Lomadee, uma nova espécie na web. A maior plataforma de afiliados da América Latina.

domingo, 14 de abril de 2013

Uma Clarice acessível


                          Clarice Cardoso – de CARTA NA ESCOLA
Para pesquisadora Olga de Sá, popularidade na internet pode ajudar a trazer
jovem leitor para perto da autora de A Hora da Estrela.
Foto: Claudia Andujar
Sobre o amor ou a amizade. Sobre perdas, animais ou o luto. Todos os dias, em páginas na internet e em redes sociais como o Facebook, incontáveis frases sobre esses e diversos outros temas são compartilhadas e atribuídas a Clarice Lispector. Muitas fora de contexto, outras apócrifas, é verdade, mas que ainda assim podem se converter numa oportunidade para atrair para sua obra leitores abertos a isso, afirma Olga de Sá, reconhecida pesquisadora da obra da autora, diretora-geral das Faculdades Integradas Teresa D’Ávila e do Instituto Santa Teresa, de Lorena, São Paulo, e professora-assistente da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
“Só não podemos ficar nisso. É preciso levar o leitor ao texto, porque é lá que vai encontrar a verdadeira Clarice, a escritora que mudou a literatura brasileira de alguma forma, assim como de outra forma Guimarães Rosa também mudou. O importante é não ficar na redução, mas levar ao texto completo”, afirma.
Na esteira da fama virtual, a Editora Rocco vem nos últimos anos republicando e lançando volumes temáticos, caso de De Bichos e Pessoas – Crônicas para jovens, De Escrita e Vida – Crônicas para jovens e De Amor e Amizade – Crônicas para jovens. Presente há anos em listas de leituras obrigatórias em vestibulares, Clarice Lispector torna-se, assim, ainda mais presente na vida do jovem leitor.
“Os livros de Clarice abrem um universo de diálogo com os jovens e com qualquer pessoa, que é muito amplo e significativo. O professor que conseguir tocar essa tecla, de ser capaz de fazer o texto falar, terá resultados muito gratificantes.”
Carta na Escola: Clarice tem ganhado muita fama na internet, em redes sociais, com trechos retirados de seus textos e frases que, muitas vezes, nem mesmo são dela. Esses são leitores de Clarice em potencial?
Olga de Sá: Alguns jovens gostam de frases de efeito retiradas do contexto. Essas pessoas são movidas por esse tipo de leitura, mas, certamente, quando você tira uma frase do contexto, há de ter cuidado, porque, na verdade, o contexto dá sentido à frase. Eu tenho lido algumas coisas dessas e acho que, às vezes, até se altera o sentido do que ela estava dizendo. Existem sim leitores que gostam disso, contudo, é preciso cuidado, porque, na verdade, quando você lê uma obra, pode levantar muitas significações, o que é próprio da obra. Porém, há significações coerentes e incoerentes. Não é tudo que se pode ler, tem de ter certa coerência de leitura e isso, às vezes, escapa a esse tipo de leitor que faz a leitura subjetiva, que lhe agrada.
CE: Isso de alguma forma reduz o peso da obra da autora?
OS: Ela se defende. Não adianta fazer essa redução, porque você volta ao texto e vê que ele não condiz com o que foi dito. Na verdade, autores menores podem ser mais passíveis de certa redução, mas Clarice não se deixa reduzir.
CE: Um educador, de olho nessa tendência, pode aproveitar essa fama virtual para levar o jovem para a obra?
OS: Tudo é válido, desde que você vá até a obra. Eu mesma tenho vários cartões que mando com frases de Clarice, elas são lindas. Por exemplo: “Todas as manhãs, quando me levanto, vou tirar a poeira da palavra amor”. Então você pode, a partir daí, levar o leitor para a obra de Clarice. O que não se pode é ficar nisso. É preciso levar o leitor à leitura do texto, porque é lá que ele vai encontrar a verdadeira Clarice, vai encontrar aquela escritora que mudou a literatura brasileira de alguma forma, assim como de outra forma Guimarães Rosa também mudou. O importante é não ficar na redução, mas levar ao texto completo.
