segunda-feira, 30 de abril de 2012

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sábado, 21 de abril de 2012

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¨¨¨Landisvalth Blog: Povo protesta contra a corrupção em Brasília, São ...: Da AGÊNCIA BRASIL, FLÁVIO FERREIRA  e LUIZ FERNANDO CARDOSO – reprodução da FOLHA DE SÃO PAULO , com fotos de Ueslei Marcelino /Reuters,...

Carta na Escola entrevista Milton Hatoum


‘A experiência da juventude é decisiva para o escritor’
Por: Lívia Perozim - da revista Carta Capital
O premiado amazonense conta como foi sua experiência na escola pública e como sua trajetória de leitor
e suas vivências políticas o influenciaram. Foto: Rennato Testa
Enquanto conversa comigo, no café de uma livraria paulistana, a voz serena do escritor Milton Hatoum vai se animando e um sorriso treloso explicita a excitação de relembrar momentos que marcaram sua juventude.
Filho de imigrantes libaneses, Milton partiu de Manaus aos 15 anos, rumo à capital federal, “se perder um pouco”. Foi aprovado em um colégio-modelo da Universidade de Brasília, onde estudavam também filhos de políticos e poderosos da República. Fernando Collor era aluno do mesmo colégio, seu contemporâneo, com a devida ressalva de que pertenciam a chapas opostas. Foi lá, conta o  amazonense, durante os repressivos anos do fim da década de 60, que tudo se iluminou para ele do ponto de vista da leitura, do ensino e da formação política.
Nesta entrevista, Hatoum não esconde sua repulsa por “caretices e dogmatismo”, principalmente ao falar dos políticos brasileiros,e revive esse importante período da sua vida – da escola pública, passando pelo Ensino Médio em Brasília e pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, em São Paulo, onde se formou. O autor de quatro romances (o mais conhecido, Dois Irmãos) conta também a sua experiência como leitor e fala sobre seu sexto livro, sem pressa e data para ser publicado
Carta na Escola: O seu interesse pela literatura foi despertado na escola?
Milton Hatoum: A experiência da infância e da juventude é decisiva para quem vai ou quer escrever. Nessa experiência está incluída a de leitor. Por um lado, tive muita sorte com meus professores e minha mãe, que me indicaram livros fundamentais. Minha mãe era obcecada por Machado de Assis, escritor mal lido durante muito tempo. Machado era interpretado como o escritor dos triângulos amorosos, e isso excitava os leitores. Claro, a obra machadiana é muito mais complexa, pois fala das contradições da nossa sociedade, da loucura, da crueldade da nossa elite e do lado obscuro do homem. Um dia minha mãe comprou de um livreiro ambulante a coleção das obras completas do Machado, uma edição de 1958, que guardo até hoje. Por sorte, comecei a ler os contos. Tivesse lido os romances primeiro, talvez odiasse Machado. É esse o erro que se faz na escola. Os grandes romances machadianossão muito complexos, têm muitas nuances e uma dimensão simbólica e histórica que está nas entrelinhas. A maioria dos jovens de 14 anos não vai enfrentar essa dificuldade. Se me pedissem para opinar na política do MEC, eu diria: distribuam um livro com uma seleção dos contos de Machado na biblioteca de todas as escolas.
CE: Qual conto machadiano leu primeiro?
MH: Foi Parasita Azul, de Histórias da Meia-Noite. Fui atraído porque achava que haveria algo de mistério, de terror. E não era nada disso. Era um conto machadiano, já dos bons. Acho que Parasita Azul é um marco para os grandes contos do Machado na década de 1880 e 1890. Fiquei fascinado. Fui lendo outros contos e pensava “Como ele escreve bem, que clareza!” Ao mesmo tempo, na escola, os professores trabalhavam com Graciliano Ramos, Jorge Amado e Erico Verissimo. Outro professor trabalhou com Euclides (da Cunha), o que me irritou profundamente.
CE: Por quê?
MH: Explodiram uma bomba caseira no colégio, por travessura, e o castigo coletivo foi a leitura e o fichamento de Os Sertões, cuja edição, de 1967, também guardei. Depois de ter lido os contos do Machado e Vidas Secas e Infância, do Graciliano, fiquei um pouco arrepiado com a linguagem do Euclides, muito retorcida, com um vocabulário precioso. Foi um choque. Não quis saber do Euclides naquele momento.
CE: Quando foi que o Euclides “te pegou”?
MH: Na escola, em 1967, só li um trecho de A Luta, a meu ver, a melhor parte d’Os Sertões. Li o livro inteiro quando já morava em São Paulo, depois de ter passado dois anos em Brasília. Li também os ensaios amazônicos de À Margem da História, onde descobri um texto maravilhoso, Judas Asvero, sobre os seringueiros nordestinos no Alto-Purus. É um texto lindo, obra canônica na literatura brasileira. Eu queria fazer uma tese de doutorado sobre esse relato de três páginas
CE: O castigo virou uma obsessão?
MH: E também um fascínio, pois comecei a entender mais o Euclides, apesar dos seus erros políticos e da sua ingenuidade. Ele era um positivista, acreditava no progresso e na “civilização”, em oposição à “barbárie”. Essa oposição não existe. O “progresso” e a ciência só fazem sentido se servirem à sociedade como um todo, e não apenas a uma elite. Enfim, ele tinha assimilado todos os valores da filosofia positivista do século XIX e, ao lado do Machado, seu contemporâneo, ele é muito ingênuo. Machado não acreditava em nada disso.
CE: A produção escrita veio junto com a sua imersão na leitura literária?
MH: Meu primeiro artigo, meio poético, escrevi nessa época, para o jornal do grêmio estudantil do Colégio Pedro II, em Manaus. Era um artigo sobre educação pública, clamando pela qualidade de ensino, por uma boa biblioteca, salários justos para os professores, tudo que se diz até hoje. O nome do jornal que, aliás, está no Cinzas do Norte, era Elemento 106. Na época, havia 105 elementos na natureza… Acho que eu estava numa caverna um pouco sombria e, em Brasília, tudo se iluminou do ponto de vista da leitura e do ensino.
CE: Com quantos anos foi para Brasília?
