Natã Santana
Um acontecimento dessa natureza sempre
deixa a população abalada, ainda mais quando a cidade é pequena, daquelas onde
o asfalto ainda não cobriu as ruas de pedras portuguesas. Já era de se esperar
uma comoção generalizada, sendo a vítima tão jovem e a morte tão triste. Coube
ao padre apenas algumas explicações vagas em nome de sua absolvição pública,
mesmo que todo o povo já o houvesse tomado por culpado. Se existiu alguém, que
por um instante, refletiu sobre a possibilidade de considerá-lo inocente na
história, esse alguém foi o delegado Santoro, por assisti-lo aos prantos
durante seu depoimento.
Dr. Benício Franco, como o chamavam em sua
terra natal, era um homem lindamente arrasador: bonito, forte, alto e moreno.
Um daqueles que vemos no mercado e logo nos pegamos imaginando-o na cama, ou
pelado no banho. Mas aqui em Terra Branca, seu título de doutor era totalmente
irrelevante, - para não dizer esquecido; Só os íntimos sabiam sobre sua
profissão pré-celibato. Aqui ele era só Padre Benício, o melhor padre da
região. O difícil é saber se esse último título lhe foi atribuído devido a seus
incríveis sermões de domingo ou a sua beleza incomparável que arrancava
suspiros das solteironas que fingiam ir à missa pela palavra.
Aos fins de semana, Benício se dedicava
totalmente à paróquia. Organizava o mural da igreja, articulava o sermão,
revisava a agenda de visitas e realizava a missa principal. A igreja era sempre
lotada, o ofertório nem tanto, e os dois ventiladores novos eram falhos perante
a fornalha que se formava no instante em que ele tomava seu posto no púlpito.
Era um abanar de mãos e um sacudir de saias que muitas vezes faziam a igreja
parecer um ântro de estímulo sexual.
Às terças e quartas o confessionário vivia
lotado. Tinha dias, inclusive, nos quais se pegava fila para receber o perdão
daquela voz gostosa que ecoava por trás dos pequenos buraquinhos na tela do confessionário;
a maldita tela que bloqueava nossa visão dos mesmos lábios grossos e chamativos
a pronunciar as penitencias. Benício era calmo, e procurava, ao menos nesses
instantes, ser o mais breve possível para que menos gente se ajuntasse na fila.
Foi numa dessas ocasiões que Brenda surgiu.
― Padre, estou muito envergonhada.
Introduziu, ela.
― Não se reprima, minha filha. Todos somos
pecadores.
A
voz dele a deixou em êxtase mais uma vez, e ela continuou:
― Eu sei, Padre. Mas meu pecado é
realmente uma afronta a Deus... Sou apaixonada por um homem impossível.
Desejo-o mais do que tudo, mesmo sendo de uma família correta. E já não sei se
tenho controle sobre meu erro.
Benício
repensou um pouco suas próximas ponderações, e então as dirigiu:
― Filha, o desejo é parte da natureza
humana; muitas vezes é até involuntário. Na consumação é que se encontra o
pecado. Você já o consumou?
― Não, Padre.
― Então não há pecado. Afaste-se dele
enquanto é tempo.
Ela
pensou em como sua mãe a arrastava para a missa todos os dias possíveis, e
contrapôs: ― Receio que talvez não possa, nem queira, evitá-lo.
― Todos podem evitar o mal quando de fato
queremos, minha fi...
― É o senhor, Padre. É você o motivo de
meus orgasmos noturnos. Interrompeu ela, aflita.
Benício
sorriu com o canto da boca, e continuou a argumentar que não havia nada de
errado com os desejos de Brenda. Ali mesmo ele reconheceu que pouco adiantaria
uma conversa comum de aconselhamento no confessionário e despediu-a dizendo
pretender revê-la novamente em outra situação.
Durante
a missa do próximo domingo, o sermão estava impecável como sempre; e como de
costume, Brenda, em nenhuma palavra prestou atenção. Mantinha o olhar fixo
sobre a expressão corporal de Benício, como se o estivesse devorando em
segredo, porém, ele, guardava o olhar bem longe de sua direção. E assim o foi
até o memento da hóstia.
O
pão não parecia muito apetitoso, e Brenda também não se importava tanto quanto
sua mãe a ensinara, com a solenidade da ocasião. Dona Ermézia sempre a alertava
sobre a importância de receber o “corpo de Cristo”: “Reze e mantenha o
pensamento imaculado quando receber a hóstia, minha filha”.
Quando
ela se aproximou de Benício, pensava em tudo, menos no alerta de sua mãe.