CE: Que características na obra de Clarice podem ser bem trabalhadas com esse jovem leitor?
OS: Quando o leitor já tem certo conhecimento de literatura, pode-se ir pelas figuras, como os paradoxos, as antíteses, as repetições, que chegam e causam surpresa. Pode ser também pela leitura de contos que ficam realmente em aberto, até contos infantis. Por exemplo, O Mistério do Coelho Pensante fica em aberto. Já trabalhei ele com crianças e elas dão um final para o conto. Alguns procuram um final feliz, mas há aqueles como uma menina que me disse: “O coelhinho fugia da gaiola pelo pensamento”. A criança foi na direção daquilo que a própria Clarice poderia querer dizer. Acho que o importante é apelar para esses tipos de abordagem, de não fechar o texto… Porque o adulto é muito apressadinho. Ele já quer saber o que foi, qual a interpretação, o que o autor quis dizer e, na verdade, a gente não sabe, o texto é aberto.
CE: Que obras a senhora indicaria para um professor que está começando a trabalhar Clarice Lispector em turma, pensando na formação de leitores e não apenas em exames vestibulares?
OS: Acho que os contos são maravilhosos para isso. Não se deve começar nunca pela A Maçã no Escuro, que é uma floresta de signos de difícil abordagem. Começar ou pelo Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres ou pelos contos, como eu já disse. Depois de certo tempo, A Paixão Segundo GH, mas esse apenas para certo tipo de leitor. A própria Clarice disse que encontrou um professor no Rio de Janeiro que deixou o livro de lado, não gostou, e que uma mocinha, ainda estudante, fez da obra seu livro de cabeceira. Então você vê que não é questão de idade, mas de afinidade. Perto do Coração Selvagem não é um livro difícil hoje em dia. Então é isso, deve-se começar ou pelos contos, Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres e não começar pela A Maçã no Escuro, O Lustre, A Cidade Sitiada… A Hora da Estrela também é ótimo para começar.
CE: Uma separação por temas, como a que vem sendo feita pela Editora Rocco, facilita o trabalho de um formador de leitores dentro da sala de aula?
OS: Sim e não. Na verdade, com isso você começa a dar um sentido à obra, e a obra é mais rica e apela mais ao leitor quando é aberta, com várias significações. Então vai depender muito do tipo de professor e de alunado. Pode, sim, ter uma faixa que seja atingida por esse tipo de leitura, mas a crítica realmente é muito mais aberta do que isso e a leitura também. Assim, um leitor mais inteligente, mais apurado, provavelmente preferirá outro tipo de abordagem. Essa história também de fazer histórias em cima de contos de Clarice é um tipo de leitura que pode agradar a muitos que gostam de histórias com começo, meio e fim, mas certamente não foi avisada dos contos de Clarice, pois ela sempre deixou tudo muito aberto. Então depende do leitor, do professor, da escola e do tipo de cultura.
CE: Em questões temáticas, o que pode ser trabalhado na obra da Clarice?
OS: A morte, o significado do ser, a possibilidade da linguagem de ver o ser, o silêncio. Tenho dois armários só de obras com críticas de Clarice e você vê muitos livros que abordam esses temas, como o Mal também, por exemplo. São temas infinitos. Depende muito da capacidade do leitor em colher o tema. Por exemplo, em A Hora da Estrela, não há dúvida de que a morte, a gente poderia dizer, é a protagonista. Mas muitos não captam isso, não se interessam. Por isso eu acho que a temática na obra da Clarice varia na medida da percepção do leitor.
CE: A propósito, A Hora da Estrela está há anos em listas de vestibular. É uma boa obra para se colocar como leitura obrigatória? Que tipo de leitura essas provas exigem? A senhora concorda com o que costuma se cobrar nesses exames?