MH: Fui fazer o antigo colegial da época, com 15 anos. Era um colégio de aplicação chamado Ciem (Centro Integrado do Ensino Médio), que ficava na entrada do campus e pertencia à Universidade de Brasília. Uma escola-modelo para 350 alunos e mais de 60 professores, um colégio para qual se deveria prestar um exame para entrar. Mas só os caipiras prestavam. Os filhos de deputados e ministros, não.
CE: Sua família continuou em Manaus?
MH: Vim sozinho. Queria me aventurar, me perder um pouco. Brasília foi uma experiência e tanto. Política, inclusive, porque caí no olho do furacão, em 1968.
CE: Foi em Brasília que você deixou de ser um progressista?
MH: Nunca deixei de ser progressista. Desconfio dos valores da civilização, esses valoresdo Ocidente. Sou um progressista de esquerda, mas detesto qualquer dogmatismo e todo tipo de caretice. Muitos traíram, se traíram. Não me arrependo de nada, de nenhuma passeata ou pichação, de nenhuma pedra jogada contra a polícia, que torturava e matava. A ditadura interrompeu brutalmente o processo democrático, esta é a verdade. O ano de 68 foi o mais violento em Brasília. Foi um inferno, houve invasões durante todo o ano na universidade, prisões, expulsões, perseguições. Brasília teve o movimento estudantil mais radical do Brasil e as pessoas desconhecem isso. Eu vivi um pouco isso e vivi também o ambiente do colégio, que era incrível. Era um laboratório criado por Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Li muita coisa de literatura brasileira, francesa, italiana…
CE: Já pensava em ser escritor?
MH: Não. Eu escrevia poesia e tinha um diário. Naquela época, não podíamos falar, então escrevíamos. Toda a nossa energia ia para a escrita, para o sexo e outras coisas. Brasília foi isso também, muita droga. Foi um momento de liberação de tudo. Eu intuí que aquilo não ia dar certo e vim para São Paulo em 1970. Em 71, a ditadura fechou o meu colégio em Brasília. O Collor estava lá, eu era do primeiro ano e ele, do terceiro.
CE: Como era o ex-presidente na escola?
MH: Diziam que ele desfilava para as festas da primeira dama, Iolanda (mulher do presidente Arthur da Costa e Silva – 67 a 69), para arrecadar fundos. Diziam também que ele era lindo. Eu e meus amigos o considerávamos um mauricinho, um bofe cafona, e um baita de um reacionário. Já naquela época ele era pedante e comandava uma chapa de direita. Lamentável que a esquerda, hoje, esteja aliada com o Collor e outras figuras autoritárias.
CE: Há um movimento de criação de cursos de formação de escritores no Brasil. É possível ensinar a escrever literatura?
MH: Acho que não. É uma técnica que veio dos Estados Unidos, onde muitos escritores vivem disso. Mas não acredito que você forme um escritor. É preciso ter talento para escrever. O que eu acredito é que a leitura crítica é fundamental para quem quer ser escritor. Não há lugar para o leitor ingênuo entre os que querem escrever.
CE: Qual foi sua formação crítica de leitor?
MH: Eu fugia da FAU para assistir aos cursos de teoria literária do Davi Arrigucci, da Leyla Perrone-Moisés e outros grandes mestres. Esses cursos me ajudaram a pensar na literatura. Não que isso seja obrigatório. Guimarães Rosa nunca assistiu a uma aula, mas era um gênio, sabia tudo sobre romance e conto. Era um grande leitor. A FAU também foi uma escola formadora e me ajudou a refletir sobre as cidades brasileiras e a habitação popular, cujos projetos ainda são vergonhosos no Brasil, como se o povo não merecesse moradia digna. A FAU era bem maluca, e diferente do que é hoje. Tudo ficou mais convencional.
CE: O seu olhar de arquiteto está muito presente na maneira como você explora a cidade. Isso é intencional?
MH: Acho que sim. Foi introjetado na minha vivência com a arquitetura, nas minhas leituras sobre arquitetura e na minha vivência na cidade. O espaço é importante num romance, mas não como descrição, e sim como um elemento constitutivo da trama e da vida dos personagens.
CE: Manaus é predominante entre as cidades dos seus romances. Que tipo de sentimento sua cidade natal evoca?
MH: Hoje é uma cidade quase irreconhecível para mim. Quando se trata da memória do espaço, as cidades da América Latina têm uma vida curta, vão se sobrepondo umas às outras, se destruindo e se reconstruindo a cada uma ou duas décadas. Isso, por um lado, aponta para um dinamismo econômico e, por outro, para uma destruição da memória urbana. Manaus poderia ser uma cidade maravilhosa, mas está totalmente desfigurada, feia, e sem árvores. Uma cidade equatorial sem sombras.
CE: Você já afirmou não conseguir escrever sobre o passado recente. Como se dá esse processo de criação e memória?
MH: O passado recente está muito próximo do circunstancial. Uma distância longa do tempo é mais propícia à literatura porque você não lembra com precisão. O que há de nebuloso no passado move a nossa memória, que é irmã siamesa da imaginação.
CE: Sobre o que falará o romance que você está escrevendo?
MH: Ele evoca o período em que vivi na Europa. É um romance ambientado em Paris, com histórias sobre exílio, expatriação e tradução. É narrado por uma tradutora franco-brasileira. Tem também um pouco da minha experiência de Brasília e São Paulo. Fico particularmente emocionado quando escrevo. Estou falando com você, e, ao mesmo tempo, meu coração e meu pensamento disparam, mergulham nas lembranças perdidas, que reaparecem por meio da linguagem. No romance também ocorre o alumbramento, esse belo nome que Manuel Bandeira dava ao súbito surgimento da imagem poética.
CE: Tem previsão para o lançamento? 
MH: Pensei que terminaria em fevereiro, mas meu editor fez várias observações relevantes, decidi retomar o trabalho e reescrever várias partes. Você pode matar um livro se for picado pela pressa e pela vaidade. Faz tempo joguei a vaidade para o ar. Eu sei que tem a Feira de Frankfurt e o Brasil vai ser o país homenageado em 2013. Seria maravilhoso lançar este ano. Mas não adianta forçar. O romance é uma arte que exige obstinação e uma entrega total, que é a paixão pela linguagem. Além disso, acho que já escrevi muito. Cinco livros! Tem gente que publica mais de 30. É inimaginável para mim.

