Conto: O chamado do cego
Obra se baseia num personagem de
'O Amor', obra-prima da narrativa clariciana
Silviano Santiago – de O ESTADO
DE SÃO PAULO
Saio de casa às três da tarde.
Todos os dias. Faça sol faça chuva. Não há motivo para eu sair de casa a essa
hora ou em dia que não me convida ao prazer da caminhada pelas ruas de
Botafogo, a não ser o fato de mamãe me perguntar, depois de o cuco cantar três
vezes na sala de estar, por que você não vai dar a sua voltinha pelo Largo dos
Leões.
Está na hora ? insiste ela, se
não me mexo.
Quando estou para abrir a porta
do apartamento, escuto sua voz de novo. Não vá esquecer a bengala na
chapeleira. Às vezes a esqueço. Não é por esquecimento que a esqueço. Quem é
que gosta de sair para passear com uma bengala branca? Está na cara que eu sou
quem eu sou. A bengala branca é o pior dos chamarizes. Os passantes me encaram
como se fosse bicho do mato em exposição numa jaula do Largo dos Leões.
Pressinto o susto e pior! a piedade. Mais que os pressinto, tenho certeza.
Interjeição é interjeição, nada é mais espontâneo no mundo. Foge do coração sem
que a pessoa se dê conta.
Mamãe nunca diz para eu não
esquecer o guarda-chuva quando está chuviscando. Ela sabe que não o esquecerei.
Ao sentar-me no banco para
relaxar as pernas, deixo a bengala dependurada para o lado da relva e não do
passeio. Se não a esqueço em casa, escondo-a quando posso. Às vezes peço ao
dono da banca de jornal para guardá-la. Pego-a na volta, digo, quando for pegar
Tribuna da Imprensa para a mamãe.
Mamãe pensa diferente. Sempre diz
que um dia, sem a bengala, você ainda será atropelado por um doido ao volante.
Quando ela diz doido ao volante, não tem jeito, penso logo em ás do volante. E
é o nome de Chico Landi que me vem à mente, junto com o de Fangio. Mamãe não
pode adivinhar que ser atropelado no Humaitá pelo grande vencedor do circuito
de Bari, na Itália, seria a glória para o temerário homem da bengala branca.
Penso que canso mamãe. O dia
inteiro em casa, ao seu lado, sem fazer nada de útil. Tem o direito de ter o
apartamento só para ela, ainda que por algumas horas da tarde. Ela deve ter o
direito de fazer o que bem entende sem ter de pensar que alguém da sua intimidade
escuta os passos e os ruídos e adivinha tudo o que faz nas horas de folga. A
vida íntima não é diferente da vida cotidiana? Será que ela não luta por
conseguir manter como só suas algumas horas que serão vividas em total segredo
de todas as pessoas, até do filho?
Mamãe é tolerante, embora nunca
mais me tenha dado banho. Contratou a empregada da vizinha para vir dar-me
banho pela manhã. Mamãe tem medo de que eu perca o equilíbrio e escorregue no
piso ou na própria banheira. Eu também passei a ter medo e a exigir que a
empregada me desse banho todos os dias. Só tiro a roupa depois que ela tranca a
porta por dentro.
Sei que a empregada é preta
retinta. Sei por que ela me disse. Disse-me também que, mesmo se eu pudesse
enxergá-la, eu não a veria. Sua mãe me proíbe ? disse-me ela ? de acender a luz
do banheiro e de abrir a janela que fica atrás da privada e dá para os fundos
do prédio. Meu banho de chuveiro é na penumbra e, nas manhãs geladas do meio do
ano, quando o chuveiro elétrico está no máximo, o banheiro parece um salão de
banho turco, é o que a preta retinta me diz. Saio toda suada daqui, precisando
dum banho. Posso ensaboar-me e me enxugar sem problema, mas mamãe insiste em
dizer que quer me ver limpo e asseado, como o filho de Deus que sou.
Aliás, de há muito Terezinha
deixou de ensaboar o que ela chama de minhas partes feias. Ordens de sua mãe -
ela se justificou no primeiro dia e nunca mais voltou a tocar naquelas partes.
Segura as mãos, mas não consegue segurar a língua. Vira e mexe toca no assunto.
Mamãe tem razão. Quando ela me ensaboava as partes feias, era eu que tinha de
me controlar. Fazia de conta que estava na rua e começava a chover, a ventar e
a fazer frio. Imaginava que tinha de correr de volta ao apartamento antes que
apanhasse um resfriado. Ensaboado, debaixo do chuveiro, controlo-me. Fico como
se estivesse perdendo o fôlego por causa da correria. Fico resfolegando, que
nem cavalo no Jóquei Clube depois da corrida.
