O arraial de Conselheiro tinha
hierarquias e personagens estratégicos para a rotina e para a guerra
*Walnice Nogueira Galvão
Canudos em 1897, antes da completa destruição (Litografia: D. Urpia) |
Ao fim de uma série de protestos
contra os novos impostos republicanos, enfrentando a polícia baiana em vários
lugarejos, Antônio Conselheiro e seus prosélitos instalam-se em Canudos em
1893. A peregrinação de duas décadas chega ao fim. Eles vão entrincheirar-se e
fortificar-se no fundo do sertão, no alto das serranias, como se tivesse soado
um toque de recolher.
As terras em que ficava Canudos
não eram desertas e ali já existia um povoado assim chamado, à margem do
Vaza-Barris, um rio intermitente. Os conselheiristas se estabeleceram e
sobreviveram de uma parca agricultura de subsistência, plantando mandioca para
o preparo de farinha e cana-de-açúcar para a fabricação de rapadura, criando
cabras. Assim se fundou o Belo Monte, nome bíblico dado à cidadela que ergueram
como baluarte contra a República instaurada em 1889, sobrepondo-se à Canudos
preexistente.
Em pouco tempo abriu-se uma rua
principal na praça das igrejas, que ficou conhecida como a rua das Casas
Vermelhas, destacando-se do conjunto devido à cor das telhas. As duas igrejas
defrontavam-se de dois lados da praça. A primeira era a de Santo Antônio ou
Igreja Velha, consagrada em 1893 com festas e foguetório. A segunda, a do Bom
Jesus ou Igreja Nova, de maiores proporções, não chegaria a ser terminada. A
capelinha do povoado anterior passou a ser chamada de Santuário, preservando o
altar e abrigando imagens de santos. Num quartinho anexo morava Conselheiro, e
ali seria sepultado.
Esse era o centro ao redor do
qual, gradativamente, se ergueria a aglomeração de casebres. A construção em
taipa ou pau a pique – barro reforçado com galhos – tornava a cidadela
indistinguível, na mesma monotonia parda da caatinga. O conjunto, sem um mínimo
de cuidados de urbanização – como arruamento, calçadas, esquinas e muito menos
saneamento ou água encanada – viria a formar “um labirinto inextricável”, nas palavras
de Euclides da Cunha.
Na vida cotidiana do arraial
predominava a religião. Como de hábito no sertão e em geral no interior do
país, era uma religião festiva, em contraste com a austeridade preconizada pelo
líder, que não tolerava luxos ou abusos de conduta. Os habitantes organizavam
suas vidas em torno de dois ofícios religiosos diários, à madrugada e à
noitinha, e periodicamente assistiam aos conselhos do Peregrino, com data
previamente marcada, para os quais vinha gente até de longe. Canudos tornou-se
um centro de romaria, atraindo crentes para pedir audiência ao Conselheiro e
fazer doações.
À medida que a guerra se
avizinha, começa a acorrer gente de todos os quadrantes da região.
Multiplicam-se as cartas dos canudenses chamando parentes e amigos para virem
em seu socorro. Muita gente pelo sertão abandona seus pagos para acudir
Canudos, carregando família e agregados.
Nem todos eram miseráveis no
séquito: gente de posses havia se livrado de tudo para acompanhar o Peregrino.
Embora não fosse uma comunidade exatamente igualitária – havendo distinção
visível entre mais ricos e mais pobres, dada pela aparência das casas –
preservavam-se ali traços de igualdade. O mais marcante era a inexistência de
propriedade privada da terra. Quem chegasse podia erguer sua choça sem pagar
nada a ninguém. Alimentos, roupas e dinheiro, recebidos em donativo pelo
Conselheiro, eram repassados aos desafortunados.
Para que a comunidade fosse
funcional, alguma estrutura era necessária. Seu Estado-Maior, por assim dizer,
era a Guarda Católica. Constituída por 12 apóstolos, sobrepunha-se a tudo o
mais porque formava o quadro de imediato apoio a Conselheiro. Os guardas
andavam uniformizados, armados e municiados, e recebiam soldo. Revezavam-se
como sentinelas defronte ao Santuário, onde ele residia. Em seguida vinha a
Companhia do Bom Jesus ou Santa Companhia, bem mais numerosa, contando de 1.000
a 1.200 cabeças. Um grupo de beatas chefiadas por uma mordoma (Benta ou Tia
Benta) cuidava da administração da residência e do bem-estar do Conselheiro.
