..................................................................A notícia como nunca foi.
sábado, 21 de novembro de 2015
sexta-feira, 13 de novembro de 2015
Artigo: O ensino/estudo por temas no Ensino Médio - uma experiência, algumas propostas.
Marcos José de Souza*
O ensino na etapa final da
educação básica vem se consolidando ao longo de sua formação em um amplo e profícuo campo de debates. Longe de desvalorizar a produção científica nacional
vou me concentrar somente, nesse texto, nas nossas práticas cotidianas ao longo
dos nossos 15 (anos) de exercício pedagógico no Ensino Médio, no âmbito da área
de Linguagens, nas disciplinas LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA BRASILEIRA e
REDAÇÃO.
Desde nosso primeiro ano de
trabalho, no Colégio Estadual Luís Eduardo Magalhães, Fatima-Bahia, em 2001,
desenvolvemos trabalhos paralelos denominados de projetos de estudo. O primeiro
deles foi o EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO SEMIÁRIDO FATIMENSE. Anos mais tarde, criei o
NA TRILHA D’OS SERTÕES. O primeiro durou aproximadamente 05(cinco) e, anos mais
tarde, 2009, criei o segundo, cuja abrangência extrapola o universo escolar,
sendo já aplicado junto a comunidade local e também no município de Cícero
Dantas.
Ambos os projetos tinham como
fonte, origem, o estudo do livro OS SERTÕES, de Euclides da Cunha. Partindo da
leitura de trechos do livro, íamos ampliando nosso repertório informativo
acerca do nosso universo social sob todos os aspectos: literário, histórico,
religioso, botânico, geográfico, antropológico, político e social-sociológico.
Naquela oportunidade
desenvolvíamos isoladamente no âmbito disciplinar, os enfoques mais
“aproximados” de cada matéria de ensino dentro do tema proposto, EDUCAÇÃO
AMBIENTAL NO SEMIÁRIDO FATIMENSE. O projeto não tinha um período definido e
cada professor agia isoladamente
Numa tentativa de
interdisciplinaridade, através da multidisciplinaridade, realizávamos as
seguintes atividades:
1. Viagens
locais, a fim de conhecer nosso lugar: fazendas deste município e de vizinhos,
como a serra do capitão, palco do livro Serra dos dois meninos de Aristides
Fraga Lima, ed. Atica; outras mais distantes, a exemplo de Canudos, Monte
Santo, Paulo Afonso, entre locais.
2. Exibição
de filmes a exemplo de Paixão e guerra no sertão de Canudos, de Antonio Olavo,
um documentário que registra a presença de descendentes dos conselheiristas.
3. Produção
de cartazes e jornais informativos das mais diversas etapas dos estudos;
4. Organização
de seminários sub-temáticos com o protagonismo juvenil; e
5. Resolução
de provas no estilo tradicional, com perguntas subjetivas e objetivas baseadas
nos textos utilizados durante o período de estudo.
O segundo projeto “nasceu” mais
organizado, com estrutura definida, mas sem abranger o universo proposto por
seu idealizador, que era o de se constituir como trabalho curricular da própria
escola, independentemente do
profissional que assumisse ali suas funções.
Compreendendo ainda as
disciplinas LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA BRASILEIRA (LPLB)e REDAÇÃO (RED.),
ganhou a adesão de SOCIOLOGIA (SOC.) este segundo projeto foi inicialmente
aplicado no município de Cícero Dantas para uma turma de professores
radialistas e outros profissionais.
Somente no ano de 2013 o projeto
ganhou espaço na escola onde trabalhamos, configurando uma unidade letiva de
ensino junto as disciplinas acima indicadas.
De modo semelhante, mas não
igual, quanto a execução do primeiro, o NA TRILHA D’OS SERTÕES tem conquistado
os estudantes, o que atribuo às viagens a utilização de vários filmes durante a
realização do projeto. Outro diferencial é o de que construímos uma feição
própria para o projeto de estudo incluindo-o no calendário escolar e
configurando-o como unidade letiva (nesses dois anos de execução a unidade
usada foi a terceira). A série onde o trabalho acontece é o 3º ano, pois é com
essa série que o autor desenvolve, desde o ano de 2001, as viagens denominadas
por ele como Turismo pedagógico.
Inicialmente os estudantes são
apresentados a proposta. Com a confirmação, passa-se à construção do plano de
trabalho de modo coletivo, incluindo as leituras, as atividades avaliativas, as
viagens, os filmes, entre outras possíveis indicadas pelo coletivo estudantil.
O mote é a leitura do livro Os
Sertões, leitura obrigatória em todos os livros didáticos utilizados pelo
professor nesses 15 anos de atividade de estudo no Ensino Médio, parte do
chamado pré-Modernismo na Literatura brasileira.
O livro é exposto e os seus
principais “personagens”, Antonio Conselheiro, a Guerra de Canudos e o próprio
autor do livro são apresentados aos estudantes.
Agora de modo interdisciplinar,
as atividades são desenvolvidas nas disciplinas sem maiores percalços, sendo a
mola propulsora do cotidiano o referido livro de Euclides da Cunha. Por
exemplo: em determinado dia de aula, o filme Guerra de Canudos, de Sergio
Rezende, foi iniciado na aula de Redação, mas devido a sua longa duração, a
aula de Sociologia será usada para dar continuidade a exibição da película sem
que haja prejuízo para a classe.
Do mesmo modo, alguma atividade
avaliativa fora iniciada na aula de Sociologia, poderá ser concluída na de
Lingua Portuguesa. E por falar em avaliação, desde a tradicional prova de
perguntas diretas, a produção de texto é uma constante, privilegiando a visão
de mundo dos educandos.
De modo amplo como ficaria nosso ensino por temas no
ENSINO MÉDIO?
A nossa ideia, ainda
embrionária, é a de que a oferta de estudo no Ensino Médio fosse realizada
através de temas, nos moldes de mine-cursos, com carga-horária delimitada, como
embrionariamente vimos nos dois projetos acima mencionados e carentes de
amadurecimento coletivo, seja com a presença de profissionais que atuam no
setor pedagógico-curricular das escolas e das secretarias de educação, mas e
principalmente com professores, professoras e estudantes.
A ideia é a de que cada escola,
de modo coletivo, crie seus mine-cursos, mas sem abandonar as Diretrizes
Curriculares Nacionais do Ensino Médio e as prerrogativas legais da Lei de
diretrizes e bases da educação nacional. Assim teríamos um currículo de fato
diversificado e possivelmente mais atraente ao jovem, por demais romantizado
como protagonista, mas dificilmente a frente das decisões sobre aquilo que
sempre disseram ser ele o principal interessado. Outra novidade seria a do
trabalho em conjunto, isto é, qualquer mine-curso poderá ser ministrado por
mais de um professor e os formatos dependeriam da ideia do/dos
planejadores/professores.
Entretanto a carga-horária
semanal de estudos deve ser obedecida e os projetos adequariam os seus
trabalhos a determinadas exigências de horário e de duração, tendo em vista a
sobrecarga de uns em detrimento da diminuição de trabalhos de outros.
Como vimos, não me propus a
“dizer” muito sobre o que penso e aqui idealizo, por entender que a proposição
exige o pensar e o repensar da própria coletividade envolvida em cada cantinho
desse país. Desse modo cada currículo terá a “cara” de cada escola, a cara de
cada lugar.
Texto não revisado pelo autor.
Fim de tarde anunciador de altas temperaturas
Fatima, ex-Monte Alverne, 25 de agosto de 2015.
*Atuando, por enquanto, no Colégio Estadual Eduardo
Magalhães, graduado em Educação Física e Mestre em Educação, ambos pela
Universidade Federal de Sergipe – 1992 e 1999, respectivamente. Colaborador do Cheio de Arte.