Um Jorge Amado e universal


Por Ana Ferraz – da revista CARTA CAPITAL
Em seu processo de criação, Jorge Amado assumia o papel de executor das vontades de seus personagens. Em Dona Flor e seus Dois Maridos (1966), o escritor queria que a protagonista fosse embora com Vadinho, mas ela quis ficar com os dois maridos. Zélia Gattai, a mulher, e Paloma, a filha, contam em depoimento gravado os caminhos criativos do autor baiano, cujo centenário de nascimento ganha a exposição Jorge Amado e Universal, parceria entre a Grapiúna, Fundação Casa de Jorge Amado, Secretaria de Cultura do Governo de São Paulo e Museu da Língua Portuguesa.
 “A mostra aproximará do grande público um dos autores que melhor retrataram nosso povo através de seus cerca de 5 mil personagens cheios de grandezas, fraquezas, sabedoria popular, sensualidade encantadora, malícia, fé e esperança”, diz Antônio Carlos de Moraes Sartini, diretor do Museu da Língua Portuguesa.
Em seis módulos, vida e obra de Amado. Num deles, originais corrigidos à mão pelo autor, fotos, ilustrações das obras publicadas em 50 países. Em outro, a Bahia reinventada pelo escritor. Na Casa dos Milagres, as coloridas camisas do autor.
JORGE AMADO E UNIVERSAL: UM OLHAR INUSITADO SOBRE O HOMEM E A OBRA
Até 22 de julho
Museu da Língua Portuguesa
Praça da Luz, s/nº, Centro, São Paulo

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Eliane Brum, da revista Época, fala da pequenez do pensamento brasileiro



     Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br. Veja o artigo publicado nesta segunda-feira (16).
     A volta do Brasil Grande que pensa pequeno
     Ao contar o passado, pela epopeia dos Irmãos Villas Bôas, o filme “Xingu” ilumina o presente. E coloca a plateia diante de uma questão atual e incômoda: omissão também é protagonismo
       ELIANE BRUM – da revista ÉPOCA.
     Xingu, o filme de Cao Hamburger, conta a saga dos três irmãos Villas Bôas em seu confronto com o Brasil que não sabia que era Brasil. Nos anos 1940, Orlando (Felipe Camargo), 27 anos, Cláudio (João Miguel), 25, e Leonardo (Caio Blat), 23, mentiram que eram analfabetos sem profissão para se alistar na Expedição Roncador-Xingu, que desbravaria o centro do país. O que acontece a partir do momento em que três jovens de classe média partem em busca de aventura e encontram de forma brutal não só uma outra civilização, mas também a si mesmos, é História. E, infelizmente, uma história que vai sendo esquecida. Mas, ao iluminar o passado, Xingu, o filme, ilumina Xingu, a vida. E o ilumina para além do Parque Nacional do Xingu, o grande feito dos Irmãos Villas Bôas, consumado em 1961. Ilumina com verdades suficientes para questionar a plateia em outras verdades: por que permitimos, pela omissão da maioria, que a faraônica obra de Belo Monte – aqui, agora – destrua uma das maiores riquezas culturais e biológicas do planeta? Por que, em um governo dito popular, se reedita o autoritarismo para impor um elefante branco da democracia, com a nossa cumplicidade? A plateia que assiste ao filme precisa responder, ao deixar a sala de cinema, a uma pergunta bem incômoda: por que, na vida, não consegue deixar de ser plateia.
 O filme termina quando a Transamazônica começa a ser construída. Naquele momento, com uma imprensa censurada pela ditadura e um país dominado pelo ufanismo do “Brasil ame-o ou deixe-o”, do “Integrar para não Entregar”, do “Terra Sem Homens para Homens Sem Terra” talvez só Orlando e Cláudio Villas Bôas – além do governo militar e de seus apoiadores – eram capazes de compreender o que aconteceria quando a estrada rasgasse a selva e literalmente a encharcasse de sangue. Hoje, não. Nenhum de nós tem a desculpa de não saber o que já aconteceu. Nenhum de nós tem a desculpa de ignorar a destruição da floresta e a matança de gente, bicho, planta e cultura consumada no Brasil Grande da ditadura militar. Nenhum de nós tem a desculpa de ignorar a ocupação incompetente e a trilha de mortes que só faz aumentar. Não há desculpa para a ignorância do passado. E penso que não há desculpa para a omissão no presente, diante do futuro.
Quando a Transamazônica se desenhava na tela, era Belo Monte que estava bem ali. Assisti ao filme enxergando o presente, e não apenas o passado – e por isso saí do cinema devastada. Vi o passado enxergando o presente porque o passado tornou-se, de novo, presente. E é com esse presente que temos o desafio de lidar. Quando a Transamazônica foi imposta pela ditadura militar, boa parte dos vivos de hoje nem sequer tinha nascido ou ainda era criança, como eu. Agora, não. Estamos todos aqui.
Conhecer a Amazônia exige um movimento – e um desejo maior. Assistir ao filme é muito fácil. Se puderem, assistam ao Xingu e, na última cena, uma das mais belas do nosso cinema, se enfiem na pele de um dos Irmãos Villas Bôas e percebam que, querendo ou não, é diante desse olhar que nós todos estamos – agora.
Acho que este é o mérito dos grandes filmes: não permitir que nos instalemos no conforto eterno da poltrona de cinema. Tornar impossível o pensamento comodista de que aquilo não nos diz respeito – seja porque já aconteceu, seja porque é a dor de um outro muito diferente. Ou ainda porque não nos convém – e nos acreditamos a salvo. E aqui não se trata da arte utilitarista ou engajada, mas do fato de que os bons filmes, assim como a boa literatura, nos confrontam com pessoas complexas num mundo complexo – e não meros heróis em um mundo plano. Como quando Cláudio Villas Bôas diz, ao perceber que, salvando, ele também destrói: “Somos o veneno e o antídoto”. Ou: “Há uma coisa deles que morre pra sempre assim que a gente encosta”.  
É por acolher o conflito que os bons filmes, mesmo que nos contem de mundos e de gentes distantes, ecoam na vida de todos nós. Pescam nossos demônios internos e os fazem dançar diante dos nossos olhos. Os bons filmes, como os bons livros, nos transtornam por dentro, mesmo que ninguém fique sabendo porque só a nós diz respeito; e nos transtornam de dentro para fora, como neste caso, ao percebermos que a omissão também é um tipo de protagonismo. Os bons filmes são como os bons governos: acolhem o conflito e dialogam com o contraditório. Os maus filmes são como os maus governos: calam os conflitos e chamam o contraditório de “fantasia”. Xingu é um bom filme.
Os realizadores de Xingu já tinham deixado explícita a intenção de, ao contar a epopeia histórica dos Irmãos Villas Bôas, criar uma oportunidade para pensar sobre os dilemas do Brasil atual. “Se o filme conseguir trazer a história desses caras para uma discussão do futuro e do presente seria muito legal. Apesar de ser um filme de época, é muito contemporâneo. Uma das coisas que me encantaram nessa história foi essa possibilidade de discutir coisas contemporâneas contando uma história do século passado”, disse à imprensa Cao Hamburger, o diretor, durante o lançamento do filme. E, em outro momento: “A ideia é que a gente repense a maneira como somos. O que é o progresso hoje? Que crescimento a gente quer?”.
Também os atores, ao viverem o Xingu para encenar o Xingu, confrontaram-se com os conflitos vividos por seus personagens – mas também os incorporaram como cidadãos diante da experiência para além da filmagem. “Os Villas Bôas fizeram uma previsão: que o encontro (entre brancos e índios) era inevitável e a civilização ia chegar à fronteira do rio. E eles chamavam isso de ‘abraço da morte’. De avião a gente vê claramente a devastação ao redor. Então esse ‘abraço da morte’ chegou”, contou Caio Blat. “Não teve um dia de filmagem que não vimos fumaça de queimada. Até o set queimou, a equipe toda ajudou a apagar o fogo. E isso acontece sempre: aconteceu quando filmamos, aconteceu no ano passado, vai acontecer este ano de novo”, afirmou Felipe Camargo. “A ecologia não pode mais ser vista como uma coisa bonitinha, ‘vamos preservar a natureza’. Não: vamos preservar a nossa vida.”
Ao refletir sobre a experiência de filmar Xingu no Xingu, Cao Hamburger declarou: “Considero que essa cultura e essa filosofia de vida deles não estão paradas no tempo, elas estão em desenvolvimento, como a nossa. O que está me interessando muito é o que nós podemos aprender com essa cultura. O Brasil tem um tesouro que faz questão de esconder e desprezar, e está perdendo a oportunidade de absorver e aprender com eles. A cultura deles é muito rica, muito sofisticada, e o Brasil tem muito a ganhar”.
O cineasta Fernando Meirelles, produtor do Xingu, foi contundente em suas afirmações ao longo da série de entrevistas sobre o filme: “O que eu acho que vale ressaltar do filme é como ele é atual. Vindo para cá, eu li no jornal que o Megaron Txucarramãe, que era coordenador da Funai no norte do Mato Grosso, tinha sido demitido porque tem uma posição contrária a Belo Monte (outubro de 2011). É a história do filme, da Transamazônica, se repetindo. O filme não poderia ser mais atual, nesse momento em que Belo Monte e o Código Florestal são assuntos muito fortes”. E, mais tarde: “Eu, pessoalmente, acho que Belo Monte é um dos maiores erros atuais. A gente está construindo usinas basicamente para poder aumentar a produção de alumínio. Vai comprometer toda aquela área pra produzir mais alumínio. É esse o progresso que queremos?”.
Em outra manifestação, Fernando Meirelles foi ainda mais direto: “A Transamazônica do filme é a Belo Monte de hoje. Aquele deputado de terninho é a Kátia Abreu (senadora da bancada ruralista pelo PSD/TO). Isso está muito claro”. No filme, há ainda um militar que é a cara desse governo no trato de Belo Monte e das questões ambientais. Só não gritei – “Nossa, é a Dilma Rousseff!” – porque faço uma campanha persistente pelo silêncio no cinema. Quando Orlando Villas Bôas tenta explicar que a Transamazônica vai passar por cima dos Kren Akarore, uma etnia isolada, o militar declara: “Limpe o caminho. Mas tem que ser rápido”.
Há de se eliminar aquilo que “atravanca” o progresso ontem, o desenvolvimento hoje – tirar da frente, custe o que custar. “Resolver”. E rápido. Como a História mostrou, dos 600 Kren Akarore restaram 79 depois da abertura da Transamazônica. Ou seja: o efeito da Transamazônica, apenas sobre uma única etnia indígena, foi um genocídio de mais de 500 seres humanos. E a Transamazônica até hoje é uma picada intrafegável boa parte do ano, apelidada por onde passa de “Transamargura”. As obras de Belo Monte começaram – sem o cumprimento das condicionantes ambientais – e o estrago já é visível.
Os índios recebem "o abraço da morte".
Entre os desafios que um futuro biógrafo enfrentará ao contar a vida e a obra de Dilma Rousseff está o seguinte paradoxo: como uma mulher que entrou na clandestinidade, pegou em armas para lutar contra o autoritarismo e pagou pela sua coerência o preço altíssimo de ter sido torturada vira uma ministra, primeiro, uma presidente depois, que, em se tratando de políticas para a Amazônia e o meio ambiente, incorpora – e o pior, implanta – a mesma visão da ditadura militar que combateu. De novo, estamos de volta ao Brasil Grande que pensa pequeno – mas em plena democracia e numa imprensa sem censura oficial. Acho o paradoxo fascinante do ponto de vista humano, mas um desastre para o país.
Talvez, hoje, a presidente Dilma Rousseff passasse um pito na guerrilheira Dilma Rousseff: “Não há espaço para a fantasia”. E imediatamente esquecesse que foi essa “fantasia” que tornou possível não só a própria democracia, mas a ascensão de um operário à presidência do Brasil. E também a tudo o que veio depois – inclusive ela. Foi essa mesma frase, em minha opinião a mais infeliz de sua trajetória como presidente, possivelmente de sua vida, que Dilma Rousseff declarou aos ambientalistas que combatem Belo Monte, no início de abril, afirmando que não mudará sua política de “desenvolvimento” para a Amazônia. O que nos faz concluir que, diante dos Irmãos Villas Bôas, os indigenistas de ontem, Dilma Rousseff só poderia dizer o mesmo que diz para os indigenistas de hoje: “Não há espaço para a fantasia”.
Cara presidente, se não existisse “fantasia” não existiria humanidade – não existiria nem mesmo o conceito de nação. Como disse Fernando Meirelles, no site da produtora O2 Filmes: “Sonhe um pouco, presidenta. Ou ao menos escute o sonho dos que conseguem sonhar”.