Ele quase não comia. Apenas o suficiente para manter-se vivo, mas observando total
abstinência.
O arraial contava com uma
professora, de modo a não descurar da educação das crianças. O próprio
Conselheiro frequentara escola, sabendo ler, escrever e até rudimentos de
latim. Um secretário, Leão Ramos, atendia ao líder como escriba. Havia um
curandeiro, Manuel Quadrado, perito em remédios silvestres e em simpatias. E
José Félix, o Taramela, servia de criado e homem de confiança, como chaveiro e
guarda das igrejas. Tornou-se renomado por sua fantasia sem peias, que o levava
a inventar casos mirabolantes sobre a subida aos céus de tantos canudenses
mortos, que afirmava ter presenciado.
Como a rotina incluía a guerra,
destacou-se um “chefe militar”: João Abade, encarregado supremo das operações
bélicas e da Guarda Católica, chamado de Chefe do Povo e Comandante da Rua.
Paralelamente, havia um “chefe civil”, Antônio Vilanova, abastado comerciante
responsável pela boa ordem da comunidade.
Houve combatentes ilustres. Como
o pernambucano Pajeú, salteador negro, famoso por sua imaginação tática ao
elaborar ardis guerrilheiros. Pedrão, negro imponente e hercúleo, originário
dali mesmo, da Várzea da Ema, era integrante da Guarda Católica e um dos 12
apóstolos. O historiador José Calasans
ainda o conheceu, nos anos 50, e com ele teve muitas conversas, que granjearam sua
admiração. Inválido das pernas, observou certa vez: “Faz pena um homem como eu
morrer sentado”. Antônio Beatinho ficou conhecido porque negociou a rendição de
300 pessoas, entre mulheres, crianças, feridos e velhos, nos últimos dias dos
combates. É do resultado dessa negociação a mais famosa foto da guerra,
mostrando a multidão andrajosa, doente e esquelética. Tanta abnegação foi
recompensada pela degola.
Joaquim Macambira, que já
residia em Canudos antes da chegada dos conselheiristas, possuía uma fazenda
nas cercanias e era dono de loja. Seu filho e xará, com um punhado de valentes
e as bênçãos do pai, tentou tomar a braços o canhão alcunhado de Matadeira,
pertencente ao exército, tombando morto ali mesmo. É um dos episódios mais
referidos da campanha, tendo despertado a admiração geral.
Também deixou lembranças o
sineiro Timotinho, que desafiava o exército insistindo em tocar o sino da
Igreja Velha todas as tardes, quando a fuzilaria das tropas inimigas se
concentrava nele. Um dia, dois tiros de canhão acertaram a torre, que
desmoronou, jogando o sino à distância e aniquilando o heroico sineiro.
Dentre os muitos artesãos que
labutaram na arquitetura sacra do Conselheiro – que durante as duas décadas de
peregrinação capitaneou a construção ou o reparo de igrejas, cemitérios,
calçadas e açudes por toda aquela região – o nome mais importante que a
história reteve é o de Manuel Faustino, mestre de obras e entalhador que
presidiu aos trabalhos da Igreja Nova. Antônio Fogueteiro, como a alcunha
indica, fabricava fogos, a que o povo do sertão em geral, e o de Canudos em particular,
era muito afeiçoado.
Os dois irmãos Ciriaco, os
combatentes negros Manuel e José, só se tornaram conhecidos décadas após o fim
da guerra. Servindo de guia em Canudos ao historiador José Calasans
(1915-2001), tornaram-se fonte de preciosas informações.
Na utopia que criaram, Antônio
Conselheiro substituiu o fazendeiro, o padre e o delegado de polícia, reunindo
em sua pessoa o poder das três autoridades que mandavam no sertão. Por trás de
sua figura estava o esforço admirável que uma população carente de tudo
desenvolveu para se organizar, resistindo à opressão e à exploração, além de
inventar formas alternativas de vida em comum.
Com a guerra, o dia a dia do
arraial foi totalmente degradado. Belo Monte, cujos habitantes passavam a vida
em oração e penitência para “salvar a alma”, conforme diziam, foi transformado
em antevisão do Inferno. Em vez do Paraíso a que todos aspiravam, com as
promessas das bem-aventuranças da pregação cristã, aguardava-os o ferro e o
fogo dos canhões, o incêndio do casario e a degola indiscriminada.
*Walnice Nogueira Galvão é
professora emérita da FFLCH-USP e autora de O império do Belo Monte. Vida e
Morte de Canudos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. (Artigo
publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional - dezembro de 2014)