Conto: O último bilhete
Natã Santana
Um acontecimento dessa natureza sempre
deixa a população abalada, ainda mais quando a cidade é pequena, daquelas onde
o asfalto ainda não cobriu as ruas de pedras portuguesas. Já era de se esperar
uma comoção generalizada, sendo a vítima tão jovem e a morte tão triste. Coube
ao padre apenas algumas explicações vagas em nome de sua absolvição pública,
mesmo que todo o povo já o houvesse tomado por culpado. Se existiu alguém, que
por um instante, refletiu sobre a possibilidade de considerá-lo inocente na
história, esse alguém foi o delegado Santoro, por assisti-lo aos prantos
durante seu depoimento.
Dr. Benício Franco, como o chamavam em sua
terra natal, era um homem lindamente arrasador: bonito, forte, alto e moreno.
Um daqueles que vemos no mercado e logo nos pegamos imaginando-o na cama, ou
pelado no banho. Mas aqui em Terra Branca, seu título de doutor era totalmente
irrelevante, - para não dizer esquecido; Só os íntimos sabiam sobre sua
profissão pré-celibato. Aqui ele era só Padre Benício, o melhor padre da
região. O difícil é saber se esse último título lhe foi atribuído devido a seus
incríveis sermões de domingo ou a sua beleza incomparável que arrancava
suspiros das solteironas que fingiam ir à missa pela palavra.
Aos fins de semana, Benício se dedicava
totalmente à paróquia. Organizava o mural da igreja, articulava o sermão,
revisava a agenda de visitas e realizava a missa principal. A igreja era sempre
lotada, o ofertório nem tanto, e os dois ventiladores novos eram falhos perante
a fornalha que se formava no instante em que ele tomava seu posto no púlpito.
Era um abanar de mãos e um sacudir de saias que muitas vezes faziam a igreja
parecer um ântro de estímulo sexual.
Às terças e quartas o confessionário vivia
lotado. Tinha dias, inclusive, nos quais se pegava fila para receber o perdão
daquela voz gostosa que ecoava por trás dos pequenos buraquinhos na tela do confessionário;
a maldita tela que bloqueava nossa visão dos mesmos lábios grossos e chamativos
a pronunciar as penitencias. Benício era calmo, e procurava, ao menos nesses
instantes, ser o mais breve possível para que menos gente se ajuntasse na fila.
Foi numa dessas ocasiões que Brenda surgiu.
― Padre, estou muito envergonhada.
Introduziu, ela.
― Não se reprima, minha filha. Todos somos
pecadores.
A
voz dele a deixou em êxtase mais uma vez, e ela continuou:
― Eu sei, Padre. Mas meu pecado é
realmente uma afronta a Deus... Sou apaixonada por um homem impossível.
Desejo-o mais do que tudo, mesmo sendo de uma família correta. E já não sei se
tenho controle sobre meu erro.
Benício
repensou um pouco suas próximas ponderações, e então as dirigiu:
― Filha, o desejo é parte da natureza
humana; muitas vezes é até involuntário. Na consumação é que se encontra o
pecado. Você já o consumou?
― Não, Padre.
― Então não há pecado. Afaste-se dele
enquanto é tempo.
Ela
pensou em como sua mãe a arrastava para a missa todos os dias possíveis, e
contrapôs: ― Receio que talvez não possa, nem queira, evitá-lo.
― Todos podem evitar o mal quando de fato
queremos, minha fi...
― É o senhor, Padre. É você o motivo de
meus orgasmos noturnos. Interrompeu ela, aflita.
Benício
sorriu com o canto da boca, e continuou a argumentar que não havia nada de
errado com os desejos de Brenda. Ali mesmo ele reconheceu que pouco adiantaria
uma conversa comum de aconselhamento no confessionário e despediu-a dizendo
pretender revê-la novamente em outra situação.
Durante
a missa do próximo domingo, o sermão estava impecável como sempre; e como de
costume, Brenda, em nenhuma palavra prestou atenção. Mantinha o olhar fixo
sobre a expressão corporal de Benício, como se o estivesse devorando em
segredo, porém, ele, guardava o olhar bem longe de sua direção. E assim o foi
até o memento da hóstia.
O
pão não parecia muito apetitoso, e Brenda também não se importava tanto quanto
sua mãe a ensinara, com a solenidade da ocasião. Dona Ermézia sempre a alertava
sobre a importância de receber o “corpo de Cristo”: “Reze e mantenha o
pensamento imaculado quando receber a hóstia, minha filha”.
Quando
ela se aproximou de Benício, pensava em tudo, menos no alerta de sua mãe.
Imaginava a grandeza do corpo por baixo daquela batina cansada e a leveza das
mãos a escolher as bolachinhas mal assadas. Ele, inteiramente atento ao que
estava fazendo, guiou a pequena hóstia até a boca seca e sedenta de Brenda e
antes que ela se virasse, gesticulou com os lábios um curto recado que foi
claramente entendido por seu olhara atrevido: “não mastigue”. Ela voltou para o banco, ao lado da mãe, e
enquanto todos degustavam o sabor da massa fresca, permaneceu de boca fechada e
quieta até o momento de oração.
Assim
que todos fecharam os olhos para dirigir suas preces, ela retirou a bolacha
molhada, porém ainda intacta, da boca e lá estava a razão da recomendação de
Benício: “9 horas, amanhã, atrás da paróquia”.
Ela
devolveu a bolacha à boca, engolindo-a com todas as letras borradas de saliva,
levantou o olhar quando todos ainda se mantinham em reverência e sorriu para
ele, que pela primeira vez na missa, a fitou sorrateiramente e devolveu, sem
demora, o sorriso.
Na
noite do dia seguinte, a porta que dava acesso aos fundos da paróquia foi
aberta pela décima-quinta vez desde que fora instalada, a pedido especial de
Benício, e a conversa entre eles terminou no segundo cômodo do corredor que
ficava atrás dela, no quarto do padre. Ali Brenda experimentou sua primeira
sensação de liberdade e consumou, aos comandos do homem impossível, a
realização de seu desejo carnal mais profundo.
Benício
era um homem como qualquer outro, tirando o fato de sua excêntrica formosura;
não resistia a um belo par de pernas, e só não se perdia em sua libido com
muita frequência porque as moças que frequentavam a missa, apesar de
extremamente atraídas por sua figura, não eram tão atrevidas como Brenda. A
partir daquela noite, eu, o coroinha mais velho da paróquia, deixei de exercer
o papel de único objeto de satisfação sexual do padre.
Logo,
Dona Ermézia proibiu que Brenda se confessasse com tanta frequência. Não ficava
bem para uma moça de família correta dar mostras de que cometia tantos pecados.
Então eles estabeleceram um sistema de comunicação infalível que serviria tanto
para marcar os novos encontros quanto para aumentar a estima dos fiéis em
Benício. Ele distribuiu envelopes com a imagem de Nossa Senhora para que, pelo
menos uma vez por semana, os fiéis escrevessem pedidos e os guardassem dentro
do envelope, devidamente indentificado com o nome de quem desejava receber a
graça. Ao final da missa, ele recolhia os envelopes alegando que dedicaria um
tempo extra para rezar por aqueles pedidos e assim abençoá-los. Todos adoraram
a ideia, principalmente Brenda, que passou a escrevê-lo todas as semanas.
Os
envelopes não eram tantos porque a igreja era pequena e nem todos participavam
da nova dinâmica. Ele logo encontrava o envelope de Brenda, e assim que o lia
já lhe deixava uma resposta. Para o trabalho de devolução dos envelopes eram
requeridos os três coroinhas, dentre os quais eu estava, e nessa tarefa só
havia duas recomendações: nunca abram os envelopes, e devolva-os com atenção
impecável para que não errem seus donos. Meu sistema, então, foi bem mais simples
do que o de Benício: sugeri que dividíssemos a entrega de acordo com o
alfabeto. Eu devolveria os envelopes cujo nome do dono começasse com qualquer
letra entre o A e o I, e os outros coroinhas se dividiam com o restante do
alfabeto. Assim eu poderia ler todos os bilhetes que chegavam e iam para
Brenda, porque desde muito cedo comecei a perceber que havia algo entre ela e
Benício.
