..................................................................A notícia como nunca foi.
segunda-feira, 30 de abril de 2012
Ana Dalva News: Eleições 2012: Congresso Municipal do PPS abre o b...
Ana Dalva News: Eleições 2012: Congresso Municipal do PPS abre o b...: Ana Dalva abrindo o Congresso Municipal do PPS O Congresso Municipal do PPS – Partido Popular Socialista - de Heliópolis foi a...
sábado, 21 de abril de 2012
¨¨¨Landisvalth Blog: Povo protesta contra a corrupção em Brasília, São ...
¨¨¨Landisvalth Blog: Povo protesta contra a corrupção em Brasília, São ...: Da AGÊNCIA BRASIL, FLÁVIO FERREIRA e LUIZ FERNANDO CARDOSO – reprodução da FOLHA DE SÃO PAULO , com fotos de Ueslei Marcelino /Reuters,...
Carta na Escola entrevista Milton Hatoum
‘A experiência da juventude é
decisiva para o escritor’
Por: Lívia Perozim - da revista Carta Capital
O premiado amazonense conta como foi sua experiência na escola pública e como sua trajetória de leitor e suas vivências políticas o influenciaram. Foto: Rennato Testa |
Enquanto conversa comigo, no
café de uma livraria paulistana, a voz serena do escritor Milton Hatoum vai se
animando e um sorriso treloso explicita a excitação de relembrar momentos que
marcaram sua juventude.
Filho de imigrantes libaneses,
Milton partiu de Manaus aos 15 anos, rumo à capital federal, “se perder um
pouco”. Foi aprovado em um colégio-modelo da Universidade de Brasília, onde
estudavam também filhos de políticos e poderosos da República. Fernando Collor
era aluno do mesmo colégio, seu contemporâneo, com a devida ressalva de que
pertenciam a chapas opostas. Foi lá, conta o
amazonense, durante os repressivos anos do fim da década de 60, que tudo
se iluminou para ele do ponto de vista da leitura, do ensino e da formação
política.
Nesta entrevista, Hatoum não
esconde sua repulsa por “caretices e dogmatismo”, principalmente ao falar dos
políticos brasileiros,e revive esse importante período da sua vida – da escola
pública, passando pelo Ensino Médio em Brasília e pela Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo, em São Paulo, onde se formou. O autor de quatro romances (o mais
conhecido, Dois Irmãos) conta também a sua experiência como leitor e fala sobre
seu sexto livro, sem pressa e data para ser publicado
Carta na Escola: O seu
interesse pela literatura foi despertado na escola?
Milton Hatoum: A experiência da
infância e da juventude é decisiva para quem vai ou quer escrever. Nessa
experiência está incluída a de leitor. Por um lado, tive muita sorte com meus
professores e minha mãe, que me indicaram livros fundamentais. Minha mãe era
obcecada por Machado de Assis, escritor mal lido durante muito tempo. Machado
era interpretado como o escritor dos triângulos amorosos, e isso excitava os
leitores. Claro, a obra machadiana é muito mais complexa, pois fala das
contradições da nossa sociedade, da loucura, da crueldade da nossa elite e do
lado obscuro do homem. Um dia minha mãe comprou de um livreiro ambulante a
coleção das obras completas do Machado, uma edição de 1958, que guardo até
hoje. Por sorte, comecei a ler os contos. Tivesse lido os romances primeiro,
talvez odiasse Machado. É esse o erro que se faz na escola. Os grandes romances
machadianossão muito complexos, têm muitas nuances e uma dimensão simbólica e
histórica que está nas entrelinhas. A maioria dos jovens de 14 anos não vai
enfrentar essa dificuldade. Se me pedissem para opinar na política do MEC, eu
diria: distribuam um livro com uma seleção dos contos de Machado na biblioteca
de todas as escolas.
CE: Qual conto machadiano leu
primeiro?
MH: Foi Parasita Azul, de
Histórias da Meia-Noite. Fui atraído porque achava que haveria algo de
mistério, de terror. E não era nada disso. Era um conto machadiano, já dos
bons. Acho que Parasita Azul é um marco para os grandes contos do Machado na
década de 1880 e 1890. Fiquei fascinado. Fui lendo outros contos e pensava
“Como ele escreve bem, que clareza!” Ao mesmo tempo, na escola, os professores
trabalhavam com Graciliano Ramos, Jorge Amado e Erico Verissimo. Outro
professor trabalhou com Euclides (da Cunha), o que me irritou profundamente.