domingo, 15 de abril de 2012

Schwarz X Caetano


MARCOS AUGUSTO GONÇALVES – da ILUSTRÍSSIMA – da FOLHA DE SÃO PAULO

Caetano Veloso

Roberto Schwarz
Quinze anos depois da publicação de "Verdade Tropical", de Caetano Veloso, Roberto Schwarz reitera seu interesse pelo compositor, de quem já havia tratado em outra ocasião, e publica em seu novo livro o esperado ensaio sobre o "herói reflexivo e armado intelectualmente" de nossa canção popular, cuja biografia entrelaça-se com as circunstâncias históricas e os debates de uma fase importante da vida nacional.
Caetano e Schwarz viveram naquele mesmo mundo. Experimentaram a efervescência político-cultural dos anos que antecederam e se seguiram ao golpe de 64, e participaram, cada um a sua maneira, do debate intenso que se travava à época sobre as perspectivas do país. Isso não significa, obviamente, que compartilhassem ou compartilhem as mesmas ideias sobre política, cultura ou país.
Schwarz é o fino e respeitável crítico marxista que não passa duas páginas sem se referir ao capitalismo e mostra-se sempre inclinado a buscar na obra de arte suas conexões intrínsecas com o processo social e histórico.
Caetano é o artista inconformista que fala de um lugar ambíguo no estatuto da cultura, sempre disposto a minar convenções e embaralhar as cartas marcadas do alinhamento político e estético automático.
DIFERENÇAS
As diferenças, que em tese dificultariam o diálogo, parecem, no caso, potencializá-lo, pois embora irreconciliáveis em pontos decisivos, são ambos esclarecidos e portanto interessados na variedade e na diferença.
Schwarz vê em "Verdade Tropical", especialmente nos dois primeiros blocos, "um excelente romance de ideias". Tem em alta conta a autobiografia, que é também "uma história do tropicalismo e uma crônica da geração à volta de 64". Compara o livro a outros congêneres ilustres, como "Itinerário de Pasárgada" (1954), autobiografia intelectual de Manuel Bandeira ou "O Observador no Escritório", de Drummond.
Os elogios estendem-se à qualidade literária, além de aspectos como as "avaliações críticas ousadas e certeiras", os "retratos perspicazes de colegas famosos" e o domínio "em alto nível de um setor fundamental do presente, até então pouco estudado". Não há dúvida de que o crítico acredita estar diante de uma grande obra. E irá explorá-la com seu conhecido brilhantismo analítico e vigilância política.
O ensaio ressalta dois momentos da narrativa e da vida do personagem. O primeiro, em que o artista, com sua índole peculiar, forma-se em sintonia com as exigências de modernização e mudança social do país. O segundo, quando passa por um processo de reavaliação ideológica depois de ter compreendido erroneamente o significado da "morte do populismo" ao assistir a "Terra em Transe", de Glauber Rocha.
Schwarz refere-se criticamente às considerações e consequências que Caetano teria extraído da cena famosa em que o personagem Paulo Martins tapa a boca de um sindicalista e diz para o público: "Estão vendo quem é o povo? Um analfabeto, um imbecil, um despolitizado!".
Para o crítico, as conclusões de Caetano "enxergavam oportunidades e saídas onde o filme de Glauber desembocava em frustração nacional, autoexame político e morte".
O problema é que esses dois Caetanos, que poderiam ser grosseiramente classificados de esquerda e de direita, contrastam um com o outro no ensaio de Schwarz de maneira muitas vezes esquemática e literal. No intuito, talvez, de compensar a bancada marxista por deixar-se enfeitiçar pelo tropicalismo e seu herói, mesmo quando sua atitude "transgressora e libertária" já "rechaçava igualmente os establishments da esquerda e da direita", Schwarz move-se segundo uma dialética de elogio e reprimenda.
Vai do samba exaltação à "protest song", do entusiasmo com Caetano e o tropicalismo a acusações estudantis de adesão à direita e cobranças de posicionamento ideológico --não falta nem mesmo o alerta de que é preciso "distinguir entre antagonismos secundários e principais".
É assim que o ensaísta força a mão, simplifica e supervaloriza alguns comentários e episódios para demonstrar que Caetano teria deixado de ser "simpático à transformação social".
Ao mesmo tempo ignora ou minimiza o fato de que àquela altura a experiência socialista concreta já havia exposto os horrores de sua vocação totalitária, como atestava a didática e simbólica Primavera de Praga.
CONTRAPESO
Embora possam parecer relevantes, essas passagens, na realidade, são, em grande parte, o contrapeso ideológico do texto, cheio de boas análises e ideias, no qual o ensaísta retoma, aprofunda e aprimora aspectos de seu anterior e influente "Cultura e Política 1964-1969".
Publicado na revista parisiense "Les Temps Modernes", em 1970, e em livro em 1978, no volume "O Pai de Família e Outros Estudos" (Paz e Terra) [edição atual: Companhia das Letras, 184 págs., R$ 37], aquele ensaio obteve grande repercussão no debate cultural da época, com destaque para a explicação que o autor arriscava para o tropicalismo --o "esnobismo de massas" que teve em Caetano seu grande protagonista.
Para o crítico, a estética tropicalista extraía seu brilho da submissão de anacronismos do país patriarcal e subdesenvolvido "à luz branca do ultramoderno, transformando-se o resultado em alegoria do Brasil". O efeito era "estridente como um segredo trazido à rua" ou "como uma traição de classe".
Ao justapor o arcaico e o moderno, fórmula típica do tropicalismo produzia um absurdo que se fixava como imagem do país. Na canção "Love, Love, Love", de 1978, o compositor mencionou o ensaísta: "Absurdo, o Brasil pode ser um absurdo/Até aí, tudo bem, nada mal/Pode ser um absurdo, mas ele não é surdo/O Brasil tem ouvido musical/Que não é normal".
O tema é retomado agora, bem como a tarefa de matizar e contextualizar o valor político do movimento, que, no entanto, o crítico reconhece com todas as letras, ao contrário da nossa "burritsia" de esquerda.
Por fim, é de notar também o parentesco do ensaio sobre "Verdade Tropical" com um outro escrito por Roberto Schwarz sobre Oswald de Andrade --"A Carroça, o Bonde e o Poeta Modernista". Os paralelismos e inversões da fórmula poética "fácil e eficaz" do antropófago e do tropicalista são um dos pontos luminosos do texto.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Por dentro da Tropicália