Quase
todas as semanas eles se encontravam, e ficaram tão íntimos que Benício chegou
a copiar a chave da porta dos fundos da paróquia para que ele não mais a
precisasse esperar. Já a aguardava no quarto, com aquela cueca azul e a mesma
expressão de dominador que usava comigo antes de Brenda. Por diversas vezes eu
a espreitava chegar ao fundo da paróquia com o mesmo ar temeroso e sedento de
quem está prestes a abrir o baú do tesouro. Mas eu só a via por saber dos
encontros. Ninguém mais passaria por ali àquela hora, para a felicidade dos
imprestáveis. A casa paroquial ficava no final da rua, e atrás dela só havia
uma estrada de terra beirando um campo escuro e arborizado.
Minha
frustração aumentava a cada dia. Sentia falta da companhia privada de Benício,
que desde então passou a me evitar constantemente, sem ter ideia de que eu
conhecia a razão pela qual havia deixado de ser interessante para ele. Mas
sempre que o questionava, ele destruía mais de minhas expectativas, mas de mim
próprio.
Os
bilhetes já não se detinham a horários e convites. Eram cartas de algo que eu
nunca recebi dele, eram cartas de amor. Falavam da falta que um fazia ao outro,
do quanto gostariam de viver livres – ela da família moralista, ele do celibato
-, e até de como seria lindo se pudessem ter um filho juntos.
Permaneci
acompanhando-os em segredo e logo aprendi a odiá-los, mas ainda não tinha ideia
do que fazer para desmascará-los. Mas não demorou muito até um dos bilhetes me
obrigar a agir.
Em
uma das missas lotadas de domingo, lá estava mais um bilhete de Brenda. Este,
porém, com uma mensagem bem mais perturbadora para mim. Ela dizia já ter se
decidido a fugir com ele e que conversariam melhor sobre o assunto no próximo
dia, quando voltaria para mais um encontro às escondidas. Eu fiquei atônito ao
ler a palavra fugir, que para maior aflição, estava com o I pontuado com um
coração perfeitamente equilibrado.
Era óbvio que estavam loucos de amor e que
não demorariam a irem embora pra sempre. Mas decidi, no mesmo instante em que a
ultima lagrima me escorreu pela face, que aquilo não ocorreria e que já sabia o
que fazer.
Na
noite posterior, peguei a antiga arma de papai, mesmo sem saber usá-la muito
bem, e aguardei atrás do eucalipto mais próximo do muro que cercava a paróquia.
A arma na mão direita; e na esquerda, uma corda de linho grosso e resistente
que comprei naquela manhã.
Quando
Brenda surgiu em meio à escuridão das 09h35min daquela noite, meu coração
disparou sutilmente, mas em nenhum momento pensei em retroceder com o plano.
Não os deixaria fugir. Era tudo que martelava em minha consciência. Ela vestia
uma seda branca e deixara metade dos cabelos soltos sobre os ombros. Usava uma
capa azul-claro por cima do vestido e detinha a mesma expressão ansiosa e
cautelosa de noites atrás. Parecia estar vestida e pronta para morrer.
Eu
a abordei com a arma apontada para seu peito esquerdo, e sem nenhum barulho
excessivo, a obriguei a seguir em direção às árvores mais distantes pela
estrada de terra. Ela chorava o tempo inteiro, mas em nenhum momento me
comoveu, pois por sua causa eu também me rasguei aos prantos enquanto ela
saboreava o prazer que nunca deveria ter deixado de ser meu.
Eu
a fiz várias perguntas e ali mesmo ela me confessou detalhes de tudo; desde o
primeiro bilhete na hóstia, até os planos da fuga. E ambos chorávamos juntos –
ela por medo de mim, e eu por raiva dela.
Assim
que lancei a corda sobre o galho mais baixo de uma das árvores debaixo das
quais paramos, ela começou a entrar em desespero ainda maior e a me perguntar o
que eu pretendia. Não respondi nada. Apenas a obriguei a escalar o tronco, que
de tão deformado em nada dificultou a tarefa, e ameacei apertar o gatilho caso
não me obedecesse. Em seguida, também subi, e ainda sob minha mira, ela mesma
deu o nó em volta do pescoço. Eu só tive de empurrá-la. E o fiz sem dó alguma.
O
galho que escolhi não era tão alto, mas foi o suficiente para não deixá-la
alcançar o chão. A morte foi trágica, porém piedosa. Em poucos segundos,
algumas gotas de sangue escorreram pelo canto de sua boca e se depositaram
entre os seios, e ali mesmo depositei o último bilhete.
Logo
que o corpo foi encontrado, o povo correu para a paróquia furiosamente, e
Benício só não foi apedrejado porque o delegado o levou preso às pressas.
A
notícia foi avassaladora por todas as regiões em redor: uma moça jovem, bonita
e de família correta se rendera ao suicídio, e tudo que deixara fora uma
memória manchada e um bilhete preso aos seios que afirmava seu arrependimento
por ter se deixado iludir por um padre promíscuo.
Depois
de meses acompanhando os bilhetes de Brenda, não fora difícil copiar suas letras
de modo quase perfeito. Nem mesmo Benício foi capaz de duvidar que aquelas
letras eram de fato dela.
O
primeiro bilhete Brenda comeu, e eu nunca o vi, mas o último fui eu que
escrevi.
Natã Santana é escritor natural de Heliópolis-Ba. Estuda Letras na Universidade Federal de Sergipe - UFS - e é colaborador do Cheio de Arte. |
segunda-feira, 2 de novembro de 2015
Dossiê Canudos (1): Viver e morrer em Belo Monte
O arraial de Conselheiro tinha
hierarquias e personagens estratégicos para a rotina e para a guerra
*Walnice Nogueira Galvão
Canudos em 1897, antes da completa destruição (Litografia: D. Urpia) |
Ao fim de uma série de protestos
contra os novos impostos republicanos, enfrentando a polícia baiana em vários
lugarejos, Antônio Conselheiro e seus prosélitos instalam-se em Canudos em
1893. A peregrinação de duas décadas chega ao fim. Eles vão entrincheirar-se e
fortificar-se no fundo do sertão, no alto das serranias, como se tivesse soado
um toque de recolher.
As terras em que ficava Canudos
não eram desertas e ali já existia um povoado assim chamado, à margem do
Vaza-Barris, um rio intermitente. Os conselheiristas se estabeleceram e
sobreviveram de uma parca agricultura de subsistência, plantando mandioca para
o preparo de farinha e cana-de-açúcar para a fabricação de rapadura, criando
cabras. Assim se fundou o Belo Monte, nome bíblico dado à cidadela que ergueram
como baluarte contra a República instaurada em 1889, sobrepondo-se à Canudos
preexistente.
Em pouco tempo abriu-se uma rua
principal na praça das igrejas, que ficou conhecida como a rua das Casas
Vermelhas, destacando-se do conjunto devido à cor das telhas. As duas igrejas
defrontavam-se de dois lados da praça. A primeira era a de Santo Antônio ou
Igreja Velha, consagrada em 1893 com festas e foguetório. A segunda, a do Bom
Jesus ou Igreja Nova, de maiores proporções, não chegaria a ser terminada. A
capelinha do povoado anterior passou a ser chamada de Santuário, preservando o
altar e abrigando imagens de santos. Num quartinho anexo morava Conselheiro, e
ali seria sepultado.