OS: Eu não conheço esse mundo de vestibular, o que conheço pelo contato com os jovens, é que a leitura que é feita é um pouco pobre. Por outro lado, o que você vai perguntar no vestibular? São perguntas que têm de ser objetivas, hoje em dias as redações já se abriram mais, mas, de qualquer maneira, você não tem muito por onde andar no vestibular. E A Hora da Estrela é um livro que pode ter uma leitura linear. Aliás, trabalhei um pouco com a (cineasta) Susana Amaral quando ela estava fazendo o filme (em 1986), e ela me disse que iria fazer um filme que o povo entendesse, portanto, com começo, meio e fim, e que não daria para colocar os aspectos metalinguísticos da obra. Nos filmes que têm narrador, ele começa a contar a história, você esquece que tem um narrador, porque você vê a história, e assim vai até o fim. O narrador, no filme, não resolve nada. A Hora da Estrela presta-se a esse tipo de abordagem porque, se você quiser, como acontece no filme, ele fica linear. Todo aspecto metalinguístico não precisa aparecer. É claro que reduz, mas não há outra maneira de fazer para ser objetivo.
CE: Pensando que você vai trabalhar o livro com um jovem para o vestibular, é possível trabalhar essa metalinguagem em outro momento? Como driblar esse viés para que a leitura seja mais completa?
OS: A gente, como professor, quando passa o filme faz a observação: olha, aqui vocês veem a história linear da Macabea. Porém, lendo o livro, vocês vão ver que através ou por trás dessa história linear existe toda uma reflexão sobre a criação, sobre o tempo na narrativa, sobre a morte. São temas significativos que aparecem na obra inteira e que podem não aparecer num resumo. Acho que a questão é só de abordagem.
CE: É necessária alguma formação especial para o professor trabalhar com Clarice?
OS: Penso que o professor, para qualquer leitura de uma obra significativa da literatura, precisa ter sensibilidade, percepção e didática. A formação hoje está prejudicada e ninguém mais quer ser professor. É preciso ter esse gosto para ser professor, é preciso saber ensinar e dialogar, porque o ensino hoje não é só ficar falando e o aluno escutando, é um diálogo. É preciso tirar deles tudo o que for possível e aí construir. Às vezes, eles fazem encenações muito boas, até mesmo as crianças. Isso faz parte da flexibilidade que o professor precisa ter para ir ao encontro do gosto dos alunos sem deixar que a coisa caia no plano.
CE: As traduções recentes para outras línguas mudam o local que Clarice ocupa na literatura?
OS: Acredito que a tradução significa que a leitura está se ampliando, é um esforço de compreender outras culturas. O português é uma língua difícil de ser encarada. Se Machado de Assis tivesse escrito em inglês, ele seria o maior escritor da época. Ele foi, mas não era reconhecido por não escrever em uma língua palatável, coisa que o português não é. Acho que as traduções revelam a influência do autor, como ele está influindo em outras culturas, são um reflexo da influência do autor e do reconhecimento que ele tem.
CE: Entre todos os autores brasileiros, porque Clarice tem ganhado tanto destaque nessa cultura digital?
OS: Penso que é pela significação da sua obra. Uma autora que trata esses temas, que vai ao fundo do que é o ser, que vai a fundo nos problemas de linguagem, que coloca propriamente toda a sua vida em escrever. Tem um livro dela que fala assim: “Agora vou morrer um pouco”. O que é isso de morrer um pouco? É quando ela parava de escrever. Quando ela interrompia para fazer alguma coisa. Por outro lado, ela também se questionava: “Será que escrevendo eu também não perco a vida?” Então esse tipo de interrogação é universal. Os temas de Clarice são universais e por isso interessam a qualquer homem em qualquer lugar do planeta. Os livros de Clarice abrem um universo de diálogo com os jovens, com os alunos ou com qualquer pessoa, que é muito amplo e significativo. O professor que conseguir tocar essa tecla, de ser capaz de fazer o texto falar, terá resultados muito gratificantes. Agora, é claro que aquele professor que fica muito rígido, não tem abertura, esse não vai colher grandes frutos. Há muita margem, como há com outros escritores como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, que dependem muito da capacidade de diálogo do professor.