Imaginava a grandeza do corpo por baixo daquela batina cansada e a leveza das
mãos a escolher as bolachinhas mal assadas. Ele, inteiramente atento ao que
estava fazendo, guiou a pequena hóstia até a boca seca e sedenta de Brenda e
antes que ela se virasse, gesticulou com os lábios um curto recado que foi
claramente entendido por seu olhara atrevido: “não mastigue”. Ela voltou para o banco, ao lado da mãe, e
enquanto todos degustavam o sabor da massa fresca, permaneceu de boca fechada e
quieta até o momento de oração.
Assim
que todos fecharam os olhos para dirigir suas preces, ela retirou a bolacha
molhada, porém ainda intacta, da boca e lá estava a razão da recomendação de
Benício: “9 horas, amanhã, atrás da paróquia”.
Ela
devolveu a bolacha à boca, engolindo-a com todas as letras borradas de saliva,
levantou o olhar quando todos ainda se mantinham em reverência e sorriu para
ele, que pela primeira vez na missa, a fitou sorrateiramente e devolveu, sem
demora, o sorriso.
Na
noite do dia seguinte, a porta que dava acesso aos fundos da paróquia foi
aberta pela décima-quinta vez desde que fora instalada, a pedido especial de
Benício, e a conversa entre eles terminou no segundo cômodo do corredor que
ficava atrás dela, no quarto do padre. Ali Brenda experimentou sua primeira
sensação de liberdade e consumou, aos comandos do homem impossível, a
realização de seu desejo carnal mais profundo.
Benício
era um homem como qualquer outro, tirando o fato de sua excêntrica formosura;
não resistia a um belo par de pernas, e só não se perdia em sua libido com
muita frequência porque as moças que frequentavam a missa, apesar de
extremamente atraídas por sua figura, não eram tão atrevidas como Brenda. A
partir daquela noite, eu, o coroinha mais velho da paróquia, deixei de exercer
o papel de único objeto de satisfação sexual do padre.
Logo,
Dona Ermézia proibiu que Brenda se confessasse com tanta frequência. Não ficava
bem para uma moça de família correta dar mostras de que cometia tantos pecados.
Então eles estabeleceram um sistema de comunicação infalível que serviria tanto
para marcar os novos encontros quanto para aumentar a estima dos fiéis em
Benício. Ele distribuiu envelopes com a imagem de Nossa Senhora para que, pelo
menos uma vez por semana, os fiéis escrevessem pedidos e os guardassem dentro
do envelope, devidamente indentificado com o nome de quem desejava receber a
graça. Ao final da missa, ele recolhia os envelopes alegando que dedicaria um
tempo extra para rezar por aqueles pedidos e assim abençoá-los. Todos adoraram
a ideia, principalmente Brenda, que passou a escrevê-lo todas as semanas.
Os
envelopes não eram tantos porque a igreja era pequena e nem todos participavam
da nova dinâmica. Ele logo encontrava o envelope de Brenda, e assim que o lia
já lhe deixava uma resposta. Para o trabalho de devolução dos envelopes eram
requeridos os três coroinhas, dentre os quais eu estava, e nessa tarefa só
havia duas recomendações: nunca abram os envelopes, e devolva-os com atenção
impecável para que não errem seus donos. Meu sistema, então, foi bem mais simples
do que o de Benício: sugeri que dividíssemos a entrega de acordo com o
alfabeto. Eu devolveria os envelopes cujo nome do dono começasse com qualquer
letra entre o A e o I, e os outros coroinhas se dividiam com o restante do
alfabeto. Assim eu poderia ler todos os bilhetes que chegavam e iam para
Brenda, porque desde muito cedo comecei a perceber que havia algo entre ela e
Benício.
Quase
todas as semanas eles se encontravam, e ficaram tão íntimos que Benício chegou
a copiar a chave da porta dos fundos da paróquia para que ele não mais a
precisasse esperar. Já a aguardava no quarto, com aquela cueca azul e a mesma
expressão de dominador que usava comigo antes de Brenda. Por diversas vezes eu
a espreitava chegar ao fundo da paróquia com o mesmo ar temeroso e sedento de
quem está prestes a abrir o baú do tesouro. Mas eu só a via por saber dos
encontros. Ninguém mais passaria por ali àquela hora, para a felicidade dos
imprestáveis. A casa paroquial ficava no final da rua, e atrás dela só havia
uma estrada de terra beirando um campo escuro e arborizado.
Minha
frustração aumentava a cada dia. Sentia falta da companhia privada de Benício,
que desde então passou a me evitar constantemente, sem ter ideia de que eu
conhecia a razão pela qual havia deixado de ser interessante para ele. Mas
sempre que o questionava, ele destruía mais de minhas expectativas, mas de mim
próprio.