CE: Por quê?
MH: Explodiram uma bomba
caseira no colégio, por travessura, e o castigo coletivo foi a leitura e o
fichamento de Os Sertões, cuja edição, de 1967, também guardei. Depois de ter
lido os contos do Machado e Vidas Secas e Infância, do Graciliano, fiquei um
pouco arrepiado com a linguagem do Euclides, muito retorcida, com um
vocabulário precioso. Foi um choque. Não quis saber do Euclides naquele
momento.
CE: Quando foi que o Euclides
“te pegou”?
MH: Na escola, em 1967, só li
um trecho de A Luta, a meu ver, a melhor parte d’Os Sertões. Li o livro inteiro
quando já morava em São Paulo, depois de ter passado dois anos em Brasília. Li
também os ensaios amazônicos de À Margem da História, onde descobri um texto
maravilhoso, Judas Asvero, sobre os seringueiros nordestinos no Alto-Purus. É
um texto lindo, obra canônica na literatura brasileira. Eu queria fazer uma
tese de doutorado sobre esse relato de três páginas
CE: O castigo virou uma
obsessão?
MH: E também um fascínio, pois
comecei a entender mais o Euclides, apesar dos seus erros políticos e da sua
ingenuidade. Ele era um positivista, acreditava no progresso e na
“civilização”, em oposição à “barbárie”. Essa oposição não existe. O
“progresso” e a ciência só fazem sentido se servirem à sociedade como um todo,
e não apenas a uma elite. Enfim, ele tinha assimilado todos os valores da
filosofia positivista do século XIX e, ao lado do Machado, seu contemporâneo,
ele é muito ingênuo. Machado não acreditava em nada disso.
CE: A produção escrita veio junto
com a sua imersão na leitura literária?
MH: Meu primeiro artigo, meio
poético, escrevi nessa época, para o jornal do grêmio estudantil do Colégio
Pedro II, em Manaus. Era um artigo sobre educação pública, clamando pela
qualidade de ensino, por uma boa biblioteca, salários justos para os
professores, tudo que se diz até hoje. O nome do jornal que, aliás, está no
Cinzas do Norte, era Elemento 106. Na época, havia 105 elementos na natureza…
Acho que eu estava numa caverna um pouco sombria e, em Brasília, tudo se
iluminou do ponto de vista da leitura e do ensino.
CE: Com quantos anos foi para
Brasília?
MH: Fui fazer o antigo colegial
da época, com 15 anos. Era um colégio de aplicação chamado Ciem (Centro
Integrado do Ensino Médio), que ficava na entrada do campus e pertencia à
Universidade de Brasília. Uma escola-modelo para 350 alunos e mais de 60
professores, um colégio para qual se deveria prestar um exame para entrar. Mas
só os caipiras prestavam. Os filhos de deputados e ministros, não.
CE: Sua família continuou em
Manaus?
MH: Vim sozinho. Queria me
aventurar, me perder um pouco. Brasília foi uma experiência e tanto. Política,
inclusive, porque caí no olho do furacão, em 1968.
CE: Foi em Brasília que você
deixou de ser um progressista?
MH: Nunca deixei de ser
progressista. Desconfio dos valores da civilização, esses valoresdo Ocidente.
Sou um progressista de esquerda, mas detesto qualquer dogmatismo e todo tipo de
caretice. Muitos traíram, se traíram. Não me arrependo de nada, de nenhuma
passeata ou pichação, de nenhuma pedra jogada contra a polícia, que torturava e
matava. A ditadura interrompeu brutalmente o processo democrático, esta é a
verdade. O ano de 68 foi o mais violento em Brasília. Foi um inferno, houve
invasões durante todo o ano na universidade, prisões, expulsões, perseguições.
Brasília teve o movimento estudantil mais radical do Brasil e as pessoas
desconhecem isso. Eu vivi um pouco isso e vivi também o ambiente do colégio,
que era incrível. Era um laboratório criado por Darcy Ribeiro e Anísio
Teixeira. Li muita coisa de literatura brasileira, francesa, italiana…
CE: Já pensava em ser escritor?