domingo, 7 de abril de 2013

O Romantismo e suas marcas

O ambiente de idealismo marcou toda a arte romântica

                                                    Landisvalth Lima

  Dois foram os fatos importantes que marcaram o Romantismo a nível mundial: A Revolução Industrial, na Inglaterra , e a Revolução Francesa. No Brasil , pode-se acrescentar a chegada da família real e as lutas pela independência.
Na segunda metade do século XVIII, surgiu, na Inglaterra, a burguesia industrial. O crescimento dessa classe fez com que surgisse uma outra: o operariado. Nasce, daí, a sociedade de classes.
Na França, a Revolução desencadeada em l789 destruiu o absolutismo, levando a burguesia ao poder. Os ideais revolucionários de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, na verdade, nunca saíram do papel. Eram mais idealização que prática, criando assim uma certa frustração na população .
A Revolução Industrial e a Revolução Francesa provocaram, pois:
- o fim do absolutismo na Europa;
- incentivaram a livre iniciativa, forjando o liberalismo político e o individualismo econômico;
- estimularam o nacionalismo;
- estimularam a geração moderna, urbano-industrial;
- contribuíram para o fim do trabalho artesanal.
No Brasil, os ideais da Revolução Francesa contaminaram nosso estudantes, poetas e pensadores. Entretanto, não se pode dizer que houve uma revolução já que foi o único país da América Latina a não adotar a República após sua independência, preferindo a monarquia.
O Romantismo, aqui, foi , verdadeiramente, nossa primeira escola literária. Cortamos relações de dependência com Portugal e criamos uma literatura independente, nacionalista e lusófoba. Por questões didáticas, l836 é o ano de nascimento do Romantismo no Brasil. A obra inaugural ,  Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves de Magalhães, inicia nosso liberalismo literário. No mesmo ano, foi fundada em Paris a revista Niterói, porta-voz das idéias românticas. Quem participa da publicação? Gonçalves Dias, Araújo Porto-Alegre e Pereira da Silva.
 As marcas do Romantismo:
1 - Liberdade de criação - abolição de todos os tipos de formas poéticas preestabelecidas. O escritor estava livre para adotar o melhor padrão possível ao conteúdo da obra.
2 - Sentimentalismo (egocentrismo) - a obra resulta da imaginação, da fantasia, da idealização provocada pelo impulso da não aceitação do real.
3 - Supervalorização do amor - o amor é cultuado como o sentimento dos sentimentos, mas, quase que paralelamente, também é valorizado o sonho, a virgindade, a nostalgia, o saudosismo e a melancolia.
4 - Idealização da mulher, do herói e da paisagem -  é prática romântica adotar heróis grandiosos - históricos , marginais ou trágicos. A mulher é perfeita, exuberante, inatingível e bem distante da realidade. A paisagem não é natural, mas protetora, dócil, exuberante, poderosa e muda de acordo com o estado emocional do poeta.
O trágico e o misterioso marcam os românticos do ultrarromantismo
5 - Mal-do-Século - é uma coletânea de desprazeres: 1 - pessimismo em relação à vida, à sociedade e a si mesmo - 2 - prazer em sentir-se melancólico e sofrido - 3 - busca do isolamento e da solidão.
6 - Evasão - desiludido com a vida, o romântico pratica o escapismo, indo em busca de um tempo, de um espaço e de uma natureza  jamais perceptíveis no mundo real.
7 - Nacionalismo - a literatura romântica cantava o homem voltado para sua pátria. No Brasil, o nacionalismo  foi representado na figura do índio, do herói regional e no historicismo.