Artigo de 29/10/2009
por Luciano Trigo – de O GLOBO (G1)
Christopher Dunn analisa o impacto do movimento na (auto)imagem do Brasil

Christopher Dunn
Gosto de ler ensaios sobre a cultura brasileira escritos por estrangeiros, porque às vezes o Brasil parece mais claro e compreensível quando é visto por quem está fora do que por quem está dentro. Talvez isso aconteça porque, nas análises domésticas, a opinião muitas vezes prevalece sobre a pesquisa, e se dá mais importância ao estilo que ao rigor. Por exemplo, acabo de ler Brutalidade Jardim – A Tropicália e o surgimento da contracultura brasileira, do americano Christopher Dunn (UNESP, 280 pgs. R$37), que combina clareza e profundidade como raras vezes se vê nos livros nacionais sobre o assunto. Mais que uma recapitulação histórico-jornalística dos principais personagens e episódios da Tropicália, Dunn, professor da Tulane University, onde dirige o Brazilian Studies Council, investiga as raízes, as contradições e os desdobramentos do movimento que teve um impacto profundo na imagem que temos (e que os outros têm) do Brasil. “Brutalidade Jardim” é um verso da música Geléia Geral, de Gilberto Gil, tirado das Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. O livro de Christopher Dunn tem prefácio de José Celso Martinez Corrêa.
- Que relação você estabelece entre a Tropicália e a Semana de Arte Moderna de 22?
CHRISTOPHER DUNN: A Semana de 22 foi um marco importante da tradição cultural e intelectual de se “pensar o Brasil” e, portanto, pode ser vista como uma das várias raizes da Tropicália, sobretudo a antropofagia de Oswald de Andrade.
- A ditadura foi um dos períodos mais criativos no Brasil, em termos de música, cinema e teatro. A tensão política pode tornar a cultura mais interessante?
DUNN: Não necessariamente. O Brasil teve também um período de muita criatividade no final dos anos 50, durante a euforia do desenvolvimentismo democrático de Kubitschek. Foi quando surgiram a Bossa Nova, a poesia concreta, o neoconcretismo, o Cinema Novo, os teatros Arena e Oficina, toda aquela efervescência cultural na Bahia ligada à Universidade da Bahia, a construção de Brasília etc. Viver sob uma ditadura tornou-se um tema de extrema importância durante o regime militar, mas a criatividade floresceu apesar, e não por causa, da repressão. As tensões sempre existem, mesmo quando uma sociedade tem liberdades democráticas, porque sempre permanecem contradições e conflitos. Nesse sentido, o momento atual no Brasil pode ser considerado bem interessante de ponto de vista da criação artística. O momento tropicalista foi particularmente criativo, porque houve um diálogo muito intenso entre artistas de vários campos, algo que é sempre possível.
- Os tropicalistas debochavam das imagens fantasiosas do Brasil e, ao mesmo tempo, a influência crescente dos meios de comunicação de massa e a mentalidade consumista. Mas, no final das contas, essas imagens e essa mentalidade não sobrevivem?Em outras palavras, a contracultura não foi derrotada?
DUNN: Os tropicalistas brincaram com as imagens absurdas do Brasil, algo que incomodou o crítico Roberto Schwarz. Ele achava que o deboche podia até reforçar algumas das contradições históricas do país, em vez de resolvê-las dialeticamente. Alguns anos depois, Caetano respondeu ao crítico na música “Love, love, love” dizendo que o Brasil “pode ser um absurdo, mas ele não é surdo/ o Brasil tem um ouvido musical que não é normal.” Outra pessoa muito atenta a essas imagens absurdas do Brasil é o grande diretor Zé Celso Martinez Correa, cuja produção, em 1967, de O rei da vela, de Oswald de Andrade, revolucionou o palco brasileiro e teve uma influência profunda nos baianos. A idéia básica da Tropicália era ressaltar o absurdo, a contradição em si, sem propor uma solução, justamente para incomodar o público. O perigo, para Schwarz, era que essas imagens, essencialmente irônicas e carnavalescas, passando pela estética do kitsch, podiam ser consumidas de forma acrítica e celebratória, à maneira do Chacrinha. Hélio Oiticica também se incomodava com o que chamou de “celebração das bananas”, que ele via como uma deturpação da idéia original da Tropicália, que procurava lidar criticamente com o “problema” da imagem — aliás, The Image Problem é o título de um texto que ele escreveu em inglês. É verdade, que essa vertente pop-kitsch teve mais ascendência que a vertente construtivista-vanguardista do Hélio, pelo menos naquele tempo. Nesse sentido, as canções tropicalistas tinham mais em comum com as obras de artistas plásticos como Rubens Gerchman, que lidava mais com imagens “popularescas” e com a estética do kitsch. Por outro lado, as performances aproximavam Hélio no sentido de criar um “ambiente total” de imagem e som, como ele próprio afirmou em um texto de 1968. Devemos lembrar que os músicos tropicalistas, sobretudo Caetano Veloso e Gilberto Gil, não “criticavam” tanto assim o consumo e a mídia, nem em sua forma “chacrinesca”. Eles queriam fazer sucesso, cantar na televisão, fazer pop music. Se entendemos por contracultura uma atitude anti-consumo, então a contracultura de fato “perdeu”, mas acho que a contracultura teve outras facetas, inclusive facetas que dependiam do consumo de novos estilos e produtos culturais. Nesse sentido, a contracultura é ambígua.
- Na música, a Tropicália não trouxe exatamente um gênero novo, mas reprocessou elementos do passado. Você concorda?
DUNN: Sem dúvida. Em termos de música, os tropicalistas nunca propuseram um novo estilo, como a Bossa Nova, e muito menos um novo gênero musical, como o samba. A proposta era de fazer samplings e justaposições de vários estilos e gêneros musicais oriundos não somente do Brasil, mas também da Hispano-América, sobretudo Cuba, e do mundo afro-anglo do rock e do soul.
- Não é estranho que muitos artistas da Tropicália, um movimento que desafiava o establishment, tenham se tornado bem-sucedidas estrelas internacionais, sendo, de certa forma, absorvidos pelo sistema que combatiam?
DUNN: Não acho estranho. Muitos artistas que surgiram nos anos 60 com uma proposta poliítica e/ou cultural de contestação depois acharam caminhos profissionais dentro do “sistema”. É um pouco ingênuo imaginar que Caetano e Gil deviam ter mantido uma posição de marginalidade em relação ao sucesso artístico ou ao poder político. Até porque eles sempre procuraram ter sucesso, mesmo agitando e desafiando os padrões da MPB naquele tempo. Pode-se até criticar a atuação do Gil como ministro ou o disco mais novo do Caetano, mas acho uma tolice criticá-los por terem alcançado posições de destaque no cenário nacional e internacional.
- Tom Zé parece cativar mais os estrangeiros que os próprios brasileiros. Além da divulgação feita por David Byrne, que outros fatores explicam isso, já que muitos aspectos interessantes de suas letras se perdem na tradução?
DUNN: Acho que de alguma forma Tom Zé ajudou a transformar as expectativas do ouvinte norte-americano e europeu em relação à música brasileira, que foi consumida por muitos anos como um grande desdobramento da Bossa Nova, muito ligado ao mundo de jazz, ou então como uma vertente tropical e latina da world music, termo muito criticado pelo próprio David Byrne. Tom Zé abriu os ouvidos para uma tradição experimental e vanguardista na música brasileira que havia passado despercebida – salvo algumas exceções, como a música instrumental de Hermeto Pascoal, uma exceção que confirma a regra porque a inserção internacional do Hermeto sempre se deu através do jazz. A coletânea do Tom Zé organizada por David Byrne saiu em 1990 e preparou o terreno para a apreciação tardia da música tropicalista no exterior. É verdade que muitos americanos não conhecem bem a música brasileira, mas adoram a música de Tom Zé. A turnê americana com Tortoise, em 1999, reforçou esta tendência. Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que o público brasileiro de Tom Zé também cresceu muito, de lá para cá. Acho que ele merece ainda mais reconhecimento, mas estamos longe daqueles tempos, nos anos 80, quando seu público era de alguns estudantes e intelectuais paulistas.
- Esse fenômeno coincidiu com a ascendência póstuma do Hélio Oiticica no mundo de artes plásticas?
DUNN: Sim, mas foram dois processos diferentes. O último deveu-se em grande parte ao trabalho cuidadoso da família Oiticica, de amigos-artistas como Luciano Figueiredo e do saudoso Waly Salomão, além de críticos estrangeiros, como Guy Brett. Que eu saiba, a primeira vez que se juntou um tropicalista musical com a obra do Hélio foi quando Tom Zé tocou na abertura da retrospectiva no Walker Arts Center, em Minneapolis, em 1993. Podia ter sido no Whitechapel Gallery, em Londres, em 1969, mas Caetano e Gil chegaram exilados alguns meses depois da famosa exposição organizada por Guy Brett.
- O nome Tropicália veio de uma exposição de 1967, de Hélio Oiticica. VocÊ soube do incêndio que destruiu boa parte da obra do artista?
DUNN: Sim, eu fiquei muito abalado e triste com a notícia. É uma perda enorme, mas a obra maior de Hélio foram suas idéias e projetos, que permancerão para sempre.
- “Brutalidade Jardim” é um verso que capta a essência e a ambigüidade da Tropicála, que desmonta o discurso do Brasil como paraído tropical, mas ao mesmo tempo é fascinada por ele. Mas qual é a imagem do Brasil no exterior hoje? A meta de destruir a imagem do jardim foi alcançada?
DUNN: Se a imagem do Brasil no exterior enquanto jardim idílico foi destruída, não foi por causa dos tropicalistas. A ironia tropicalista, que desmantelou a ideologia da modernidade conservadora do regime, foi em grande medida para consumo interno, durante a época da ditadura. Quando surgiu o interesse pela Tropicália no exterior, ele passou mais pela questão formal, pelas novidades sonoras, do que pela crítica subversiva ao regime e sua ideologia. Alguns anos atrás, Caetano Veloso escreveu um artigo em tom freyreano, meio sebastianista, defendendo uma nova utopia brasileira enquanto país mestiço de língua portuguesa. Mais tarde Gilberto Gil afirmou que o Brasil “tinha lições a dar” para o mundo, quando tomou posse como Ministro de Cultura. É claro que eles continuam também a fazer músicas críticas ao quadro social, mas tendem a ver o Brasil com mais otimismo. A destruição do “Brasil Jardim” se deve sobretudo ao narcotráfico e a violência policial dos tempos atuais. Mesmo assim, acho a imagem do Brasil continua muito positiva no exterior, o Lula é visto com muita simpatia, e os avanços econômicos e sociais são cada vez mais reconhecidos. Mesmo quando esta imagem passa pela chave do estereótipo, tende a ser algo positivo e alegre. A imagem do Brasil como paraíso tropical permanece mesmo quando se sabe que não é verdade.
TRECHO DE ‘BRUTALIDADE JARDIM’:
“O Festival de Música de 1968 da TV Record gerou o primeiro mal-entendido público entre o grupo tropicalista e Chico Buarque. Foi divulgado que, durante a rodada final, Gilberto Gil vaiou a música de Chico ‘Bem-vinda’, por ser ultrapassada. Apesar de Gil ter negado o episódio, Chico reagiu com um artido discreto, criticando Gil e observando que ‘nem toda loucura é genial. nem toda lucidez é velha’. Os tropicalistas menosprezaram o incidente com elogios ambíguos a Chico Buarque. Tom Zé, por exemplo, disse com ironia: ‘Eu respeito o Chico. Quero dizer, tenho que respeitá-lo. Afinal, ele é meu avô’. Por sua vez, Caetano negou qualquer conflito entre ele e Chico, mas observou que ‘enquanto ele fala de supernostalgia, eu falo de super-realidade’.”   

