: Não acho estranho. Muitos artistas que surgiram nos anos 60 com uma proposta poliítica e/ou cultural de contestação depois acharam caminhos profissionais dentro do “sistema”. É um pouco ingênuo imaginar que Caetano e Gil deviam ter mantido uma posição de marginalidade em relação ao sucesso artístico ou ao poder político. Até porque eles sempre procuraram ter sucesso, mesmo agitando e desafiando os padrões da MPB naquele tempo. Pode-se até criticar a atuação do Gil como ministro ou o disco mais novo do Caetano, mas acho uma tolice criticá-los por terem alcançado posições de destaque no cenário nacional e internacional.
- Tom Zé parece cativar mais os estrangeiros que os próprios brasileiros. Além da divulgação feita por David Byrne, que outros fatores explicam isso, já que muitos aspectos interessantes de suas letras se perdem na tradução?
DUNN: Acho que de alguma forma Tom Zé ajudou a transformar as expectativas do ouvinte norte-americano e europeu em relação à música brasileira, que foi consumida por muitos anos como um grande desdobramento da Bossa Nova, muito ligado ao mundo de jazz, ou então como uma vertente tropical e latina da world music, termo muito criticado pelo próprio David Byrne. Tom Zé abriu os ouvidos para uma tradição experimental e vanguardista na música brasileira que havia passado despercebida – salvo algumas exceções, como a música instrumental de Hermeto Pascoal, uma exceção que confirma a regra porque a inserção internacional do Hermeto sempre se deu através do jazz. A coletânea do Tom Zé organizada por David Byrne saiu em 1990 e preparou o terreno para a apreciação tardia da música tropicalista no exterior. É verdade que muitos americanos não conhecem bem a música brasileira, mas adoram a música de Tom Zé. A turnê americana com Tortoise, em 1999, reforçou esta tendência. Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que o público brasileiro de Tom Zé também cresceu muito, de lá para cá. Acho que ele merece ainda mais reconhecimento, mas estamos longe daqueles tempos, nos anos 80, quando seu público era de alguns estudantes e intelectuais paulistas.
- Esse fenômeno coincidiu com a ascendência póstuma do Hélio Oiticica no mundo de artes plásticas?
DUNN: Sim, mas foram dois processos diferentes. O último deveu-se em grande parte ao trabalho cuidadoso da família Oiticica, de amigos-artistas como Luciano Figueiredo e do saudoso Waly Salomão, além de críticos estrangeiros, como Guy Brett. Que eu saiba, a primeira vez que se juntou um tropicalista musical com a obra do Hélio foi quando Tom Zé tocou na abertura da retrospectiva no Walker Arts Center, em Minneapolis, em 1993. Podia ter sido no Whitechapel Gallery, em Londres, em 1969, mas Caetano e Gil chegaram exilados alguns meses depois da famosa exposição organizada por Guy Brett.
- O nome Tropicália veio de uma exposição de 1967, de Hélio Oiticica. VocÊ soube do incêndio que destruiu boa parte da obra do artista?
DUNN: Sim, eu fiquei muito abalado e triste com a notícia. É uma perda enorme, mas a obra maior de Hélio foram suas idéias e projetos, que permancerão para sempre.
- “Brutalidade Jardim” é um verso que capta a essência e a ambigüidade da Tropicála, que desmonta o discurso do Brasil como paraído tropical, mas ao mesmo tempo é fascinada por ele. Mas qual é a imagem do Brasil no exterior hoje? A meta de destruir a imagem do jardim foi alcançada?
DUNN: Se a imagem do Brasil no exterior enquanto jardim idílico foi destruída, não foi por causa dos tropicalistas. A ironia tropicalista, que desmantelou a ideologia da modernidade conservadora do regime, foi em grande medida para consumo interno, durante a época da ditadura. Quando surgiu o interesse pela Tropicália no exterior, ele passou mais pela questão formal, pelas novidades sonoras, do que pela crítica subversiva ao regime e sua ideologia. Alguns anos atrás, Caetano Veloso escreveu um artigo em tom freyreano, meio sebastianista, defendendo uma nova utopia brasileira enquanto país mestiço de língua portuguesa. Mais tarde Gilberto Gil afirmou que o Brasil “tinha lições a dar” para o mundo, quando tomou posse como Ministro de Cultura. É claro que eles continuam também a fazer músicas críticas ao quadro social, mas tendem a ver o Brasil com mais otimismo. A destruição do “Brasil Jardim” se deve sobretudo ao narcotráfico e a violência policial dos tempos atuais. Mesmo assim, acho a imagem do Brasil continua muito positiva no exterior, o Lula é visto com muita simpatia, e os avanços econômicos e sociais são cada vez mais reconhecidos. Mesmo quando esta imagem passa pela chave do estereótipo, tende a ser algo positivo e alegre. A imagem do Brasil como paraíso tropical permanece mesmo quando se sabe que não é verdade.
TRECHO DE ‘BRUTALIDADE JARDIM’:
“O Festival de Música de 1968 da TV Record gerou o primeiro mal-entendido público entre o grupo tropicalista e Chico Buarque. Foi divulgado que, durante a rodada final, Gilberto Gil vaiou a música de Chico ‘Bem-vinda’, por ser ultrapassada. Apesar de Gil ter negado o episódio, Chico reagiu com um artido discreto, criticando Gil e observando que ‘nem toda loucura é genial. nem toda lucidez é velha’. Os tropicalistas menosprezaram o incidente com elogios ambíguos a Chico Buarque. Tom Zé, por exemplo, disse com ironia: ‘Eu respeito o Chico. Quero dizer, tenho que respeitá-lo. Afinal, ele é meu avô’. Por sua vez, Caetano negou qualquer conflito entre ele e Chico, mas observou que ‘enquanto ele fala de supernostalgia, eu falo de super-realidade’.”