Esse era o centro ao redor do
qual, gradativamente, se ergueria a aglomeração de casebres. A construção em
taipa ou pau a pique – barro reforçado com galhos – tornava a cidadela
indistinguível, na mesma monotonia parda da caatinga. O conjunto, sem um mínimo
de cuidados de urbanização – como arruamento, calçadas, esquinas e muito menos
saneamento ou água encanada – viria a formar “um labirinto inextricável”, nas palavras
de Euclides da Cunha.
Na vida cotidiana do arraial
predominava a religião. Como de hábito no sertão e em geral no interior do
país, era uma religião festiva, em contraste com a austeridade preconizada pelo
líder, que não tolerava luxos ou abusos de conduta. Os habitantes organizavam
suas vidas em torno de dois ofícios religiosos diários, à madrugada e à
noitinha, e periodicamente assistiam aos conselhos do Peregrino, com data
previamente marcada, para os quais vinha gente até de longe. Canudos tornou-se
um centro de romaria, atraindo crentes para pedir audiência ao Conselheiro e
fazer doações.
À medida que a guerra se
avizinha, começa a acorrer gente de todos os quadrantes da região.
Multiplicam-se as cartas dos canudenses chamando parentes e amigos para virem
em seu socorro. Muita gente pelo sertão abandona seus pagos para acudir
Canudos, carregando família e agregados.
Nem todos eram miseráveis no
séquito: gente de posses havia se livrado de tudo para acompanhar o Peregrino.
Embora não fosse uma comunidade exatamente igualitária – havendo distinção
visível entre mais ricos e mais pobres, dada pela aparência das casas –
preservavam-se ali traços de igualdade. O mais marcante era a inexistência de
propriedade privada da terra. Quem chegasse podia erguer sua choça sem pagar
nada a ninguém. Alimentos, roupas e dinheiro, recebidos em donativo pelo
Conselheiro, eram repassados aos desafortunados.
Para que a comunidade fosse
funcional, alguma estrutura era necessária. Seu Estado-Maior, por assim dizer,
era a Guarda Católica. Constituída por 12 apóstolos, sobrepunha-se a tudo o
mais porque formava o quadro de imediato apoio a Conselheiro. Os guardas
andavam uniformizados, armados e municiados, e recebiam soldo. Revezavam-se
como sentinelas defronte ao Santuário, onde ele residia. Em seguida vinha a
Companhia do Bom Jesus ou Santa Companhia, bem mais numerosa, contando de 1.000
a 1.200 cabeças. Um grupo de beatas chefiadas por uma mordoma (Benta ou Tia
Benta) cuidava da administração da residência e do bem-estar do Conselheiro.
Ele quase não comia. Apenas o suficiente para manter-se vivo, mas observando total
abstinência.
O arraial contava com uma
professora, de modo a não descurar da educação das crianças. O próprio
Conselheiro frequentara escola, sabendo ler, escrever e até rudimentos de
latim. Um secretário, Leão Ramos, atendia ao líder como escriba. Havia um
curandeiro, Manuel Quadrado, perito em remédios silvestres e em simpatias. E
José Félix, o Taramela, servia de criado e homem de confiança, como chaveiro e
guarda das igrejas. Tornou-se renomado por sua fantasia sem peias, que o levava
a inventar casos mirabolantes sobre a subida aos céus de tantos canudenses
mortos, que afirmava ter presenciado.
Como a rotina incluía a guerra,
destacou-se um “chefe militar”: João Abade, encarregado supremo das operações
bélicas e da Guarda Católica, chamado de Chefe do Povo e Comandante da Rua.
Paralelamente, havia um “chefe civil”, Antônio Vilanova, abastado comerciante
responsável pela boa ordem da comunidade.
Houve combatentes ilustres. Como
o pernambucano Pajeú, salteador negro, famoso por sua imaginação tática ao
elaborar ardis guerrilheiros. Pedrão, negro imponente e hercúleo, originário
dali mesmo, da Várzea da Ema, era integrante da Guarda Católica e um dos 12
apóstolos. O historiador José Calasans
ainda o conheceu, nos anos 50, e com ele teve muitas conversas, que granjearam sua
admiração. Inválido das pernas, observou certa vez: “Faz pena um homem como eu
morrer sentado”. Antônio Beatinho ficou conhecido porque negociou a rendição de
300 pessoas, entre mulheres, crianças, feridos e velhos, nos últimos dias dos
combates. É do resultado dessa negociação a mais famosa foto da guerra,
mostrando a multidão andrajosa, doente e esquelética. Tanta abnegação foi
recompensada pela degola.
Joaquim Macambira, que já
residia em Canudos antes da chegada dos conselheiristas, possuía uma fazenda
nas cercanias e era dono de loja. Seu filho e xará, com um punhado de valentes
e as bênçãos do pai, tentou tomar a braços o canhão alcunhado de Matadeira,
pertencente ao exército, tombando morto ali mesmo. É um dos episódios mais
referidos da campanha, tendo despertado a admiração geral.
Também deixou lembranças o
sineiro Timotinho, que desafiava o exército insistindo em tocar o sino da
Igreja Velha todas as tardes, quando a fuzilaria das tropas inimigas se
concentrava nele. Um dia, dois tiros de canhão acertaram a torre, que
desmoronou, jogando o sino à distância e aniquilando o heroico sineiro.
Dentre os muitos artesãos que
labutaram na arquitetura sacra do Conselheiro – que durante as duas décadas de
peregrinação capitaneou a construção ou o reparo de igrejas, cemitérios,
calçadas e açudes por toda aquela região – o nome mais importante que a
história reteve é o de Manuel Faustino, mestre de obras e entalhador que
presidiu aos trabalhos da Igreja Nova. Antônio Fogueteiro, como a alcunha
indica, fabricava fogos, a que o povo do sertão em geral, e o de Canudos em particular,
era muito afeiçoado.
Os dois irmãos Ciriaco, os
combatentes negros Manuel e José, só se tornaram conhecidos décadas após o fim
da guerra. Servindo de guia em Canudos ao historiador José Calasans
(1915-2001), tornaram-se fonte de preciosas informações.
Na utopia que criaram, Antônio
Conselheiro substituiu o fazendeiro, o padre e o delegado de polícia, reunindo
em sua pessoa o poder das três autoridades que mandavam no sertão. Por trás de
sua figura estava o esforço admirável que uma população carente de tudo
desenvolveu para se organizar, resistindo à opressão e à exploração, além de
inventar formas alternativas de vida em comum.
Com a guerra, o dia a dia do
arraial foi totalmente degradado. Belo Monte, cujos habitantes passavam a vida
em oração e penitência para “salvar a alma”, conforme diziam, foi transformado
em antevisão do Inferno. Em vez do Paraíso a que todos aspiravam, com as
promessas das bem-aventuranças da pregação cristã, aguardava-os o ferro e o
fogo dos canhões, o incêndio do casario e a degola indiscriminada.
*Walnice Nogueira Galvão é
professora emérita da FFLCH-USP e autora de O império do Belo Monte. Vida e
Morte de Canudos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. (Artigo
publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional - dezembro de 2014)
Dossiê Canudos(2):Todos perdemos
O Exército quase deixou de
existir em Canudos, uma das campanhas mais sangrentas já travadas pelo Brasil,
e contra brasileiros
*Sandro Teixeira Moita
Infantaria do Exército atacando Canudos (foto: Flávio de Barros) |
A ferocidade das batalhas foi a
marca da Campanha de Canudos. E o Exército não estava preparado para a
magnitude da tarefa. As tropas ainda sofriam com os efeitos das recentes
Revolta da Armada (1893-1894) e Revolução Federalista (1893-1895), que
consumiram muito da sua capacidade. O inimigo da vez era um religioso cheio de
seguidores no interior baiano.