Terezinha me perguntava se cego
já nasce cansado. Aí eu já não pensava em mais nada, a não ser em reganhar a
respiração normal.
Não conseguiria bater uma punheta
na frente dela, embora não me faltasse a vontade, que deixo guardada lá dentro
de tudo o que tem de ficar bem escondidinho na vida de todos os dias.
Terezinha insiste em me perguntar
se eu sinto que estou pelado. Ela acha que, como sou cego, não sei quando estou
vestido e quando estou sem roupa. Gosta de certificar-se se sei que estou assim
ou assado. Depois de ela me tirar a roupa e de eu lhe assegurar que sei que
estou assim ou assado, pergunta-me se eu, mesmo sendo cego, consigo ver os
olhos de Deus e se passo pela vergonha que Adão e Eva passaram no paraíso,
antes de serem expulsos por ordenação divina.
Ela não conversa comigo de
maneira franca e direta sobre as partes feias. Enquanto me ensaboa ou me
enxuga, fica resmungando que cego não deve saber o que é o pecado. Se soubesse,
ia sentir vergonha, e eu não tinha vergonha nenhuma de me exibir para uma
desconhecida. A inocência é a forma de misericórdia que Deus encontrou para
compensar o ser humano da cegueira. Mais ela resmunga, mais me sinto feliz,
embora eu saiba que ela, no fundo, está me pregando uma baita duma mentira.
Diz também que aprendeu com o
padre no confessionário as palavras que fala. Ela lhe disse numa tarde e desde
então passou a repetir que todos os dias dá banho num vizinho cego. Num
marmanjão. O padre lhe garante que mulher dar banho em homem necessitado não é
pecado. Deus sabe bem o que Ele nos manda e o que Ele não nos manda fazer, mas
mesmo assim ele lhe passa a penitência de dez ave-marias, cinco padre-nossos e
uma salve-rainha.
Ela discorda do julgamento do
padre. Contrapõe à penitência a garantia de que nunca toca com maldade nas
partes do corpo de homem que não são as partes do seu homem. Continua
resmungando. E aí me garante que não é filha de Eva. Jura por tudo o que é mais
sagrado.
Ela acha que o padre acha que ela
tem a mente suja e que o homem cego, mesmo sendo um marmanjo, tem a mente
limpa. Um dia perguntou ao padre se o cego tem a mente limpa só porque não
enxerga. Ela se lembra da frase que ele lhe disse antes de fazer o pelo sinal
da santa cruz que dava por terminada a confissão: É uma benesse de Deus poder
remover dos olhos, para todo o sempre, a imagem profana. A misericórdia de
Jesus é infinita.
Penso também que mamãe pensa que
tenho de arriscar-me a sair sozinho em terreno estranho às quatro paredes do
apartamento. Se eu não exijo nada dela, por que será que ela exige tanto de
mim? Por que será que ela não gosta de me dar a mão na rua? Saio sozinho, ela
sai sozinha. Caminho sozinho pelas ruas do Humaitá, ela caminha sozinha pelas
ruas de toda a cidade. Tenho de sair de bengala branca e ela sai sem bengala,
só com a rede para as compras.
Antes, aos sábados pela manhã, eu
saía com o papai. Pegávamos o 21 aqui em frente de casa e íamos sacolejando
pelos trilhos até o Jardim Botânico.
Papai sentia prazer em segurar
minha mão e me mandar atentar para o cheiro das árvores, para o zumbir das
abelhas e o chilrear das aves. Dizia-me que ficava siderado com a beleza e a
diversidade da natureza. Deus é pai, e o homem é uma peste... - me diz ? penso
assim porque tenho vontade de deitar com você na relva e lá está a tabuleta a
nos avisar que é proibido pisar na grama. Dá multa pisar na grama.
Em companhia dele, cada detalhe
do Jardim Botânico me parecia estranho. Suave demais, grande demais.
Caminhávamos os dois por uma das
aleias do jardim e aí apareceu um gato. Vinha de detrás de uma árvore e devia
estar com fome. Eu era então menininho. Papai me disse olha o gato! sem saber
que eu não poderia ver o gato. Olho o gato e lhe digo não vejo o gato. Ele me
diz pode ver sim, pode sim, garanto. Pela voz dele, posso ver o gato e, pelas
palavras dele, posso sentir como o pelo do animal é macio e fofo. Ele anuncia
que o gato angorá vem caminhando na nossa direção. Ele gosta da gente. Apanha-o
no chão. Como é dócil o bichano, diz, e o acarinha e me pede para que eu o
toque também. Veja como ele é belo e amigo.
