Clarice Cardoso – de CARTA NA
ESCOLA
Para pesquisadora Olga de Sá, popularidade na internet pode ajudar a trazer jovem leitor para perto da autora de A Hora da Estrela. Foto: Claudia Andujar |
Sobre o amor ou a amizade. Sobre
perdas, animais ou o luto. Todos os dias, em páginas na internet e em redes
sociais como o Facebook, incontáveis frases sobre esses e diversos outros temas
são compartilhadas e atribuídas a Clarice Lispector. Muitas fora de contexto,
outras apócrifas, é verdade, mas que ainda assim podem se converter numa
oportunidade para atrair para sua obra leitores abertos a isso, afirma Olga de
Sá, reconhecida pesquisadora da obra da autora, diretora-geral das Faculdades
Integradas Teresa D’Ávila e do Instituto Santa Teresa, de Lorena, São Paulo, e
professora-assistente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
“Só não podemos ficar nisso. É
preciso levar o leitor ao texto, porque é lá que vai encontrar a verdadeira
Clarice, a escritora que mudou a literatura brasileira de alguma forma, assim
como de outra forma Guimarães Rosa também mudou. O importante é não ficar na
redução, mas levar ao texto completo”, afirma.
Na esteira da fama virtual, a
Editora Rocco vem nos últimos anos republicando e lançando volumes temáticos,
caso de De Bichos e Pessoas – Crônicas para jovens, De Escrita e Vida –
Crônicas para jovens e De Amor e Amizade – Crônicas para jovens. Presente há
anos em listas de leituras obrigatórias em vestibulares, Clarice Lispector
torna-se, assim, ainda mais presente na vida do jovem leitor.
“Os livros de Clarice abrem um
universo de diálogo com os jovens e com qualquer pessoa, que é muito amplo e
significativo. O professor que conseguir tocar essa tecla, de ser capaz de
fazer o texto falar, terá resultados muito gratificantes.”
Carta na Escola: Clarice tem
ganhado muita fama na internet, em redes sociais, com trechos retirados de seus
textos e frases que, muitas vezes, nem mesmo são dela. Esses são leitores de
Clarice em potencial?
Olga de Sá: Alguns jovens gostam
de frases de efeito retiradas do contexto. Essas pessoas são movidas por esse
tipo de leitura, mas, certamente, quando você tira uma frase do contexto, há de
ter cuidado, porque, na verdade, o contexto dá sentido à frase. Eu tenho lido
algumas coisas dessas e acho que, às vezes, até se altera o sentido do que ela
estava dizendo. Existem sim leitores que gostam disso, contudo, é preciso
cuidado, porque, na verdade, quando você lê uma obra, pode levantar muitas
significações, o que é próprio da obra. Porém, há significações coerentes e
incoerentes. Não é tudo que se pode ler, tem de ter certa coerência de leitura
e isso, às vezes, escapa a esse tipo de leitor que faz a leitura subjetiva, que
lhe agrada.
CE: Isso de alguma forma reduz o
peso da obra da autora?
OS: Ela se defende. Não adianta
fazer essa redução, porque você volta ao texto e vê que ele não condiz com o
que foi dito. Na verdade, autores menores podem ser mais passíveis de certa
redução, mas Clarice não se deixa reduzir.
CE: Um educador, de olho nessa
tendência, pode aproveitar essa fama virtual para levar o jovem para a obra?
OS: Tudo é válido, desde que você
vá até a obra. Eu mesma tenho vários cartões que mando com frases de Clarice,
elas são lindas. Por exemplo: “Todas as manhãs, quando me levanto, vou tirar a
poeira da palavra amor”. Então você pode, a partir daí, levar o leitor para a
obra de Clarice. O que não se pode é ficar nisso. É preciso levar o leitor à
leitura do texto, porque é lá que ele vai encontrar a verdadeira Clarice, vai
encontrar aquela escritora que mudou a literatura brasileira de alguma forma,
assim como de outra forma Guimarães Rosa também mudou. O importante é não ficar
na redução, mas levar ao texto completo.
CE: Que características na obra
de Clarice podem ser bem trabalhadas com esse jovem leitor?