quinta-feira, 12 de abril de 2012

A Semana de Arte Moderna de 1922


Um movimento entre a ruptura estética e o valor do passado. Projeto de brasilidade do modernismo ainda era incipiente na Semana de 1922
Suzana Velasco – do jornal O GLOBO
O grupo organizador da Semana de Arte de 22
RIO - Falar em modernismo brasileiro é mais do que localizar no país tendências artísticas de pretensões universais. O brasileiro é a marca fundamental pela qual o movimento, aqui, se garantiu modernista. Pensar no nosso modernismo é pensar no folclore do "Macunaíma" (1928) de Mário de Andrade e da música de Villa-Lobos; na antropofagia de Oswald de Andrade e do "Abaporu" (1928) de Tarsila do Amaral, retomada pela Tropicália. Antes de tudo isso, até hoje o marco do movimento no imaginário corrente é a Semana de Arte Moderna de 1922. Só que naqueles dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 90 anos atrás, a ideia de brasilidade era apenas um borrão. O Brasil ainda era sobretudo um país cujo atraso deveria ser superado — mesmo que os "passadistas" a serem combatidos estivessem na plateia do Teatro Municipal de São Paulo, representados pela elite cafeeira financiadora da programação de artes, música e literatura da Semana, no ano do centenário da independência.
Em "A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica" — que, publicado originalmente em 1978, será reeditado em março pela Móbile —, Eduardo Jardim trata de dois tempos do modernismo brasileiro. Segundo ele, a partir de 1917, havia uma preocupação imediatista com a inserção na ordem moderna internacional, com uma forte ideia de ruptura, norteadora da Semana de 1922. Já a partir de 1924, molda-se um caminho construtivo para essa inserção, o da particularidade nacional — e então a tradição cultural brasileira passa a ter valor.
— No primeiro momento, a oposição de modernismo e passadismo é muito clara — afirma Jardim. — A discussão era como modernizar a produção cultural brasileira pela absorção de recursos expressivos modernos. Em 1924, já se percebe que essa perspectiva não vai funcionar, e que se pode assegurar a entrada numa ordem universal por uma mediação dos traços nacionais. Esses traços perduram ao longo do tempo, como o folclore. Isso faz com que a ideia de ruptura seja revista.
Professor de Filosofia da PUC-Rio, Jardim coordena a coleção Modernismo +90, da Casa da Palavra, que terá 11 livros sobre os desdobramentos do movimento em diversas áreas da cultura. Em 15 de março, serão lançados os dois primeiros: "Olhares sobre o moderno — Arquitetura, patrimônio e cidade", com textos e entrevistas do arquiteto Ítalo Campofiorito; e "Semana sem fim — Celebrações e memória da Semana de Arte Moderna de 1922", em que Frederico Coelho analisa a visão desse marco cultural ao longo do tempo, entre o mito, a crítica ponderada e a condenação.
— Em 1924, numa longa viagem pelas cidades históricas de Minas, Oswald, Mário e Tarsila veem o barroco mineiro, e todos falam da importância disso para suas pesquisas — conta Coelho, professor de Literatura da PUC-Rio. — Por que essa viagem não foi considerada o marco do modernismo? Existe um modelo de análise que vem dos manifestos e movimentos de vanguarda europeus, e que a Semana seguiu. Mas isso não quer dizer que ela não teve importância.
Mistura de interesses se refletiu na programação
O "primeiro momento" do modernismo — que Mário de Andrade, em 1942, chamaria de "tempo destruidor" — é contado pelo jornalista Marcos Augusto Gonçalves em "1922 — A semana que não terminou", que a Companhia das Letras lança na próxima sexta, dia 10. Numa reportagem de cunho histórico, ele explora a rede de relações que culminou na Semana, inaugurada com uma exposição de artistas como Victor Brecheret, Di Cavalcanti e Anita Malfatti.
Depois de estudos em Berlim e Nova York, Anita abrira em 1917 — ano que Jardim usa como início desse primeiro tempo — a primeira mostra no país a se autodenominar moderna, que entrou para a História pela crítica feroz de Monteiro Lobato. O escritor condenou aquela "arte caricatural" tipicamente europeia, vinculando-a à perturbação mental. Já para Oswald, sua pintura causava "impressão de originalidade e de diferente visão". Mais do que por características próprias, naquele momento a obra era moderna sobretudo por ser diferente — e essa diferença ainda era, em grande medida, representada pelo que se criava lá fora.
Teatro Municipal de São Paulo em 22
Lobato defendia um caminho próprio para a arte brasileira — e o "moderno" era sinônimo de estrangeiro. Seu nacionalismo se voltava para o mundo rural paulista, representado por artistas como Almeida Júnior (1850-1899), mas a São Paulo que se projetava na jovem República era a cidade industrial, do progresso. As contradições desse momento são bem representadas no livro de Gonçalves por encontros como o do restaurante Trianon em 1921, em homenagem a Menotti del Picchia, com "homens das finanças, jornalistas, poetas e escritores da velha e da jovem guarda". Ali, Oswald exaltou o "tumulto egoísta e inteligente de São Paulo" e vociferou contra os "formalistas negados e negadores", num discurso que, mantendo o tom antiquado desses mesmos formalistas, foi aplaudido por eles.
— O projeto da Semana se inscrevia num projeto maior de projeção de São Paulo no plano intelectual — diz Gonçalves. — São Paulo, que rapidamente passou de vila colonial a cidade grande, já tinha um poder econômico definido e lançava suas ambições culturais. Havia um setor esclarecido dessa elite, que valorizava a independência proclamada na cidade e o mito do bandeirante paulista. Isso cabia bem a uma cidade mais provinciana, buscando se afirmar.
Teatro Municipal de São Paulo hoje
A mistura de interesses se refletiu na Semana, que, encapada por um discurso revolucionário, ainda misturava a arte "acadêmica" e as experimentações. Com grande improviso, o evento foi pensado também por homens vinculados a círculos mais tradicionais, como o diplomata e escritor Graça Aranha e o investidor Paulo Prado, que assegurou a realização do evento. A Semana teve a pianista Guiomar Novaes tocando Debussy e a música inovadora de Villa-Lobos, com 20 composições, vaiadas e aplaudidas; os trechos do primeiro romance de Oswald, de linguagem ainda convencional, e a leitura do poema "Os sapos", de Manuel Bandeira, causador de reações inflamadas; a conferência morna de Graça Aranha e o discurso triunfalista de Menotti del Picchia, uma ode a "motores, chaminé de fábricas, sangue, velocidade, sonho". Tarsila do Amaral, que se tornaria símbolo do modernismo, estava em Paris, e voltou ao Brasil em junho de 1922.
Nos anos 1980, críticas à centralidade dada à Semana
Passeando pela imprensa do século XX, Frederico Coelho nota como o mito de uma Semana divisora de águas na cultura se consolidou nos anos 1970, quando o modernismo foi celebrado tanto pela esquerda quanto pelo governo da ditadura, pela valorização da identidade nacional. Nesse momento, a ideia de antropofagia trazida pelo Manifesto Antropófago e pelo "Abaporu" de Tarsila, ambos de 1928, tinha sido levada a sua máxima potência com o tropicalismo, na arte de Hélio Oiticica, no teatro de José Celso Martinez Corrêa, na música de Tom Zé, Mutantes, Caetano e Gil.
Três décadas antes, conta o pesquisador, a revista "Dom Casmurro" decretara a morte do modernismo, em 1942, ideia reforçada três anos depois com a morte de Mário de Andrade e o fim do Estado Novo. Uma reflexão menos dicotômica se deu nos anos 1980, quando pesquisadores passaram a questionar a excessiva centralidade dada à Semana no modernismo, sem decretar sua morte. Foi um momento marcado pela crise do ideal universal de progresso — que norteou o movimento mesmo quando ele se voltou para traços do passado nacional em seu projeto de brasilidade, como lembra Pedro Duarte, professor de Filosofia da UniRio, que prepara "A palavra modernista: vanguarda e manifesto" para a coleção Modernismo +90.
— No modernismo, questiona-se a forma pela qual o Brasil vai se inserir no Ocidente, ao qual ele pertence, mas de um modo próprio — afirma Duarte, que vê a presença de um pensamento modernista no Brasil até os anos 1970. — O discurso de Caetano no Festival da Canção de 1968 talvez seja um dos últimos manifestos modernistas, com o enfrentamento do público, a ligação entre arte e política, a colocação de uma primeira pessoa do singular, tudo sob o título de "é proibido proibir", um grito de liberação de cânones e preconceitos que me parece típico dessa modernidade.

terça-feira, 10 de abril de 2012

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quinta-feira, 5 de abril de 2012