Seu pelo é macio e fofo.
Passei-lhe a mão direita.
Não é um gato, é uma gata - ele
descobre e me diz.
Aí ele solta a gata no chão, que
volta a caminhar pelo Jardim Botânico, e voltamos os dois felizes para casa.
Penso ainda que, desde que papai
morreu e mamãe se aposentou, ela sente falta da Tribuna da imprensa que ele
trazia debaixo do braço e lia todo santo dia. Para o seu pai, Lacerda está no
céu e Deus na terra - me diziam os vizinhos no elevador. Nunca a tinha visto
ler jornal. Papai é que chegava com o jornal na hora do jantar. Agora, mamãe se
acostumou a lê-lo antes do jantar e a escutar, depois do jantar, o Repórter
Esso na Rádio Nacional.
Antes, se os dois não fossem ao
cinema na sessão das oito, ficavam conversando até que a noite caísse de vez.
Quando iam ao cinema, não me deixavam sozinho em casa. Tínhamos empregada e ela
ficava tomando conta de mim até eles voltarem. Pela conversa deles ficava
sabendo do que acontecia no mundo, no Brasil e no Rio de Janeiro. Quando papai
falava demais em política, mamãe dizia que não tolerava política. Quando papai
falava demais em futebol, mamãe dizia que não tolerava futebol. Papai torcia
pelo Fluminense e lembro que execrava três dos jogadores do Flamengo, Bria,
Biguá e Pirilo, salvava Zizinho, um craque aquele. Ele voltava ao futebol e lhe
dizia escuta mulher, vencemos de goleada o Flamengo, por 4 a 0, há que
comemorar. Depois de muita prosa, passavam os dois da sala de estar ao quarto
de dormir como o próprio dia passa para a noite e depois volta a ser dia.
Na minha cabeça mamãe gosta de
comparar o que se escreve pela manhã sobre cada dia com o que se diz dele à
noite. Não tenho coragem de lhe perguntar se é por isso que todos os dias lê o
jornal e escuta a rádio. As notícias que saem na Tribuna da Imprensa e as que
são ditas na Rádio Nacional não são as mesmas? Prefiro calar-me e adivinhar a
resposta. Ela nunca me diz nada sobre as manchetes do dia, apenas repete que
gosta da voz do Heron Domingues, o primeiro a dar as últimas. Voz viril,
segundo ela. Admiro também sua dicção máscula ? diz. Vira-se para mim e
acrescenta você deveria imitá-lo quando conversa com os outros na rua. Quando
eu o escuto é como se estivesse a ouvir a voz do seu pai.
Volto para casa lá pelas cinco da
tarde. Passo antes pela banca de jornal. Na ida, passo também pela banca de
jornal. Nem preciso mais pedir ao seu Giuseppe as duas caixinhas de chicletes
Adams a que tenho direito por ordem de mamãe. Uma com sabor de hortelã e a
outra com sabor de tutti-frutti. Em cada caixinha vêm duas pastilhas dizem que
brancas. Masco primeiro as pastilhas de hortelã. A primeira, e a outra logo em
seguida. As duas formam um bolo dizem que cinzento que tira o gosto de almoço e
de pasta dentifrícia que fica na boca. O ar escorre limpinho até os pulmões.
Não ponho a mão no bolo, cuspo na sarjeta o chiclete insosso. Masco depois as
duas pastilhas de sabor tutti-frutti. Adocicam e refrescam o hálito. Sinto o
frescor na garganta e nas narinas. Antes de voltar para casa, cuspo a maçaroca
na sarjeta.
Mamãe deixa que eu masque
chicletes. Você gosta. Mas ela não gosta de me ver mascando. Só pode na rua,
longe dos meus olhos. Diz que lembra o pai do pai dela que, depois de tomar
café, ficava sentado na cadeira de balanço, mascando fumo de rolo. Era um nojo
só. A mãe do pai dela achava o mesmo. Mas quem é que iria falar alguma coisa ao
velho desdentado, um caipira que tinha vindo do interior de Minas? Outras
vezes, me diz você parece boi ruminando capim no meio do pasto. Não nega a
raça.