8 - Medievalismo - na Europa era representado na figura do cavaleiro medieval. No Brasil não tivemos tal figura, mas o nosso índio tem comportamento idêntico ao cavaleiro de As Cruzadas.
9 - Religiosidade - basicamente com a valorização do cristianismo e do misticismo.
10- Supervalorização da infância - para o romântico, criança é sinônimo de pureza, inocência, amor.
11- Supervalorização do Homem em Estado Selvagem - é a ideia rousseana de que o homem, desprovido dos vícios da civilização citadina, em seu estado natural, é um ser bom.
l2- Historicismo - indo em busca dos fatos históricos, num processo de idealização, os românticos tentavam glorificar Os heróis de um  dado acontecimento. Era uma forma de nacionalismo ufanista.
l3- Supervalorização do Herói -  é o processo de endeusamento do herói, mesmo aquele marginalizado.
14- Aceitação do Trágico - quanto mais lágrimas e sofrimento causar, melhor.
15- Aceitação do Mistério - é a exploração do inusitado, do místico.
l6- Destaque para a “cor local” - valorização de tudo o que é brasileiro. Está implícito no nacionalismo.
l7- Indianismo - afirmação do índio como herói nacional, por ser puro, nobre e nunca ter sido cooptado por outras culturas.
l8- Regionalismo - é a valorização do homem do interior ou de regiões fora do perímetro cultural urbano onde se desenvolve mais quantitativamente o processo artístico. É também uma forma de nacionalismo.
19- Lusofobia - é o desejo de libertar-se cultural e economicamente de Portugal. Exclusividade brasileira.

A miséria familiar


Livro da escritora norte-americana Mary Gabriel revela o sofrimento da esposa e filhas de Karl Marx
Rosane Pavam – de CARTA CAPITAL
Capa do livro de Mary Gabriel
Sentado à única mesa de seu apartamento na Dean Street, em Londres, sobre a qual havia papéis, poeira e toda sorte de utensílios, Karl Marx pôs-se a escrever para mudar a consciência do mundo. Mas, enquanto trabalhava, ele nunca estava só. Um dia seus filhos criaram uma brincadeira na qual o cavalo seria Marx. Atrelado a uma fila de cadeiras de pés quebrados, o pai deveria obedecer a um chicote imaginário acionado pelas crianças atrás dele. A diligência ora aceleraria, ora interromperia o curso segundo o desejo de seus cocheiros nutridos a pães e batatas. Enquanto as ideias para o livro em torno do golpe de Luís Napoleão, O 18 de Brumário de -Luís Bonaparte, ferviam na cabeça de Marx, ele obedecia ao ruidoso comando infantil sem perder a ternura. Pelo contrário, convencera-se de que seria possível perdoar à cristandade muita coisa, porque ela nos ensinara a adoração da criança. Os filhos, ele dizia, é que deveriam ensinar os pais.
Talvez por isso, naquele mesmo ano, ele que tinha por hábito distribuir as poucas moedas do bolso aos meninos de rua no Natal, tenha se sentido uma irremediável vítima da orfandade. Franzisca, que estivera entre aqueles delicados cocheiros, sofrera um grave ataque de bronquite e morrera logo após o aniversário de 1 ano, como era de uso entre os 15% das crianças inglesas de então. Estatísticas, segundo Marx, contribuíam para situar a exploração capitalista e compreender o pensamento de uma sociedade a partir de sua estrutura econômica, mas não seriam capazes de lhe fazer aceitar a perda. A família não tinha dinheiro para comprar o caixão de Franzisca.
Marx, Engels e suas esposas.
