MARCOS AUGUSTO GONÇALVES – da ILUSTRÍSSIMA
– da FOLHA DE SÃO PAULO
Caetano Veloso |
Roberto Schwarz |
Quinze anos depois da
publicação de "Verdade Tropical", de Caetano Veloso, Roberto Schwarz
reitera seu interesse pelo compositor, de quem já havia tratado em outra
ocasião, e publica em seu novo livro o esperado ensaio sobre o "herói
reflexivo e armado intelectualmente" de nossa canção popular, cuja
biografia entrelaça-se com as circunstâncias históricas e os debates de uma fase
importante da vida nacional.
Caetano e Schwarz viveram
naquele mesmo mundo. Experimentaram a efervescência político-cultural dos anos
que antecederam e se seguiram ao golpe de 64, e participaram, cada um a sua
maneira, do debate intenso que se travava à época sobre as perspectivas do
país. Isso não significa, obviamente, que compartilhassem ou compartilhem as
mesmas ideias sobre política, cultura ou país.
Schwarz é o fino e respeitável
crítico marxista que não passa duas páginas sem se referir ao capitalismo e
mostra-se sempre inclinado a buscar na obra de arte suas conexões intrínsecas
com o processo social e histórico.
Caetano é o artista
inconformista que fala de um lugar ambíguo no estatuto da cultura, sempre
disposto a minar convenções e embaralhar as cartas marcadas do alinhamento político
e estético automático.
DIFERENÇAS
As diferenças, que em tese
dificultariam o diálogo, parecem, no caso, potencializá-lo, pois embora
irreconciliáveis em pontos decisivos, são ambos esclarecidos e portanto
interessados na variedade e na diferença.
Schwarz vê em "Verdade
Tropical", especialmente nos dois primeiros blocos, "um excelente
romance de ideias". Tem em alta conta a autobiografia, que é também
"uma história do tropicalismo e uma crônica da geração à volta de
64". Compara o livro a outros congêneres ilustres, como "Itinerário
de Pasárgada" (1954), autobiografia intelectual de Manuel Bandeira ou
"O Observador no Escritório", de Drummond.
Os elogios estendem-se à
qualidade literária, além de aspectos como as "avaliações críticas ousadas
e certeiras", os "retratos perspicazes de colegas famosos" e o
domínio "em alto nível de um setor fundamental do presente, até então
pouco estudado". Não há dúvida de que o crítico acredita estar diante de
uma grande obra. E irá explorá-la com seu conhecido brilhantismo analítico e
vigilância política.
O ensaio ressalta dois momentos
da narrativa e da vida do personagem. O primeiro, em que o artista, com sua
índole peculiar, forma-se em sintonia com as exigências de modernização e
mudança social do país. O segundo, quando passa por um processo de reavaliação
ideológica depois de ter compreendido erroneamente o significado da "morte
do populismo" ao assistir a "Terra em Transe", de Glauber Rocha.
Schwarz refere-se criticamente
às considerações e consequências que Caetano teria extraído da cena famosa em
que o personagem Paulo Martins tapa a boca de um sindicalista e diz para o
público: "Estão vendo quem é o povo? Um analfabeto, um imbecil, um
despolitizado!".
Para o crítico, as conclusões
de Caetano "enxergavam oportunidades e saídas onde o filme de Glauber
desembocava em frustração nacional, autoexame político e morte".
O problema é que esses dois
Caetanos, que poderiam ser grosseiramente classificados de esquerda e de
direita, contrastam um com o outro no ensaio de Schwarz de maneira muitas vezes
esquemática e literal. No intuito, talvez, de compensar a bancada marxista por
deixar-se enfeitiçar pelo tropicalismo e seu herói, mesmo quando sua atitude
"transgressora e libertária" já "rechaçava igualmente os
establishments da esquerda e da direita", Schwarz move-se segundo uma
dialética de elogio e reprimenda.
Vai do samba exaltação à
"protest song", do entusiasmo com Caetano e o tropicalismo a
acusações estudantis de adesão à direita e cobranças de posicionamento
ideológico --não falta nem mesmo o alerta de que é preciso "distinguir
entre antagonismos secundários e principais".
É assim que o ensaísta força a
mão, simplifica e supervaloriza alguns comentários e episódios para demonstrar
que Caetano teria deixado de ser "simpático à transformação social".
Ao mesmo tempo ignora ou
minimiza o fato de que àquela altura a experiência socialista concreta já havia
exposto os horrores de sua vocação totalitária, como atestava a didática e
simbólica Primavera de Praga.
CONTRAPESO
Embora possam parecer
relevantes, essas passagens, na realidade, são, em grande parte, o contrapeso
ideológico do texto, cheio de boas análises e ideias, no qual o ensaísta
retoma, aprofunda e aprimora aspectos de seu anterior e influente "Cultura
e Política 1964-1969".
Publicado na revista parisiense
"Les Temps Modernes", em 1970, e em livro em 1978, no volume "O
Pai de Família e Outros Estudos" (Paz e Terra) [edição atual: Companhia
das Letras, 184 págs., R$ 37], aquele ensaio obteve grande repercussão no
debate cultural da época, com destaque para a explicação que o autor arriscava
para o tropicalismo --o "esnobismo de massas" que teve em Caetano seu
grande protagonista.
Para o crítico, a estética
tropicalista extraía seu brilho da submissão de anacronismos do país patriarcal
e subdesenvolvido "à luz branca do ultramoderno, transformando-se o
resultado em alegoria do Brasil". O efeito era "estridente como um
segredo trazido à rua" ou "como uma traição de classe".
Ao justapor o arcaico e o
moderno, fórmula típica do tropicalismo produzia um absurdo que se fixava como
imagem do país. Na canção "Love, Love, Love", de 1978, o compositor
mencionou o ensaísta: "Absurdo, o Brasil pode ser um absurdo/Até aí, tudo
bem, nada mal/Pode ser um absurdo, mas ele não é surdo/O Brasil tem ouvido
musical/Que não é normal".
O tema é retomado agora, bem
como a tarefa de matizar e contextualizar o valor político do movimento, que,
no entanto, o crítico reconhece com todas as letras, ao contrário da nossa
"burritsia" de esquerda.
Por fim, é de notar também o
parentesco do ensaio sobre "Verdade Tropical" com um outro escrito
por Roberto Schwarz sobre Oswald de Andrade --"A Carroça, o Bonde e o
Poeta Modernista". Os paralelismos e inversões da fórmula poética
"fácil e eficaz" do antropófago e do tropicalista são um dos pontos
luminosos do texto.