Não pago as duas caixinhas de
chicletes e não pago o jornal. Não me lembro de ter tido muito dinheiro no
bolso. Quando sai à rua, mamãe paga a conta ao italiano da banca. Ela não sai à
rua como antes. Fica em casa o dia inteiro, lendo alguma coisa ou escutando o
rádio. Na terça-feira ela faz as compras na feira e na mercearia. Todos os dias
faz o café da manhã e cozinha o almoço e o jantar. Também os serve e lava a
louça. Ajudo a secar os pratos, os talheres, os copos e até as panelas. Depois
que o papai morreu ela despediu a empregada. Não se podia mais contar com ela.
Tinha virado um traste inútil.
Tão logo o radinho de pilha
apareceu nas Lojas Americanas, ela comprou o seu, que substituiu o outro
grandote, modelo capelinha da Philco, que ocupava mais da metade de uma das
prateleiras da cozinha. Era um verdadeiro estrupício. Mamãe gosta de ouvir
esses programas infinitos em que o locutor conversa com alguém sobre as mil e
uma mazelas e misérias por que a pessoa ou a família atravessam. Gosta mais dos
programas da manhã. Se há um locutor que ela detesta é o Júlio Louzada. Piegas
demais - diz.
Mamãe não gosta que eu diga
chicletes. Corrige-me sempre: é goma de mascar, meu filho. Chicletes é palavra
estrangeira. Eu respondo que chicletes é palavra estrangeira porque o chiclete
é coisa estrangeira. O jornaleiro me disse que é coisa de inventor gringo que
morou no México. Ele se chamava Adams, por isso é que a caixinha de chicletes
se chama Adams. Adams é também nome estrangeiro. Não posso dizer chicletes, mas
posso dizer Adams.
Ela me diz que sou pirracento e
turrão. Puxei ao meu bisavô mineiro.
Mesmo estando aposentada, ela não
perde o hábito de professora primária. Quando ela corrige minhas palavras ou
quer mudar meu modo de falar, não acho que seja minha mãe. É pessoa diferente
da que é quando pede que tome assento ao lado dela no sofá e diz para eu deitar
o rosto no seu colo.
Eu disse ao Giuseppe que gosto de
ficar deitado no sofá com o rosto recostado no colo da mamãe. O italiano me
disse que estava virando 24 veado, que eu me cuidasse. Dia destes, você cai na
boca do povo. Pergunto-lhe o que há de mal em ser 24 veado. Responde-me que
nada, depende da parte que eu gosto de usar. Se a parte da frente ou se a parte
de trás. Tem homem que sente mais prazer usando a parte de trás que a da
frente. É 24 veado.
Respondi-lhe que usava a parte de
trás e a parte da frente. Uma para cagar e a outra para mijar.
É bene, não é disso que estou
falando, seu bobo. Deixa pra lá. Você não é 24 veado, é só filhinho da mamãe.
Sorte sua que não vive solto no mundo. Teria virado um schifoso.
Nas manhãs de sábado, depois do
passeio pelas aleias do Jardim Botânico, às vezes caminhávamos os dois até a
Praça Santos Dumont, onde o público tem acesso ao hipódromo do Jóquei Clube.
Papai não apostava em cavalos. Tinha raiva do vício de jogar, do uso lotérico
do dinheiro e tinha ainda mais raiva das pessoas que iam apostar nos cavalos
como se fossem eles encarnação de algum número de jogo do bicho. Corrida de
cavalos não é uma roleta de cassino na Urca. Ia ao hipódromo da Gávea porque
gostava de se ver cercado por cavalos de raça, com os cascos duros de pedra e o
pescoço potente. No meio da arruaça do mundo moderno, tinha vontade de ser um
deles. Fazer parte do bando.
Depois de passear pelo Jardim
Botânico com você, eu sinto mais vontade ainda de ser cavalo. Eles me deixam
desassossegado, me dizia, e repetia várias vezes a palavra desassossegado ao
ritmo do trote dos animais em corrida e da voz do locutor que escoava do
alto-falante. Existe um mundo de animais, a que eu não pertenço.
É uma pena - sua voz abandonava
os cavalos e se virava para mim ? que você não escute o chamado deles. Quem
sabe se você não foi chamado a ser um deles quando nasceu? Sua mãe pensa assim.
Eu também penso assim, mas de maneira diferente. Desde criancinha você vê as
coisas e o mundo como um cavalo os vê. Você não é um animal, é um potro
selvagem! E esse é, na verdade, o meu maior desejo. Ter nascido como você é o
meu desejo mais profundo.