Mergulho na Torre do Tombo


A meca dos historiadores brasileiros é um edifício moderno que abriga, desde 1990, o arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa. Nos seus 140 quilômetros de prateleiras há documentos que recuam até o ano 882.
Texto Maria da Paz Trefaut – da revista PLANETA – edição 472
A nova sede da Torre do Tombo, na Cidade Universitária de Lisboa.
No detalhe, duas das gárgulas criadas pelo escultor José Manuel Aurélio, que sobressaem da fachada.
Em um prédio modernista de formas retilíneas, na Cidade Universitária de Lisboa, Portugal preserva parte expressiva da sua história, do Brasil e de suas ex-colônias. Ali funciona a Torre do Tombo, onde estão guardados os originais de documentos preciosos como a carta de Pero Vaz de Caminha sobre o “achamento” do Brasil e o Tratado de Tordesilhas, celebrado em 1494 entre portugueses e espanhóis.
Com uma área de 54.900 metros quadrados, o espaço reúne três áreas: arquivo e investigação, eventos culturais e setor administrativo. Milhares de volumes se espalham por quatro pisos com capacidade para 140 quilômetros de prateleiras. Aí estão mil coleções documentais de origem pública e privada e 50 coleções de documentos relevantes para o estudo da história comum dos países colonizados por Portugal: Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste e as possessões de Macau (China), Goa, Damão, Diu e Cochim (Índia).
O edifício foi aberto ao público em 1990, pondo fim a séculos de romaria do arquivo por sedes improvisadas – mas não se parece em nada com uma torre. A Torre do Tombo original ruiu no terremoto que destruiu Lisboa parcialmente, em novembro de 1755. Parte da documentação foi recolhida dos escombros e guardada num barraco de madeira, construído por ordem do Marquês de Pombal. Mas só em 1901 o acesso público aos documentos começou a ser liberado a pesquisadores.
Acima, a preciosa Bíblia dos Jerônimos, decorada com iluminuras, de 1494. 
Trecho original da carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500, comunicando a descoberta do Brasil. 
Ao lado, o Tratado de Tordesilhas, de 1494. 
Algumas peças de extremo valor, como a carta escrita por Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Cabral, em 1500, ao rei Dom Manuel I, não estão disponíveis para conferência. O arquivo não é um local de turismo, mas de pesquisa acadêmica e profissional. O documento escrito por Caminha está no cofre-forte e não vai para a sala de leitura, mas já foi digitalizado. Só aparece em exposições especiais, como a que comemorou os 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, em abril de 2000. “É uma peça que sai daqui sempre cercada de muito cuidado, pois precisa de controle constante de umidade e temperatura”, explica o diretor-geral da Torre do Tombo, Silvestre Lacerda.
Peregrinação histórica
Muitos historiadores brasileiros frequentaram a antiga sede do Arquivo Nacional, antes da sua transferência para o prédio novo. De 1861 até 1990, os arquivos funcionaram numa ala do Mosteiro de São Bento, no bairro da Estrela, em um anexo da Assembleia da República, o Parlamento português. Ali fizeram pesquisas autores antigos e modernos como Capistrano de Abreu, Fernando Novais, Evaldo Cabral de Mello, Carlos Guilherme Mota, Luiz Felipe de Alencastro e muitos outros.
As antigas salas de pesquisa da Torre, no Mosteiro de São Bento. 
O jornalista Alberto Dines conheceu as duas sedes, a antiga e a nova. Entre 1988 e 1989 passou um ano indo ao mosteiro todos os dias, pesquisando para o livro Vínculos do Fogo – Antônio José da Silva, o Judeu, e Outras Histórias da Inquisição em Portugal e no Brasil, editado em ambos os países. O personagem em questão foi uma das mais famosas vítimas da Inquisição portuguesa, e a Torre do Tombo guardava um material inestimável sobre ele. “As condições de trabalho eram precariíssimas. Havia apenas 12 mesas e era preciso chegar muito cedo ao arquivo para reservar uma pesquisa”, relembra.
No fim dos anos 1980 os documentos ainda não estavam digitalizados. “Era preciso pedir os antigos ‘ficheiros’ (pastas) e romper a barreira da compreensão entre portugueses e brasileiros para encontrar o que se queria. Aí, quando você abria, os bichinhos do papel vinham junto”, conta Dines. “Mas havia um grande prazer no manuseio físico, em pôr as mãos no documento.” O jornalista vasculhou 300 processos inquisitoriais em busca frenética, com pequenos intervalos para almoço, na lanchonete da Torre, onde o cardápio não ia além de sanduíches “de péssima qualidade”.
 A historiadora Lilia Schwarcz pesquisou no arquivo em 2001.
Quando o arquivo foi transferido para o prédio moderno, na Cidade Universitária, a situação mudou do dia para a noite. “Em 1991, passamos a ter condições de primeiríssimo mundo. Mas ainda sinto saudade do antigo, onde, literalmente, botava a mão na poeira da história. Foram alguns dos anos mais felizes de minha vida, nos quais vivenciei um prazer intelectual imenso”, rememora Dines.
Fora do mundo
Já a historiadora Lilia Moritz Schwarcz frequentou apenas as novas instalações na Cidade Universitária, entre 2000 e 2001, quando reunia material para escrever A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis, editado pela Companhia das Letras. Nos dias que passou no arquivo guardou a imagem da Torre do Tombo como uma superbiblioteca que oferece ótimas condições para pesquisa. “É muito silenciosa, as mesas são espaçosas e cada um tem sua lâmpada. É o paraíso para qualquer pesquisador”, afirma.
Silvestre Lacerda
Diretor Geral da Torre do Tombo
Lilia estava mergulhada no passado num dia marcante da história contemporânea: 11 de setembro de 2001. “Estava absorta e, como todos, meio fora do mundo e sem comunicação. Nesse dia descobri um documento importantíssimo para a minha pesquisa, algo que só um historiador acha relevante. Supunha-se que a biblioteca real tinha vindo com Dom João VI para o Brasil, em 1808, e, naquela tarde, descobri um documento que provava que os caixotes tinham ficado no cais de Lisboa. A biblioteca chegou a ser dada como perdida.”
Ao sair da Torre, onde ficara todo o dia sem almoçar, especulando sobre o passado, Lilia percebeu várias ligações do marido, Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, registradas no seu celular. “Quando liguei de volta, a primeira pergunta dele foi: ‘Você viu?’ Eu estava tão imbuída da descoberta que respondi: ‘É mesmo, os documentos não partiram.’ Só diante da perplexidade dele fiquei sabendo do ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, que mobilizava o mundo.”
Capa do livro de bens do Mosteiro de Seiça.
A história da Torre do Tombo remonta ao século 13, mas só aparece documentada em 1378, ano em que o Arquivo Real foi instalado numa das torres do Castelo de São Jorge – cujas ruínas ainda são referência na paisagem lisboeta. Essa é a origem do nome Torre do Tombo. Ali permaneceu até o terremoto de 1755. Na época, era chamada de “Torre das Escrituras”, porque guardava as memórias dos reis e do reino. Esses documentos, que fazem parte do Arquivo da Casa da Coroa, são classificados, hoje, pela Unesco como parte do registro da “Memória do Mundo”.
Carta do rei Dom Afonso Henriques, de 1129, na qual surge a palavra “Portugal”
Sucessivos reinados e governos mudaram seguidamente a hospedagem do arquivo, que atravessou a história de Portugal como uma das suas instituições mais antigas – são 600 anos de existência. No reinado de Dom Manuel I, “o Venturoso”, foram elaboradas cópias de diversos documentos de difícil leitura, que estavam em mau estado de conservação. Com o tempo, papéis de instituições extintas foram incorporados ao patrimônio da casa. No século 19, a documentação que provinha dos cartórios das igrejas e das corporações religiosas também entrou na Torre.
Gênese da língua
Assim, a partir de 1862, o arquivo passou a deter a documentação mais antiga de Portugal, originária do século 9. Seus papéis testemunham vivências e acontecimentos anteriores à fundação da nacionalidade portuguesa, muito valorizados pelos linguistas como fonte de estudo das origens da língua portuguesa e da escrita visigótica, utilizada na Península Ibérica do século 8 ao 13.
A Torre do Tombo guarda, por exemplo, um ofício de 28 de julho de 1129 no qual se registra pela primeira vez a palavra “Portugal”. Seu documento mais antigo é a carta de fundação da Igreja de Lardosa, nas proximidades da cidade do Porto, datada de 27 de junho de 882. É claro que muita coisa se perdeu, pois o acervo foi prejudicado não só pelo grande terremoto, mas por diversos incêndios e, ainda, pela atabalhoada transferência da família real para o Brasil, em 1808, fugindo dos exércitos de Napoleão.
Ao longo do tempo, o arquivo histórico esteve subordinado a diferentes ministérios e instituições e passou por problemas de manutenção, sucessivas crises econômicas e falta quantitativa e qualitativa de pessoal especializado. Só a partir dos anos 1960 os cuidados com o acervo e os serviços prestados à sociedade ganharam relevância e profissionalismo. Nessa época iniciaram-se a ampliação da microfilmagem de fotografias e livros, as visitas organizadas de estudo e as exposições de documentos raros.
Com a modernização, muitos documentos em formato de livro, caderneta ou “ficheiro”, como dizem os portugueses, vêm sendo digitalizados. Hoje, o catálogo da torre apresenta contínuo crescimento e as ferramentas da internet foram agregadas de forma a permitir o acesso a uma porcentagem cada vez maior da documentação. Já existem muitos papéis importantes disponíveis para download. Para quem quiser dar uma olhada, basta entrar no site www.antt.dgarq. gov.pt, acessar “Pesquisar na Torre do Tombo”, depois a página “Fundos e Colecções” e boa viagem.