O fenômeno Antônio Conselheiro
era acompanhado de perto pelos líderes políticos locais. Sua capacidade de
arrastar multidões foi rapidamente identificada como uma forma de obter
trabalhadores e votos. Os oponentes do governador da Bahia, Luiz Vianna,
interpretaram sua falta de reação diante das andanças do Conselheiro como uma
estratégia: sua intenção seria tê-lo como aliado nas eleições de dezembro de
1896. Para pressionar o governador, boatos foram espalhados por todo o
interior, chegando rapidamente à capital, Salvador, dando conta de que
Conselheiro planejava tomar cidades vizinhas.
Colocado em xeque, Vianna pediu
ao governo federal homens do Exército, pois em governos anteriores, chefiados
por rivais de Vianna, a Polícia Militar do estado já tinha travado várias ações
infrutíferas contra os seguidores de Conselheiro A primeira expedição contra
Canudos foi comandada pelo tenente Manoel da Silva Pires Ferreira, à frente de
três oficiais e 104 soldados. A tropa seguiu de trem até Juazeiro e de lá
marchou até Uauá, onde esperou pelo ataque dos homens do Conselheiro. A vila
foi esvaziada pela população em pânico, e os sertanejos não demoraram a chegar:
na alvorada de 21 de novembro de 1896, vieram armados com facões, lanças e
armas velhas. Eram cerca de 500 homens contra os 104 de Pires Ferreira. A luta
durou quatro horas, até que os seguidores do beato se retiraram, batidos pela defesa
obstinada dos soldados.
Em relatório, o tenente Pires
Ferreira listou uma série de empecilhos internos que teve de enfrentar: fuzis
que esquentavam demais, fardas que se transformavam em farrapos e calçados que
rapidamente desapareciam, deixando os soldados descalços nas longas marchas
pelo sertão. Registrou também que tinham de dormir ao relento, pois não haviam
sido fornecidas tendas. Seus alertas, no entanto, foram postos de lado pelas
expedições seguintes, que acabaram enfrentando os mesmos problemas.
A segunda expedição foi
preparada sob o comando do major Febrônio de Brito. Como reforço, foram
convocados homens das unidades do Exército de Salvador, Aracaju e Maceió, além
de 250 membros da Polícia Militar. Entre os armamentos, chegaram metralhadoras
e dois canhões Krupp de 75 mm. Mas dificuldades logísticas afetaram os planos:
com meios de transporte limitados, Febrônio deixou pelo caminho suprimentos que
acabaram fazendo falta. Além dos jagunços, do ambiente hostil e do sol
escaldante, havia agora um novo inimigo: a fome. Os sertanejos atacaram os
soldados quando eles cruzavam a estrada do Cambaio, um dos montes que
circundavam Canudos. Uma dura batalha se seguiu. O saldo de baixas militares
foi de quatro mortos e 23 feridos, contra 115 dos conselheiristas. O monte foi
conquistado, mas os soldados estavam exaustos e a comida tinha acabado. Mesmo
assim a tropa foi em frente e, no dia seguinte, marchou na direção de Canudos.
O povoado era, de certa forma,
imponente: mais de 5 mil casas em um terreno que parecia inconquistável. Os
sertanejos não esperaram a aproximação dos soldados: tinham cercado a tropa de
Febrônio durante a noite, e avançaram sobre os militares por todas as direções.
O que era para ser ataque virou defesa, e cenas dramáticas se seguiram com
sangrentas lutas corpo a corpo. Cada vez mais adeptos de Conselheiro chegavam.
O major relatou ter sido atacado por mais de 4 mil inimigos. Dois dias de fome
cobraram seu preço: só restava a retirada, e os militares a fizeram, com saldo
de 10 mortos e 70 feridos. Entre os defensores de Canudos foram 300 mortos. A
notícia da derrota foi pessimamente recebida no Rio de Janeiro. E o coronel
Antônio Moreira César, que acabara de retornar de Santa Catarina após reprimir
duramente os federalistas, foi convocado para liderar uma nova expedição. Rumou
para a Bahia com batalhões de infantaria apoiados por cavalaria e artilharia.
Além dos baianos, recebeu homens de outros estados do Nordeste, totalizando
1.281 combatentes.
Avançando rapidamente, Moreira
César contornou os montes abrindo caminho na caatinga repleta de espinhos sob
sol terrível. A tropa sofria com a falta de água e de alimentos. No dia 3 de
março de 1897, os soldados conseguiram entrar no povoado. Unidades inteiras
desapareceram entre as pequenas casas, e o coronel foi ferido duas vezes. A
tropa se retirou quando o dia terminava. A agonia de Moreira César acabou de
madrugada, quando faleceu. A notícia correu entre os soldados que, no início da
manhã, começaram a se retirar em direção a Monte Santo, num movimento que logo
virou fuga desorganizada. Os sertanejos se aproveitaram para executar os
feridos e os militares que conseguiram capturar, decapitando-os. As cabeças
foram colocadas nos caminhos para Canudos, como um aviso.
Derrota ainda maior, horror no
Rio de Janeiro. O presidente Prudente de Morais (1894-1898) retornou da licença
médica e se encarregou de mudar o ministro da Guerra, alçando ao cargo o
marechal Carlos Machado Bittencourt. Ele organizou uma nova expedição, cuidando
dessa vez de garantir o fluxo de suprimentos do Exército, uma das principais
razões para as derrotas anteriores. A quarta e última incursão a Canudos foi
liderada pelo general Artur Oscar, com duas colunas comandadas pelos generais
João da Silva Barbosa e Cláudio do Amaral Savaget. O plano era que cerca de 5
mil soldados envolvessem Canudos e esmagassem o reduto apoiados por artilharia,
em especial um canhão apelidado pelos jagunços de “Matadeira”.
O avanço da coluna de Savaget
foi cuidadoso, mas sem saber esse grupo avançou contra a principal rota usada
pelos sertanejos para levar boiadas e suprimentos para o arraial. Em 25 de
junho foram travados os primeiros combates, e dois dias depois a frente
principal, comandada por Barbosa e com o general Artur Oscar, tomou o Alto da
Favela. No dia 28, um ataque dos conselheiristas fez com que as colunas se
unissem, pois Barbosa tinha sido cercado. Sob ordens de Artur Oscar, mais de 1
milhão de balas foram disparadas contra os sertanejos naquele dia. O combate
resultou em mais de mil baixas à expedição. Oscar estava sem suprimentos e
dependia de comboios que nem sempre chegavam, pois os locais muitas vezes se
apoderavam deles.
Em 14 de julho a tropa conseguiu
estabelecer uma linha dentro do arraial. Mas não sem um altíssimo custo: 1.014
baixas, praticamente um a cada três homens. O número manchou a reputação de
Artur Oscar, especialmente pela perda de oficiais. Batalhões que antes eram
comandados por coronéis estavam agora sob as ordens de tenentes. A situação de
desmanche impossibilitou novos ataques.
O impasse permaneceu até que
novos reforços chegaram, no fim de agosto. No dia 1º de outubro teve início um
novo ataque. A resistência foi enérgica. Mesmo sob forte bombardeio, o arraial
não se rendia. Nos dois dias seguintes houve tréguas: cerca de 500 a mil
sertanejos se renderam, entre mulheres, idosos e crianças. As investidas,
porém, não cessaram: os jagunços eram desalojados com o uso de bombas de
querosene e dinamite. O fogo se espalhou rapidamente no povoado, gerando um
cenário de total destruição.
A batalha chegou ao fim no dia 5
de outubro. O número de mortos no arraial é desconhecido – a estimativa vai de
5.500 pessoas (segundo registro do tenente Macedo Soares) até 26 mil, cálculo
baseado na média de cinco pessoas para cada uma das 5.200 casas do povoado.