A esposa Jenny colocou o corpo da menina no quarto dos fundos do apartamento e deslocou todas as camas para a frente, onde a família dormiria até que conseguisse os recursos necessários. Esses não vieram do amigo de toda a vida Friedrich Engels, provedor de sua subsistência, outro pai e outra mãe para seus filhos, porque até o General, como eles o chamavam, não tinha um tostão em 1852. Um exilado francês deu 2 libras para que eles comprassem um caixão, então postado ao lado daquele do irmão de Franzisca, -Fawksy, no cemitério a poucos quarteirões de casa. Contudo, por seus dois meninos, e até por um de seus bebês, morto com 1 mês de idade, eles não chorariam tanto como o fariam por Musch. Aos 8 anos, o rosto, a inteligência e o humor do pai, o menino evitara mostrar os braços finos a Jenny durante sua agonia final. Ele não suportaria vê-la sofrer, e foi Marx quem esteve à sua cabeceira até o fim.
Um dos maiores pensadores do século XIX nada seria sem sua família, diz-nos a pesquisadora dessas histórias, a norte-americana Mary Gabriel, em Amor & Capital – A saga familiar de Karl Marx e a história de uma revolução (Zahar, 968 -págs., R$ 89,90 o livro impresso, R$ 49,90 o e-book). Escrito com clareza e acuidade informativa, munido da pena da humanista e do -requinte da literatura realista, o livro também inova ao centrar a ação em uma intimidade feminina sem a qual, para Marx, a vida seria impossível. “Inicialmente considerei fazer uma biografia de Jenny”, conta Gabriel em entrevista a -CartaCapital, “mas depois que li sobre -suas filhas pensei que seria mais enriquecedor se eu me -ocupasse de todas as mulheres de Marx. Essa -história, porém, deveria ser centrada no homem da vida delas, o que ele de fato foi, para o bem ou para o mal”.
Como fontes para seu trabalho, entre as centenas de estudos e biografias envolvendo um pensador que parece ter tido a obra esquadrinhada linha a linha mesmo antes de sua morte, há 130 anos, haveria as bem escritas cartas de Jenny e suas memórias inconclusas. “Minha grande frustração foi não ter podido encontrar o manuscrito original de sua autobiografia”, conta a pesquisadora, por duas décadas editora da agência de notícias Reuters em Washington e Londres. “A versão publicada tem elipses em lugares-chave nos quais a informação parece ter sido omitida.” A supressão que ela mais lamenta envolve o nascimento do filho da babá Helene Demuth, batizado Freddy em homenagem a seu alegado pai, Engels. Mas o pai verdadeiro era Marx, revelou o próprio Engels a uma incrédula Eleanor. Emudecido em razão de doença, o General, inquirido por ela sobre quem seria o pai de Freddy, escreveu-lhe o nome do amigo sobre uma lousa, com giz. Mas, do rumoroso fato, o que Jenny teria sabido?
A escritora norte-americana Mary Gabriel. 
Foto: Mike Habermann, IISG
“Inesquecível parceira amada”, dizia Marx sobre a aristocrata, bela e aguerrida revolucionária cujo irmão, ministro do governo prussiano, Jenny tratava com carinhosa gratidão. Embora seguidamente Marx precisasse sair pela porta dos fundos de seu lar em dívidas, deslocado a Bruxelas, à Trier natal, a Paris ou à Holanda em busca de saldar dívidas, reunir-se com os companheiros ou fugir dos perseguidores políticos, viver sem Jenny lhe pesava a um ponto insuportável. “O meu amor por você, assim que você se afastou de mim, mostrou sua verdadeira face, um gigante, e nele todo o vigor da minha mente e todo o ardor do meu coração estão comprimidos”, escreveu-lhe Marx, a quem os íntimos chamavam Mohr.
Para Jenny, restavam a paciência e o envolvimento ao revisar pela noite as provas dos textos do marido. Ela recebia pobres como reis em sua casa sempre aberta, mas julgava impossível viver o cotidiano sem o modelo familiar conhecido. Embora seus ideais tinissem de novos, agia à moda antiga, submissa a um homem a quem reputava genialidade. E às três filhas que lhe restaram, Jennychen, Laura e Eleanor, insinuaria que idêntico fervor lhes seria inescapável.
