terça-feira, 5 de novembro de 2013

Mentes comprometidas “Em transe”

Último filme do premiado diretor Danny Boyle, 'Em transe', levanta aspectos da psiquê para compreender até que ponto a ação das pessoas é fruto de decisões individuais
Carolina Ferro – da Revista de História
James McAvoy faz o segurança Simon [Foto: Divulgação]
Todos os dias, inúmeras pessoas sofrem influência direta ou indireta para tomar suas decisões cotidianas, seja através de uma propaganda, da conversa com os amigos, com a família, na escola ou no trabalho. Os mais autocríticos (ou com maior autoconhecimento) conseguem perceber melhor essas nuances, mas mesmo eles se surpreendem ao ver que agiram por influência de outrem.  Em transe faz o espectador questionar o tempo inteiro: até que ponto as decisões de uma pessoa correspondem aos seus anseios? E que segredos nós queremos revelar?
A história começa com a tentativa de roubo da tela “Voo das bruxas”, de Goya (1746-1828), quando estava sendo leiloada, na Inglaterra. O responsável pela equipe de segurança, Simon (James McAvoy) consegue fugir com a obra de arte, mas o chefe da gangue de ladrões, Franck (Vincent Cassel) o encontra e dá um golpe em sua cabeça. Simon cai desmaiado e Franck foge com a pasta que deveria conter a tela. Como a pasta estava vazia, Franck sequestra Simon para que ele fale onde escondeu o objeto do furto, mas, devido ao golpe na cabeça, ele não consegue se lembrar.
Após algumas tentativas frustradas de “arrancar” informações sobre a localização da tela, Franck decide que a melhor opção é contratar um especialista em hipnose para “resgatar” a informação perdida na mente do homem que a guardou. É permitido a Simon que ele escolha seu terapeuta através de uma lista de hipnotizadores encontrados na internet. Ele olha todas as fotos, mas paralisa na imagem de Elizabeth (Rosario Dawson) e a trama começa a ganhar corpo.
A princípio, Elizabeth parece tentar ajudar o segurança a escapar da gangue de ladrões. Descoberta, ela se insere no cotidiano da gangue e se envolve amorosamente com os dois protagonistas. Uma rede de intrigas e violências se estabelece em torno das seções de hipnose. A cada momento, Simon começa a descobrir mais detalhes de sua vida que estavam obscuros e os personagens passam por provações constantes de amor, ódio, companheirismo, lealdade e obsessão.
Elizabeth é a grande personagem da película. De traços simples (mas muito fortes), rosto limpo, cabelos longos sem corte e personalidade aparentemente frágil, ela se transforma numa mulher fatal quando demonstra mexer com a mente dos dois personagens como quem brinca como fantoches. Se antes eles eram opositores apenas por conta do quadro perdido, tornam-se inimigos mortais na disputa pelo amor da terapeuta.
  Trance - Dir. Danny Boyle, 2013, Reino Unido
As imagens de câmeras paradas e focos de luz intensos de apenas uma cor, típicos dos filmes de Danny Boyle também estão presentes e fornecem uma aura de participação de quem aparentemente apenas observa. Não há um só momento em que o espectador se desligue e tal como os personagens masculinos da história, ele se sente enganado pela trama.
O tema da hipnose já apareceu em várias obras cinematográficas de gêneros distintos. Na comédia romântica, destaca-se O amor é cego (2001), dirigido por Peter e Bobby Farrelly, onde o personagem Hal (Jack Black) é hipnotizado para que ele veja apenas a beleza interior das pessoas. O protagonista acaba se apaixonando pela bela e generosa gordinha Rosemary (Gwyneth Paltrow) e com o fim da hipnose começa a enxergar as pessoas de outra forma, promovendo uma mudança comportamental estrutural, bem diferente das convenções sociais e estéticas predominantes que tanto influenciam na hora da escolha de um par amoroso. Outro suspense, mais próximo do filme analisado é o que leva o nome da prática terapêutica: Hipnose (2002). Nele, uma policial (Shirley Henderson) que pretende parar de fumar procura um terapeuta (Goran Visnjic) que utiliza do método para acabar com o vício. A hipnose praticada pelo psicólogo passa a ser vista como um dom, pois a policial começa a desvendar crimes através da prática. Mas, além disso, segredos que jamais seriam revelados com o paciente consciente aparecem desvendados nas seções. Daí vem um dos problemas mais sérios. A questão da viabilidade da prática, tendo em vista revelações do subconsciente que o indivíduo prefere manter escondidas.
O termo "hipnose" foi cunhado em 1842, por James Braid (1795-1860), mas foi com Jean Charcot (1825-1893) e com Sigmund Freud (1856-1939) que a hipnose tornou-se amplamente conhecida. Enquanto para Charcot, apenas os histéricos eram hipnotizáveis, Freud dedicou-se profundamente à prática no início de sua carreira. Acabou por abandoná-la, pois acreditava que ela trazia apenas memórias reprimidas. Aos poucos, os sonhos foram tomando uma importância muito maior para o médico e criador da psicanálise.
Posteriormente, vários personagens, de médicos a terapeutas e mesmo ilusionistas, se utilizaram da hipnose com certo sucesso, mas com finalidades distintas. No Brasil, quase todos já viram apresentações televisivas do hipnólogo Fábio Puentes, conhecido por entortar talheres e fazer com que as pessoas comam cebolas como se fossem maçãs.
De fato, a prática da hipnose pode ser considerada uma forma de poder. Enquanto o indivíduo estiver sob efeito do transe, a mente fica sob controle de outra pessoa e o melhor e o pior de um ser humano podem ser descobertos. É o que acontece com Simon e Franck. Estragando o suspense (mas nem tanto), Simon (o bom moço da segurança) mostra-se um monstro para os padrões sociais contemporâneos, Franck (o líder dos ladrões) demonstra-se uma pessoa confiável e gentil e Elizabeth (a terapeuta) consegue justificar a dominação da mente dos dois homens.

O filme não ficou muito tempo em cartaz, mesmo nos cinemas mais restritos. Trata-se de uma obra bem diferente de Quem quer ser um milionário (2008), ou Trainspotting (1996) - grandes sucessos de Danny Boyle. Não se trata de um grande blockbuster, mas faz pensar se todas as nossas sugestões são fruto de fortes influências que nossa mente sofre. Até a escolha deste filme para a seção pode ser parte de um jogo feito pelo diretor para promovê-lo. Quem sabe?