O Exército também foi
destroçado. Quase metade de seu efetivo tinha servido na campanha, que deixou 4
mil combatentes mortos no solo árido do sertão. O episódio foi marcante para a
instituição, que nas décadas seguintes reavaliou seu papel na política
brasileira. Desde então os militares buscaram incutir na sociedade a ideia de
um organismo que era forte e preparado para os desafios que surgissem. Capaz
também de driblar armadilhas que pudessem implodir suas estruturas, como
aconteceu em Canudos.
*Sandro Teixeira Moita é
professor de história militar na Divisão de Preparação e Seleção da Escola de
Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). (Artigo publicado originalmente na
Revista de História da Biblioteca Nacional
- dezembro de 2014)
Dossiê Canudos(3): A mídia em campanha
Na defesa de interesses
políticos e disseminando preconceitos, imprensa ajudou a construir o massacre
anunciado em Canudos
*Dawid Danilo Bartelt
O cadáver de Antônio Conselheiro (foto: Flávio de Barros) |
“Há bons seis meses que por todo
o centro desta e da Província da Bahia, chegado, (diz elle,) do Ceará, infesta
um aventureiro santarrão que se apelida por Antonio dos Mares: o que, a vista
dos aparentes e mentirosos milagres que dizem ter ele feito, tem dado lugar a que
o povo o trate por S. Antonio dos Mares”. Publicada em novembro de 1874 em O
Rabudo, um pequeno semanal editado em Estância, no Sergipe, esta foi, ao que se
sabe, a primeira menção da imprensa brasileira a Antônio Conselheiro. Nos 23
anos seguintes, o personagem se tornaria a peça principal do grande
acontecimento “Canudos”, que foi também um evento midiático nacional.
“Opinião pública” era algo muito
limitado nos primeiros anos republicanos. Cerca de 85% da população eram de
analfabetos e a mídia se restringia basicamente a veículos impressos (as rádios
viriam a transmitir com regularidade no país apenas a partir de 1922). Isso
significa que os iletrados, os escravos e boa parte da população rural ficavam
à margem das notícias da imprensa, embora também incluídos na discussão pública
através da cultura oral.
Para o pequeno grupo de
indivíduos letrados existia uma grande variedade de jornais e revistas, de
diferentes orientações ideológicas. Desde 1894 nos jornais baianos, e de forma
rapidamente crescente nos jornais da capital nacional e de São Paulo, Canudos e
Conselheiro não apenas provocaram notícias nas páginas principais como viraram
título de colunas e motivo para versos de carnaval, sátiras e anúncios
comerciais – como o desta loja de calçados de Salvador, já em 1897: “Por
pessoas, recentemente chegadas de Canudos, ouvimos o seguinte: Que no último
ataque, um grupo de valentes soldados, depois de ter esgotado a munição,
lembrou-se de correr a pontapés os conselheiristas, confiados na resistência do
calçado que foi comprado na popular casa O Monumento. Que feliz ideia!”.
Num tempo em que fotografias
impressas em jornais eram raridade, o retrato desenhado do Conselheiro tinha
valor de mercado – a figura de barba longa, túnica, sandálias e bengala era
reconhecível mesmo sem o nome ao lado. Era já um signo, no sentido expresso por
um oficial do Exército, em 1896: “Antonio Maciel, Antonio Conselheiro e Bom
Jesus são três nomes distintos, mas, que um só deles basta para exprimir e
concretizar o inimigo do regime atual, o pregador contra os princípios sacrossantos
da lei, do trabalho e da moralidade”.
Mais do que uma “revolta” contra
a República, Canudos foi um acontecimento útil para dois diferentes conflitos
de poder nos tumultuados primeiros anos do regime. Com sua enorme capacidade de
atração popular, o tamanho do seu mercado e seu potencial bélico, o arraial do
Conselheiro desequilibrou os poderes políticos na Bahia, há tempos tensionados
pela disputa entre o governador Luís Vianna e o dono das terras daquela região,
José Gonçalves, aliado ao Barão de Geremoabo. Enquanto isso, na capital
nacional, Canudos virava fator decisivo para outra competição acirrada: a luta
entre os oligárquico-liberais, representando a elite cafeeira paulista, e os
“jacobinos”, influenciados pelo pensamento desenvolvimentista-ditadorial de
forte base militar. Vencer essa guerra era uma questão de sobrevivência
política para o governo do paulistano Prudente de Morais. Era por isso, e não
por constituir uma ameaça real à República, que o arraial tinha de ser
completamente aniquilado.
A função “crítica” da imprensa
se esgotava na defesa de posições partidárias dos proprietários, e não em prol
da defesa de princípios constitucionais ou democráticos. Em Salvador, com uma
população total de 200 mil habitantes (a grande maioria não alfabetizada),
circulavam cinco grandes jornais. O Diário da Bahia e o Estado da Bahia eram
gonçalvistas, enquanto o Correio de Notícias, o Jornal de Notícias e (com
restrições) o Diário de Notícias apoiavam o governador Vianna. Depois que os
seguidores do Conselheiro derrotaram as primeiras duas expedições de policiais
e soldados contra eles, os jornais da oposição se engajaram numa produção de
medo. Intensificaram a estratégia de criminalização aplicada desde 1893, ano da
fundação do arraial, desencadeando uma verdadeira campanha, com a publicação de
documentos – na sua grande maioria falsos – para “comprovar” repetidos ataques
de canudenses a fazendas da região. Levantavam a suspeita de que o governador
fazia de Conselheiro um aliado, usando-o para desestabilizar a região controlada
por seus adversários.
A partir de março de 1897, no
entanto, os dois campos políticos baianos viram-se encurralados juntos por um
forte discurso vindo dos jornais do Rio e de São Paulo. As notícias da derrota
da terceira expedição e da morte de seu líder, o famoso “herói” coronel Moreira
César, causaram pânico nas capitais. No sul, os jornais reforçaram o discurso
da conspiração monarquista, já introduzido pela imprensa jacobina. Agora se via
toda a Bahia caracterizada como reduto monarquista – afinal, naquele estado não
houvera um movimento republicano antes de 1889 e os políticos do Império
transformaram-se em republicanos pelas circunstâncias nacionais. Mas a verdade
é que o movimento monarquista dos anos 1890 era insignificante fora do Rio e de
São Paulo. A acusação de “monarquismo” era parte do discurso dos bacharéis
liberais e dos jovens oficiais “jacobinos”, que visavam instalar uma ditadura
modernizadora e positivista no Brasil.
O Nordeste, região de primazia
econômica do primeiro ciclo colonial, e Salvador, capital da Colônia, estavam
em decadência econômica e política. E os discursos midiáticos sobre a guerra de
Canudos reforçaram a imagem da Bahia e do “Norte” (o termo Nordeste ainda se
usava pouco) enquanto espaços de coronelismo e violência bárbara (dos
“jagunços”), incapazes de se modernizarem: “Só se fala em Canudos hoje em dia,/
De norte a sul, pelo país inteiro.../ E o glorioso nome da Bahia/ Amarrado ao
de Antonio Conselheiro!”, rimava o Jornal de Notícias.
Os lugares do evento midiático
“Canudos” foram as capitais no litoral, mas a principal novidade da cobertura
da imprensa nacional estava no sertão. Inaugurava-se a figura do correspondente
de guerra, escrevendo reportagens “ao vivo” – que levavam de 10 a 30 dias para
serem publicadas, após passarem pela censura militar rigorosa, ser
transportadas a pé ou por jegue até Monte Santo e então transmitidas por
telégrafo a Salvador (ou de trem, pela estação ferroviária de Queimadas), de
onde enfim seguiam para o sul. Na época, ainda desconhecido do público fora do
seu estado natal, o engenheiro Euclides da Cunha se tornaria o mais famoso desses
correspondentes de guerra.