Os
bilhetes já não se detinham a horários e convites. Eram cartas de algo que eu
nunca recebi dele, eram cartas de amor. Falavam da falta que um fazia ao outro,
do quanto gostariam de viver livres – ela da família moralista, ele do celibato
-, e até de como seria lindo se pudessem ter um filho juntos.
Permaneci
acompanhando-os em segredo e logo aprendi a odiá-los, mas ainda não tinha ideia
do que fazer para desmascará-los. Mas não demorou muito até um dos bilhetes me
obrigar a agir.
Em
uma das missas lotadas de domingo, lá estava mais um bilhete de Brenda. Este,
porém, com uma mensagem bem mais perturbadora para mim. Ela dizia já ter se
decidido a fugir com ele e que conversariam melhor sobre o assunto no próximo
dia, quando voltaria para mais um encontro às escondidas. Eu fiquei atônito ao
ler a palavra fugir, que para maior aflição, estava com o I pontuado com um
coração perfeitamente equilibrado.
Era óbvio que estavam loucos de amor e que
não demorariam a irem embora pra sempre. Mas decidi, no mesmo instante em que a
ultima lagrima me escorreu pela face, que aquilo não ocorreria e que já sabia o
que fazer.
Na
noite posterior, peguei a antiga arma de papai, mesmo sem saber usá-la muito
bem, e aguardei atrás do eucalipto mais próximo do muro que cercava a paróquia.
A arma na mão direita; e na esquerda, uma corda de linho grosso e resistente
que comprei naquela manhã.
Quando
Brenda surgiu em meio à escuridão das 09h35min daquela noite, meu coração
disparou sutilmente, mas em nenhum momento pensei em retroceder com o plano.
Não os deixaria fugir. Era tudo que martelava em minha consciência. Ela vestia
uma seda branca e deixara metade dos cabelos soltos sobre os ombros. Usava uma
capa azul-claro por cima do vestido e detinha a mesma expressão ansiosa e
cautelosa de noites atrás. Parecia estar vestida e pronta para morrer.
Eu
a abordei com a arma apontada para seu peito esquerdo, e sem nenhum barulho
excessivo, a obriguei a seguir em direção às árvores mais distantes pela
estrada de terra. Ela chorava o tempo inteiro, mas em nenhum momento me
comoveu, pois por sua causa eu também me rasguei aos prantos enquanto ela
saboreava o prazer que nunca deveria ter deixado de ser meu.
Eu
a fiz várias perguntas e ali mesmo ela me confessou detalhes de tudo; desde o
primeiro bilhete na hóstia, até os planos da fuga. E ambos chorávamos juntos –
ela por medo de mim, e eu por raiva dela.
Assim
que lancei a corda sobre o galho mais baixo de uma das árvores debaixo das
quais paramos, ela começou a entrar em desespero ainda maior e a me perguntar o
que eu pretendia. Não respondi nada. Apenas a obriguei a escalar o tronco, que
de tão deformado em nada dificultou a tarefa, e ameacei apertar o gatilho caso
não me obedecesse. Em seguida, também subi, e ainda sob minha mira, ela mesma
deu o nó em volta do pescoço. Eu só tive de empurrá-la. E o fiz sem dó alguma.
O
galho que escolhi não era tão alto, mas foi o suficiente para não deixá-la
alcançar o chão. A morte foi trágica, porém piedosa. Em poucos segundos,
algumas gotas de sangue escorreram pelo canto de sua boca e se depositaram
entre os seios, e ali mesmo depositei o último bilhete.
Logo
que o corpo foi encontrado, o povo correu para a paróquia furiosamente, e
Benício só não foi apedrejado porque o delegado o levou preso às pressas.
A
notícia foi avassaladora por todas as regiões em redor: uma moça jovem, bonita
e de família correta se rendera ao suicídio, e tudo que deixara fora uma
memória manchada e um bilhete preso aos seios que afirmava seu arrependimento
por ter se deixado iludir por um padre promíscuo.
Depois
de meses acompanhando os bilhetes de Brenda, não fora difícil copiar suas letras
de modo quase perfeito. Nem mesmo Benício foi capaz de duvidar que aquelas
letras eram de fato dela.
O
primeiro bilhete Brenda comeu, e eu nunca o vi, mas o último fui eu que
escrevi.
Natã Santana é escritor natural de Heliópolis-Ba. Estuda Letras na Universidade Federal de Sergipe - UFS - e é colaborador do Cheio de Arte. |