OS: Quando o leitor já tem certo
conhecimento de literatura, pode-se ir pelas figuras, como os paradoxos, as
antíteses, as repetições, que chegam e causam surpresa. Pode ser também pela
leitura de contos que ficam realmente em aberto, até contos infantis. Por
exemplo, O Mistério do Coelho Pensante fica em aberto. Já trabalhei ele com
crianças e elas dão um final para o conto. Alguns procuram um final feliz, mas
há aqueles como uma menina que me disse: “O coelhinho fugia da gaiola pelo
pensamento”. A criança foi na direção daquilo que a própria Clarice poderia
querer dizer. Acho que o importante é apelar para esses tipos de abordagem, de
não fechar o texto… Porque o adulto é muito apressadinho. Ele já quer saber o
que foi, qual a interpretação, o que o autor quis dizer e, na verdade, a gente
não sabe, o texto é aberto.
CE: Que obras a senhora indicaria
para um professor que está começando a trabalhar Clarice Lispector em turma,
pensando na formação de leitores e não apenas em exames vestibulares?
OS: Acho que os contos são
maravilhosos para isso. Não se deve começar nunca pela A Maçã no Escuro, que é
uma floresta de signos de difícil abordagem. Começar ou pelo Uma Aprendizagem
ou o Livro dos Prazeres ou pelos contos, como eu já disse. Depois de certo
tempo, A Paixão Segundo GH, mas esse apenas para certo tipo de leitor. A
própria Clarice disse que encontrou um professor no Rio de Janeiro que deixou o
livro de lado, não gostou, e que uma mocinha, ainda estudante, fez da obra seu
livro de cabeceira. Então você vê que não é questão de idade, mas de afinidade.
Perto do Coração Selvagem não é um livro difícil hoje em dia. Então é isso,
deve-se começar ou pelos contos, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres e não
começar pela A Maçã no Escuro, O Lustre, A Cidade Sitiada… A Hora da Estrela
também é ótimo para começar.
CE: Uma separação por temas, como
a que vem sendo feita pela Editora Rocco, facilita o trabalho de um formador de
leitores dentro da sala de aula?
OS: Sim e não. Na verdade, com
isso você começa a dar um sentido à obra, e a obra é mais rica e apela mais ao
leitor quando é aberta, com várias significações. Então vai depender muito do
tipo de professor e de alunado. Pode, sim, ter uma faixa que seja atingida por
esse tipo de leitura, mas a crítica realmente é muito mais aberta do que isso e
a leitura também. Assim, um leitor mais inteligente, mais apurado, provavelmente
preferirá outro tipo de abordagem. Essa história também de fazer histórias em
cima de contos de Clarice é um tipo de leitura que pode agradar a muitos que
gostam de histórias com começo, meio e fim, mas certamente não foi avisada dos
contos de Clarice, pois ela sempre deixou tudo muito aberto. Então depende do
leitor, do professor, da escola e do tipo de cultura.
CE: Em questões temáticas, o que
pode ser trabalhado na obra da Clarice?
OS: A morte, o significado do
ser, a possibilidade da linguagem de ver o ser, o silêncio. Tenho dois armários
só de obras com críticas de Clarice e você vê muitos livros que abordam esses
temas, como o Mal também, por exemplo. São temas infinitos. Depende muito da
capacidade do leitor em colher o tema. Por exemplo, em A Hora da Estrela, não
há dúvida de que a morte, a gente poderia dizer, é a protagonista. Mas muitos
não captam isso, não se interessam. Por isso eu acho que a temática na obra da
Clarice varia na medida da percepção do leitor.
CE: A propósito, A Hora da Estrela
está há anos em listas de vestibular. É uma boa obra para se colocar como
leitura obrigatória? Que tipo de leitura essas provas exigem? A senhora
concorda com o que costuma se cobrar nesses exames?
OS: Eu não conheço esse mundo de
vestibular, o que conheço pelo contato com os jovens, é que a leitura que é
feita é um pouco pobre. Por outro lado, o que você vai perguntar no vestibular?