Quando Euclides chega a Canudos,
o discurso midiático, construído de forma intensiva, diária, ao longo de um
ano, já havia produzido seu efeito final, e mortal: o governo do presidente
Prudente de Morais decidira destruir Canudos a todo custo. Morreram milhares de
famílias sertanejas, numa das maiores chacinas da história brasileira. Mas os
relatos de Euclides e de seus colegas ao menos contribuíram para uma mudança na
percepção dos canudenses pela opinião pública. Enquanto durante a guerra foram
considerados “inimigos da nação”, depois de mortos foram simbolicamente
reincluídos. Os inimigos se tornam irmãos e são considerados vítimas por
muitos.
Já não foi a imprensa a
protagonista desta mudança de perspectiva. O debate se transferiu para tratados
científicos, como o de Nina Rodrigues em 1897, panfletos políticos, uma série
de crônicas publicadas em livro por oficiais e civis participantes da guerra e
livros romanceados, como Os Jagunços, de Afonso Arinos, e O Rei dos Jagunços,
de Manuel Benicio, correspondente do diário carioca Jornal de Commercio. Os
Sertões, de Euclides, foi publicado cinco anos depois do fecho da guerra.
Assim como Canudos propicia
debates até hoje, continua atual a discussão em torno do papel da mídia no
Brasil enquanto formadora de opiniões sobre como a “nação” deve tratar os que
se encontram nas suas periferias social, econômica e cultural.
*Dawid Danilo Bartelt é doutor
em História pela Universidade Livre de Berlim, diretor do escritório Brasil da
Fundação Heinrich Böll e autor de Sertão, República e Nação (EdUSP, 2009). (Artigo
publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional - dezembro de 2014)
Dossiê Canudos(4): Notícias do fim do mundo
Canudos foi um evento de mídia
global, com ampla cobertura em jornais europeus. Leitores ingleses souberam do
fim do conflito antes dos brasileiros
*Berthold Zilly
Os sobreviventes de Canudos (foto:Flávio de Barros) |
Se a Guerra de Canudos teve,
como todas as guerras, traços arcaicos e bárbaros, ela também foi extremamente
moderna. Não apenas pelo emprego de avançada tecnologia militar, mas enquanto
guerra psicológica, orquestrada por ferrenha produção propagandística na
imprensa brasileira. E também na internacional.O telégrafo instalado pelo
exército entre as vilas de Queimadas, estação ferroviária mais próxima do
teatro de guerra, e Monte Santo, base de operação das forças legais, a 70 km de
Canudos, permitia a transmissao rápida de notícias para o país e para o mundo,
mas também a censura e as restrições ao trabalho dos correspondentes de guerra:
só os bem-comportados podiam se servir desse moderno e rápido meio de
comunicação.
Tudo isso é conhecido.
Surpreendente é saber que aquela guerra no distante sertão brasileiro, quase
fora da civilização, teve cobertura mundial. Durante meses as vicissitudes da
quarta expedição estiveram presentes na grande imprensa das Américas e da
Europa, com mil detalhes, fatos, mentiras e boatos, que as representações
diplomáticas do Brasil tentavam manipular. As notícias saíam do sertão para as
redações de Salvador, São Paulo e principalmente Rio de Janeiro, eram
transmitidas para as agências noticiosas de Londres e só então seguiam para as
redações de Berlim ou Paris, passando às vezes por Nova York, Lisboa e Buenos
Aires.
O interesse da Europa por
Canudos torna-se constante a partir da derrota da terceira expedição, comandada
pelo coronel Moreira César, em 3 de março de 1897, e vai até a vitória final do
exército, em 5 de outubro. Durante esses sete meses, o Vossische Zeitung,
grande diário liberal berlinense, publica 16 artigos ou notas dedicados à
guerra brasileira, e sete ganham a primeira página. No mesmo período, The
Times, de Londres, produz 15 artigos direta ou indiretamente relacionados a
Canudos. Enquanto isso, em Paris, o Le Temps traz 22 matérias sobre o tema.
No Brasil, alguns poucos
letrados indignaram-se diante do modo pouco civilizado com que a civilização
era imposta aos sertanejos, crítica que ganharia expressão de acusação e
protesto com Euclides da Cunha no livro Os Sertões (1902), mas que não teve
repercussão na imprensa europeia da época. Esta refletia a visão das elites do
Brasil, embora deixasse transparecer também algum respeito pela combatividade
dos sertanejos. Em princípio, os três jornais europeus não contestam as
afirmações e as metas do governo, torcendo claramente pela vitória das armas
legais. As únicas críticas referem-se aos comunicados precipitados de vitória,
aos erros de estratégia militar e às suspeitas de corrupção contra o alto
comando da quarta expedição. A principal fonte dessas objeções era o carioca
Jornal do Commercio, conhecido por seu ceticismo para com os republicanos
extremistas e no qual escreveu, por curto período, um dos poucos
correspondentes críticos em relação ao exército, Manuel Benício, obrigado pelo
alto comando a abandonar o teatro de guerra em julho de 1897.
Tratar Canudos como uma
insurreição era facilitado pelo fato de as palavras messias, fanático,
insurgente e rebelde serem facilmente traduzíveis. Mais complicado era explicar
outro conceito-chave da imprensa brasileira, o calunioso jagunço, descartado
pelos europeus. Ainda assim os conselheiristas eram desqualificados com
expressões incriminadoras, como “salteadores” e “ladrões de gado”. Porém, na
escrita relativamente sóbria desses jornais, não havia espaço para cobrir o exército com um
manto de heroísmo.
Se fossem deixados em paz,
talvez os conselheiristas não se tornassem tão perigosos. Esta inteligente
observação sobre o caráter defensivo do movimento aparece no jornal alemão e no
londrino, que retoma a mesma ideia várias vezes depois. O Times mantém-se em
descrença em relação à suposta conspiração monarquista, posição nem sempre
partilhada pelos outros jornais, que parecem mais próximos do governo
brasileiro. Em março, o Vossische Zeitung traduziu um artigo quase inteiro do
Times mas omitiu dois importantes elementos: o empastelamento de jornais
monarquistas no Rio e a avaliação do correspondente de que o apoio dos
monarquistas ao Conselheiro carecia de evidências.
Em abril, o jornal berlinense
tenta explicar a espantosa derrota da expedição Moreira César sem criticar
demais o seu comandante, reduzindo seus erros à subestimação do número de
inimigos. O artigo exagera a quantidade de combatentes canudenses e de soldados
mortos, tendência geral dos jornais brasileiros e europeus. Enquanto no
primeiro artigo os inimigos figuravam apenas como fanáticos, no seguinte eles
são chamados de rebeldes e insurgentes. A legitimidade de uma guerra contra
meros desgarrados mentais e ideológicos pode ser posta em dúvida, mas contra
insurgentes não há como hesitar, pois subvertem a ordem estabelecida, ameaçam a
vida e as propriedades. O artigo evoca o perigo, na realidade nunca existente,
das capitais do litoral serem invadidas pelos seguidores do Conselheiro,
preocupação espalhada por alguns jornais brasileiros.
O maior artigo publicado sobre
Canudos fora do Brasil naquela época foi provavelmente o do Times de 12 de
junho de 1897. Em carta, seu correspondente no Rio recorre a uma sintaxe
elaborada e a um raciocínio ora descritivo, ora analítico, para situar a guerra
no contexto político e econômico nacional. Atenua as alegadas superstições dos
sertanejos e refuta a tese de Canudos ser uma revolução dirigida contra o
governo. Se ele é perigoso, isso se deve à repressão – mas agora que esta
começou, tem que ser levada até o fim. O correspondente mostra-se preocupado
com o endividamento do Brasil, agravado pelas altíssimas despesas com a guerra,
o que prejudica, portanto, o crédito internacional do país.