Jennychen almejava uma vida como atriz, enquanto se dedicava aos múltiplos talentos como escritora, ensaísta e tradutora. Eleanor ardia pela militância e pelos palcos e Laura não parecia empolgada ao se casar com o revolucionário francês Paul Lafargue, ao lado do qual foi encontrada morta, ele também envenenado em aparente suicídio. Para elas Marx imaginara uma vida em que as finanças estariam estáveis por conta do casamento. Lafargue, em especial, fora aceito na família não pela militância marxista (“Se existe uma coisa certa é o fato de que eu não sou marxista”, assegurou Marx ao genro), antes por ser um médico de solidez familiar. Mas o autor de O Direito à Preguiça, reverenciado anos depois pelo líder russo Lenin, revelou-se errático como os maridos das outras irmãs, todos franceses, indiferentes à sorte de suas esposas.
“Marx era um homem tipicamente do século XIX, no sentido de que não reconhecia a situação das mulheres”, acredita Mary Gabriel. “Ele nem mesmo conseguia ver que condenava as filhas a vidas miseráveis ao não encorajá-las a dedicar seus maravilhosos talentos e mentes a uma existência distante do casamento. Eis um dos maiores enganos de Marx. Creio que ele foi diretamente responsável pelo fim trágico das filhas.” Antes de morrer, e logo depois de perder a esposa, ele viu Jennychen sucumbir a uma infecção generalizada, cercada por quatro filhos pequenos, vítima da solidão, encargos físicos e dívidas acumuladas pelo marido. Eleanor, enganada pelo insensível companheiro de jornada, suicidou-se após a morte de Marx.
Ao jornalista americano John Swinton, que lhe perguntou sobre o que ele imaginava constituir “a lei definitiva do ser”, o pensador respondera: “A luta!” No seu caso, ela fora também íntima e mental. Marx demorava para concluir seus livros, talvez porque julgasse constante a necessidade de atualizá-los e considerasse urgente lançar-se à ação. Mal conseguira concluir o Manifesto Comunista para a revolução de 1848. O Capital, “épico sobre conquistadores e conquistas”, como o define Mary Gabriel, levou quase duas décadas para ficar pronto, enquanto o General Engels precisou estar a postos para concluí-lo a partir das anotações hieroglíficas do companheiro morto. “Marx não conseguia parar de pesquisar”, diz Gabriel, cujo próprio trabalho durou dez anos para ser terminado. A autora estará na Bienal do Livro do Rio em agosto. Nesse momento, de sua residência italiana na costa adriática, ela escreve sobre cinco pintoras expressionistas abstratas americanas dos anos 1940 e 1950.
“Marx era um perfeccionista, e sua vida e de sua família foram duramente atingidas por isso”, afirma. “Ele jamais viveu de seus escritos, a não ser no período em que trabalhou como jornalista para um periódico nova-iorquino. Apesar de necessitar desesperadamente dele, o dinheiro seria a menor de suas preocupações.” Por seu lado, Jenny viveu com o que lhe coube. Mas, depois da morte do quarto filho, esmoreceu. “Não foi fácil perder a coragem”, escreveu em uma de suas belas cartas. “Tudo o que fazemos pelos outros é tirado de nossas crianças.” O marido, contudo, teve a oportunidade de lhe mostrar que não trabalhara em vão. Em 30 de novembro de 1881, uma década e meia depois de a primeira edição de O Capital ter sido publicada sem repercussão crítica, ele leu a Jenny o que escrevera Belfort Bax em um periódico: “O livro encarna o funcionamento de uma doutrina em economia comparável, por seu caráter revolucionário e importância abrangente, ao sistema de Copérnico em astronomia ou à lei da gravitação e da mecânica”. Marx viu os olhos dela nesse momento “maiores, mais adoráveis e mais luminosos do que nunca”. Jenny, que sofria de câncer, morreu dois dias depois, aos 67 anos.