São perguntas que têm de ser objetivas, hoje em dias as redações já se abriram
mais, mas, de qualquer maneira, você não tem muito por onde andar no
vestibular. E A Hora da Estrela é um livro que pode ter uma leitura linear.
Aliás, trabalhei um pouco com a (cineasta) Susana Amaral quando ela estava
fazendo o filme (em 1986), e ela me disse que iria fazer um filme que o povo entendesse,
portanto, com começo, meio e fim, e que não daria para colocar os aspectos
metalinguísticos da obra. Nos filmes que têm narrador, ele começa a contar a
história, você esquece que tem um narrador, porque você vê a história, e assim
vai até o fim. O narrador, no filme, não resolve nada. A Hora da Estrela
presta-se a esse tipo de abordagem porque, se você quiser, como acontece no
filme, ele fica linear. Todo aspecto metalinguístico não precisa aparecer. É
claro que reduz, mas não há outra maneira de fazer para ser objetivo.
CE: Pensando que você vai
trabalhar o livro com um jovem para o vestibular, é possível trabalhar essa
metalinguagem em outro momento? Como driblar esse viés para que a leitura seja
mais completa?
OS: A gente, como professor,
quando passa o filme faz a observação: olha, aqui vocês veem a história linear
da Macabea. Porém, lendo o livro, vocês vão ver que através ou por trás dessa
história linear existe toda uma reflexão sobre a criação, sobre o tempo na
narrativa, sobre a morte. São temas significativos que aparecem na obra inteira
e que podem não aparecer num resumo. Acho que a questão é só de abordagem.
CE: É necessária alguma formação
especial para o professor trabalhar com Clarice?
OS: Penso que o professor, para
qualquer leitura de uma obra significativa da literatura, precisa ter
sensibilidade, percepção e didática. A formação hoje está prejudicada e ninguém
mais quer ser professor. É preciso ter esse gosto para ser professor, é preciso
saber ensinar e dialogar, porque o ensino hoje não é só ficar falando e o aluno
escutando, é um diálogo. É preciso tirar deles tudo o que for possível e aí
construir. Às vezes, eles fazem encenações muito boas, até mesmo as crianças.
Isso faz parte da flexibilidade que o professor precisa ter para ir ao encontro
do gosto dos alunos sem deixar que a coisa caia no plano.
CE: As traduções recentes para
outras línguas mudam o local que Clarice ocupa na literatura?
OS: Acredito que a tradução
significa que a leitura está se ampliando, é um esforço de compreender outras
culturas. O português é uma língua difícil de ser encarada. Se Machado de Assis
tivesse escrito em inglês, ele seria o maior escritor da época. Ele foi, mas
não era reconhecido por não escrever em uma língua palatável, coisa que o
português não é. Acho que as traduções revelam a influência do autor, como ele
está influindo em outras culturas, são um reflexo da influência do autor e do
reconhecimento que ele tem.
CE: Entre todos os autores
brasileiros, porque Clarice tem ganhado tanto destaque nessa cultura digital?
OS: Penso que é pela significação
da sua obra. Uma autora que trata esses temas, que vai ao fundo do que é o ser,
que vai a fundo nos problemas de linguagem, que coloca propriamente toda a sua vida
em escrever. Tem um livro dela que fala assim: “Agora vou morrer um pouco”. O
que é isso de morrer um pouco? É quando ela parava de escrever. Quando ela
interrompia para fazer alguma coisa. Por outro lado, ela também se questionava:
“Será que escrevendo eu também não perco a vida?” Então esse tipo de
interrogação é universal. Os temas de Clarice são universais e por isso
interessam a qualquer homem em qualquer lugar do planeta. Os livros de Clarice
abrem um universo de diálogo com os jovens, com os alunos ou com qualquer
pessoa, que é muito amplo e significativo. O professor que conseguir tocar essa
tecla, de ser capaz de fazer o texto falar, terá resultados muito
gratificantes. Agora, é claro que aquele professor que fica muito rígido, não
tem abertura, esse não vai colher grandes frutos. Há muita margem, como há com
outros escritores como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, que
dependem muito da capacidade de diálogo do professor.