O grande assalto fracassado do
exército, em 18 de julho, passa quase despercebido pela imprensa estrangeira,
pois, devido à censura, nem os jornais brasileiros souberam explicar o que
ocorreu naquele dia. Artigo do Vossische Zeitung de 10 de agosto levanta pela
primeira vez a tese do comunismo como princípio de organização igualitária de
Canudos, elogiando sua disciplina interna. Na primeira página de 8 de outubro,
o jornal alemão noticia a tomada de Canudos em longo artigo com um balanço da
guerra, mas recai em erros aparentemente já superados, como a tese da
conjuração monarquista – útil talvez para explicar a longa duração do conflito
e o desempenho decepcionante do exército. Os leitores alemães são informados do
fim da guerra quase tão rápida e amplamente quanto os brasileiros. Já os
londrinos souberam da tomada de Canudos no dia anterior, 7 de outubro, algumas
horas antes dos brasileiros devido à diferença de fuso horário.
O Vossische Zeitung ainda
ignorava, porém, a total destruição do arraial. Supunha a sobrevivência de
Canudos como cidade e Antônio Conselheiro mais tarde perante um tribunal. As
matanças sumárias e o extermínio a ferro e fogo de toda uma comunidade não
entram na imaginação do redator alemão. A biografia resumida do Conselheiro dá
ênfase a seu papel de profeta, anacoreta (monges cristãos que viviam
solitariamente) e messias, juntamente com o de fanático, provavelmente uma
tentativa de lidar com um fenômeno social insólito inserindo-o na lógica do
cristianismo. Chamar a guerra de conflito entre brasileiros e fanáticos
significa, implicitamente, excluir os canudenses da nação. Por outro lado,
enfocar a situação econômica como uma das causas da popularidade do Conselheiro
é uma explicação quase materialista, não frequente nos observadores brasileiros
da época. A cena dos fanáticos agarrando-se aos canhões atiçou a fantasia dos
leitores, pois aparece em vários artigos e livros sobre a guerra – é um topos,
cena emblemática inspirada pelo romance Quatrevingt-treize, do francês Victor
Hugo (1874), relatada e ficcionalizada também por Euclides da Cunha.
Entre os três artigos do Le
Temps sobre a queda de Canudos, consta a observação verídica de que o fim da
guerra fora um "massacre".
Curioso é que o periódico mais citado por outros jornais, o The Times, com
correspondente próprio no Rio, pouco noticiou o fim da guerra, resumido apenas
em notas nos dias 7 e 9 de outubro de 1897. O órgão central das elites
europeias ficou devendo um balanço da guerra, mas no geral sua cobertura foi a
mais completa, ponderada e objetiva de todas, a mais confiável à luz das
pequisas modernas sobre Canudos.
*Berthold Zilly é professor
visitante da Univesidade Federal de Santa Catarina e tradutor de Os Sertões
para o alemão. (Artigo publicado originalmente na Revista de História da
Biblioteca Nacional - dezembro de 2014)
Dossiê Canudos(5): Sobrevivência na tela
Ficção e documentário, dois
filmes são exemplos de como o cinema impediu que a destruição de Canudos
significasse esquecimento
*Sérgio Armando Diniz Guerra
Cadáveres expostos nas ruínas de Canudos (foto: Flávio de Barros) |
Quando as tropas militares
dispararam os últimos tiros contra o arraial liderado por Antônio Conselheiro,
Canudos estava arrasado. Mas simbolicamente tudo continuou bem vivo: décadas
depois daquele sangrento episódio, o beato e seu povo permaneceram ressoando na
memória e nos estudos de muita gente. São incontáveis as obras que surgiram
sobre o tema. Entre elas estão dois filmes que merecem ser vistos e discutidos
por conterem elementos fundamentais para um melhor entendimento daquele
universo de confronto: Guerra de Canudos, de Sérgio Resende, e Paixão e Guerra
no Sertão de Canudos, de Antônio Olavo.
Ambas as produções nasceram
quase um século após a queda do vilarejo baiano. E trazem, cada uma, suas
próprias técnicas narrativas, suas visões de mundo, seus objetivos, interesses
e compromissos. Enquanto o filme de Resende, lançado em 1997, é um longa de
ficção, Olavo reconstrói a história por meio de um documentário que veio a
público em 1993.
Em Guerra de Canudos, o diretor
aproveita a vida de seus personagens para contar o drama que também ficou
imortalizado em Os Sertões (1902), clássico da literatura nacional produzido
por Euclides da Cunha. Ao longo do filme, trechos bastante conhecidos do livro
são citados, além de outros documentos do escritor, como a famosa “Caderneta de
Campo” – com breves observações e ricas reproduções de fragmentos – e até um
“ABC”, integralmente copiado.
Levar para os cinemas a história
de Canudos não saiu barato. Para que a produção milionária pudesse se tornar
realidade, Sérgio Resende contou com fortes apoios financeiros, que vieram de
patrocínios dos órgãos públicos e de empresas privadas. O resultado foi uma
belíssima reconstrução daquela guerra, que contou com a contratação de
renomados técnicos – havia, inclusive, um profissional de Hollywood – e
artistas famosos do cinema, do teatro e da televisão nacional.
Uma cidade cenográfica foi
erguida na região, conferindo ao longa um elevado nível de fidedignidade
técnica e profissional. Assim como na vida real, terminou absolutamente
destruída após a Guerra. Além dos atores famosos, como José Wilker, Marieta
Severo e Cláudia Abreu, centenas de artistas locais foram escalados para
interpretar os habitantes da cidade. Do início ao fim, reviveram a violenta
intervenção do Exército nacional, apoiado por inúmeros batalhões de polícias
militares de vários estados brasileiros. Quase cem anos depois da guerra, as
câmeras lideradas por Sérgio Resende filmavam a reconstituição de uma vila que
foi bombardeada, queimada, conquistada palmo a palmo e por fim devastada, para
que sua imagem fosse definitivamente apagada de nossa história.
Isso, porém, não aconteceu, como
pode ser visto em Paixão e Guerra nos Sertões de Canudos. No documentário,
Antônio Olavo se baseia em depoimentos de vários estudiosos, além de
conhecedores da vida e da obra de Antônio Conselheiro. Ele também entrevista
populares, descendentes e familiares do beato, confrontando opiniões e
aproveitando as posições contrárias para discutir os vários temas que escolheu,
em rigorosa cronologia.
Para reconstruir a vida e os
caminhos do líder religioso, Olavo mergulhou fundo: refez o percurso do
Peregrino, viajando e filmando com sua equipe por mais de 2.400 quilômetros.
Cruzou o interior dos sertões do Nordeste, foi até Salvador e Rio de Janeiro, recolhendo
palavras, memórias e imagens de pesquisadores, acadêmicos, intelectuais, além
de palácios e museus, todos rigorosamente autênticos para compor o seu roteiro.
Sem os recursos dos grandes
patrocinadores, muito menos a garantia de exibição em uma extensa cadeia
nacional de telecomunicações – o que lhe garantiria público e recursos – o
diretor teve de contar com o voluntariado de amigos e apaixonados por aquela
história. A equipe não só deixou de receber, como financiou suas próprias
despesas, e alguns chegaram a dar contribuições para que o trabalho se
realizasse, de maneira quase inteiramente artesanal. Prova de que, mesmo
arrasado, o arraial de Canudos continua de pé na memória de muita gente.
*Sérgio Armando Diniz Guerra é
professor aposentado de história da Rede Estadual de Educação da Bahia e da
Universidade do Estado da Bahia. (Artigo publicado originalmente na Revista de
História da Biblioteca Nacional -
dezembro de 2014)