Não conheci direito o papai. Saía
pela manhã, chegava à noite com a Tribuna da imprensa debaixo do braço e ficava
conversando com a esposa até altas horas da noite. Conversávamos quando íamos
ou ao Jardim Botânico ou ao Jóquei Clube. Só aos sábados. O domingo era também
dela, ou da família dela. Ele não tinha medo de mim. Tinha medo da mamãe e do
seu ar de ameaça. Se ele se aproximava de mim para saber melhor quem eu era e
para eu saber melhor quem ele era, o mundo, por ordem e vontade dela,
despencaria do galho e se esborracharia no chão que nem fruta podre. Só ela
tinha o direito de saber que havia uma fruta podre em casa. Era dela a fruta
podre. Só dela.
Será que ela me escondia? Será
que ainda me esconde? Se quiser me esconder, por que me pergunta se eu não vou
dar a minha voltinha pelo Largo dos Leões.
Quando chegava sozinho do
hipódromo da Gávea, ela me perguntava: e o seu pai?
Eu respondia dizendo que ele
tinha me mandado descer do bonde e que ele ia continuar até a praia de
Botafogo.
Cismava. Praia de Botafogo, praia
de Botafogo... Só cego é que não vê.
Perdão, meu filho - disse logo
depois.
Será que menino cego tem
serventia? Serve para não ver o que o pai faz. Serve para enxergar o que a mãe
não vê e quer saber sobre o marido? Será que papai traía mamãe às escondidas e
com a ajuda do filho cego? Será que tenho alguma serventia? Não tinha como
responder a essas perguntas, e o cuco cantava três vezes na sala de estar. Por
que você não vai dar a sua voltinha pelo Largo dos Leões? - escutei.
Antes de abrir a porta, passei
pela chapeleira e me muni da bengala branca.
Sentado no banco, mascando
chicletes, escutei o 21 que subia a Rua São Clemente. Capengava mais que o
normal. À entrada do Largo dos Leões o bonde latia que nem cão raivoso.
Respirei profundamente e meus dentes mascavam com maior firmeza o chiclete de
hortelã. Tive medo de morrer atropelado. O motorneiro perdia o controle dos freios,
o coletor de energia perdia o contato com a rede aérea, o bonde saía dos
trilhos, avançava para o espaço vazio e atropelava o cego que, sentado no
banco, mascava seu chiclete de todas as tardes.
Varri o desastre da imaginação e,
para enfrentar de cabeça erguida o perigo que vinha pela frente, levantei-me do
banco onde estava sentado. Dei três passos até o meio-fio. Apoiei-me no poste
para reganhar o equilíbrio. Estava apoiado no poste quando o motorneiro freava
o bonde. Soltei o poste para apoiar todo o corpo na bengala branca. Através
dela minha mão direita se comunicava com a pedra do meio-fio. Não ia escorregar
para a sarjeta e ser atropelado por carro. Ouvi o bonde parar no ponto, em
frente a mim. Foi aí que eu vi a mulher que me encarava. Estava sentada no
banco de trás do bonde. Encarava-me como se estivesse vendo uma girafa no
Jardim Zoológico.
Sou cego - gritei-lhe para que
não tivesse medo de mim.
A mulher estava intranquila e
continuava com medo. Não tinha medo da girafa, tinha medo de mim por ser um
cego que mascava chicletes no Largo dos Leões. Mais me encarava, mais me
iluminava e mais eu sentia o pau intumescer. Ele já gritava dentro das calças e
ela o escutou gritando porque me encarou mais firmemente. Tive vergonha. Por
ordenação divina, fui expulso do Paraíso. Como se se tratasse de uma enxada,
segurei forte o cabo da bengala branca e, com as duas mãos tensas, levei-a até
à altura da braguilha para controlar o descontrole repentino. A mulher me
encarava. Ela sorria. Ria de mim? Meu pau se espichava bengala abaixo até
encontrar apoio na pedra do meio-fio. Virei um homem cego de três pernas.
Terezinha me dizia que tinha virado católica praticante no dia em que tinha
sonhado com Exu.
Sentada, a mulher tinha me visto
de pé, mascando chicletes, no ponto do bonde e teve medo. Sorria, no entanto.
Não, não era riso de deboche. Eu vi. Juro que vi. Um sorriso de alegria
desabrochava nos seus lábios. Ela me ama. O bonde deu a arrancada para partir.
O solavanco despertou a mulher. Soltou um grito mais lancinante que o grito que
meu membro intumescido e contido pela bengala branca soltava. Os dois gritos se
cruzaram pelos ares do Largo dos Leões. Ela me amava. Sem se darem conta de
mim, todos os passageiros olharam assustados para ela.
Voltei a sentar-me no banco. Era
a vez das pastilhas com sabor de tutti-frutti.