domingo, 15 de abril de 2012

Schwarz X Caetano


MARCOS AUGUSTO GONÇALVES – da ILUSTRÍSSIMA – da FOLHA DE SÃO PAULO

Caetano Veloso

Roberto Schwarz
Quinze anos depois da publicação de "Verdade Tropical", de Caetano Veloso, Roberto Schwarz reitera seu interesse pelo compositor, de quem já havia tratado em outra ocasião, e publica em seu novo livro o esperado ensaio sobre o "herói reflexivo e armado intelectualmente" de nossa canção popular, cuja biografia entrelaça-se com as circunstâncias históricas e os debates de uma fase importante da vida nacional.
Caetano e Schwarz viveram naquele mesmo mundo. Experimentaram a efervescência político-cultural dos anos que antecederam e se seguiram ao golpe de 64, e participaram, cada um a sua maneira, do debate intenso que se travava à época sobre as perspectivas do país. Isso não significa, obviamente, que compartilhassem ou compartilhem as mesmas ideias sobre política, cultura ou país.
Schwarz é o fino e respeitável crítico marxista que não passa duas páginas sem se referir ao capitalismo e mostra-se sempre inclinado a buscar na obra de arte suas conexões intrínsecas com o processo social e histórico.
Caetano é o artista inconformista que fala de um lugar ambíguo no estatuto da cultura, sempre disposto a minar convenções e embaralhar as cartas marcadas do alinhamento político e estético automático.
DIFERENÇAS
As diferenças, que em tese dificultariam o diálogo, parecem, no caso, potencializá-lo, pois embora irreconciliáveis em pontos decisivos, são ambos esclarecidos e portanto interessados na variedade e na diferença.
Schwarz vê em "Verdade Tropical", especialmente nos dois primeiros blocos, "um excelente romance de ideias". Tem em alta conta a autobiografia, que é também "uma história do tropicalismo e uma crônica da geração à volta de 64". Compara o livro a outros congêneres ilustres, como "Itinerário de Pasárgada" (1954), autobiografia intelectual de Manuel Bandeira ou "O Observador no Escritório", de Drummond.
Os elogios estendem-se à qualidade literária, além de aspectos como as "avaliações críticas ousadas e certeiras", os "retratos perspicazes de colegas famosos" e o domínio "em alto nível de um setor fundamental do presente, até então pouco estudado". Não há dúvida de que o crítico acredita estar diante de uma grande obra. E irá explorá-la com seu conhecido brilhantismo analítico e vigilância política.
O ensaio ressalta dois momentos da narrativa e da vida do personagem. O primeiro, em que o artista, com sua índole peculiar, forma-se em sintonia com as exigências de modernização e mudança social do país. O segundo, quando passa por um processo de reavaliação ideológica depois de ter compreendido erroneamente o significado da "morte do populismo" ao assistir a "Terra em Transe", de Glauber Rocha.
Schwarz refere-se criticamente às considerações e consequências que Caetano teria extraído da cena famosa em que o personagem Paulo Martins tapa a boca de um sindicalista e diz para o público: "Estão vendo quem é o povo? Um analfabeto, um imbecil, um despolitizado!".
Para o crítico, as conclusões de Caetano "enxergavam oportunidades e saídas onde o filme de Glauber desembocava em frustração nacional, autoexame político e morte".
O problema é que esses dois Caetanos, que poderiam ser grosseiramente classificados de esquerda e de direita, contrastam um com o outro no ensaio de Schwarz de maneira muitas vezes esquemática e literal. No intuito, talvez, de compensar a bancada marxista por deixar-se enfeitiçar pelo tropicalismo e seu herói, mesmo quando sua atitude "transgressora e libertária" já "rechaçava igualmente os establishments da esquerda e da direita", Schwarz move-se segundo uma dialética de elogio e reprimenda.
Vai do samba exaltação à "protest song", do entusiasmo com Caetano e o tropicalismo a acusações estudantis de adesão à direita e cobranças de posicionamento ideológico --não falta nem mesmo o alerta de que é preciso "distinguir entre antagonismos secundários e principais".
É assim que o ensaísta força a mão, simplifica e supervaloriza alguns comentários e episódios para demonstrar que Caetano teria deixado de ser "simpático à transformação social".
Ao mesmo tempo ignora ou minimiza o fato de que àquela altura a experiência socialista concreta já havia exposto os horrores de sua vocação totalitária, como atestava a didática e simbólica Primavera de Praga.
CONTRAPESO
Embora possam parecer relevantes, essas passagens, na realidade, são, em grande parte, o contrapeso ideológico do texto, cheio de boas análises e ideias, no qual o ensaísta retoma, aprofunda e aprimora aspectos de seu anterior e influente "Cultura e Política 1964-1969".
Publicado na revista parisiense "Les Temps Modernes", em 1970, e em livro em 1978, no volume "O Pai de Família e Outros Estudos" (Paz e Terra) [edição atual: Companhia das Letras, 184 págs., R$ 37], aquele ensaio obteve grande repercussão no debate cultural da época, com destaque para a explicação que o autor arriscava para o tropicalismo --o "esnobismo de massas" que teve em Caetano seu grande protagonista.
Para o crítico, a estética tropicalista extraía seu brilho da submissão de anacronismos do país patriarcal e subdesenvolvido "à luz branca do ultramoderno, transformando-se o resultado em alegoria do Brasil". O efeito era "estridente como um segredo trazido à rua" ou "como uma traição de classe".
Ao justapor o arcaico e o moderno, fórmula típica do tropicalismo produzia um absurdo que se fixava como imagem do país. Na canção "Love, Love, Love", de 1978, o compositor mencionou o ensaísta: "Absurdo, o Brasil pode ser um absurdo/Até aí, tudo bem, nada mal/Pode ser um absurdo, mas ele não é surdo/O Brasil tem ouvido musical/Que não é normal".
O tema é retomado agora, bem como a tarefa de matizar e contextualizar o valor político do movimento, que, no entanto, o crítico reconhece com todas as letras, ao contrário da nossa "burritsia" de esquerda.
Por fim, é de notar também o parentesco do ensaio sobre "Verdade Tropical" com um outro escrito por Roberto Schwarz sobre Oswald de Andrade --"A Carroça, o Bonde e o Poeta Modernista". Os paralelismos e inversões da fórmula poética "fácil e eficaz" do antropófago e do tropicalista são um dos pontos luminosos do texto.