MH: Não. Eu escrevia poesia e
tinha um diário. Naquela época, não podíamos falar, então escrevíamos. Toda a
nossa energia ia para a escrita, para o sexo e outras coisas. Brasília foi isso
também, muita droga. Foi um momento de liberação de tudo. Eu intuí que aquilo
não ia dar certo e vim para São Paulo em 1970. Em 71, a ditadura fechou o meu
colégio em Brasília. O Collor estava lá, eu era do primeiro ano e ele, do
terceiro.
CE: Como era o ex-presidente na
escola?
MH: Diziam que ele desfilava
para as festas da primeira dama, Iolanda (mulher do presidente Arthur da Costa
e Silva – 67 a 69), para arrecadar fundos. Diziam também que ele era lindo. Eu
e meus amigos o considerávamos um mauricinho, um bofe cafona, e um baita de um
reacionário. Já naquela época ele era pedante e comandava uma chapa de direita.
Lamentável que a esquerda, hoje, esteja aliada com o Collor e outras figuras
autoritárias.
CE: Há um movimento de criação
de cursos de formação de escritores no Brasil. É possível ensinar a escrever
literatura?
MH: Acho que não. É uma técnica
que veio dos Estados Unidos, onde muitos escritores vivem disso. Mas não
acredito que você forme um escritor. É preciso ter talento para escrever. O que
eu acredito é que a leitura crítica é fundamental para quem quer ser escritor.
Não há lugar para o leitor ingênuo entre os que querem escrever.
CE: Qual foi sua formação
crítica de leitor?
MH: Eu fugia da FAU para
assistir aos cursos de teoria literária do Davi Arrigucci, da Leyla
Perrone-Moisés e outros grandes mestres. Esses cursos me ajudaram a pensar na
literatura. Não que isso seja obrigatório. Guimarães Rosa nunca assistiu a uma
aula, mas era um gênio, sabia tudo sobre romance e conto. Era um grande leitor.
A FAU também foi uma escola formadora e me ajudou a refletir sobre as cidades
brasileiras e a habitação popular, cujos projetos ainda são vergonhosos no
Brasil, como se o povo não merecesse moradia digna. A FAU era bem maluca, e
diferente do que é hoje. Tudo ficou mais convencional.
CE: O seu olhar de arquiteto está
muito presente na maneira como você explora a cidade. Isso é intencional?
MH: Acho que sim. Foi
introjetado na minha vivência com a arquitetura, nas minhas leituras sobre
arquitetura e na minha vivência na cidade. O espaço é importante num romance,
mas não como descrição, e sim como um elemento constitutivo da trama e da vida
dos personagens.
CE: Manaus é predominante entre
as cidades dos seus romances. Que tipo de sentimento sua cidade natal evoca?
MH: Hoje é uma cidade quase
irreconhecível para mim. Quando se trata da memória do espaço, as cidades da
América Latina têm uma vida curta, vão se sobrepondo umas às outras, se
destruindo e se reconstruindo a cada uma ou duas décadas. Isso, por um lado,
aponta para um dinamismo econômico e, por outro, para uma destruição da memória
urbana. Manaus poderia ser uma cidade maravilhosa, mas está totalmente
desfigurada, feia, e sem árvores. Uma cidade equatorial sem sombras.
CE: Você já afirmou não
conseguir escrever sobre o passado recente. Como se dá esse processo de criação
e memória?
MH: O passado recente está
muito próximo do circunstancial. Uma distância longa do tempo é mais propícia à
literatura porque você não lembra com precisão. O que há de nebuloso no passado
move a nossa memória, que é irmã siamesa da imaginação.
CE: Sobre o que falará o
romance que você está escrevendo?
MH: Ele evoca o período em que
vivi na Europa. É um romance ambientado em Paris, com histórias sobre exílio,
expatriação e tradução. É narrado por uma tradutora franco-brasileira. Tem também
um pouco da minha experiência de Brasília e São Paulo. Fico particularmente
emocionado quando escrevo. Estou falando com você, e, ao mesmo tempo, meu
coração e meu pensamento disparam, mergulham nas lembranças perdidas, que
reaparecem por meio da linguagem. No romance também ocorre o alumbramento, esse
belo nome que Manuel Bandeira dava ao súbito surgimento da imagem poética.
CE: Tem previsão para o lançamento?
MH: Pensei que terminaria em fevereiro, mas meu editor fez várias observações relevantes, decidi retomar o trabalho e reescrever várias partes. Você pode matar um livro se for picado pela pressa e pela vaidade. Faz tempo joguei a vaidade para o ar. Eu sei que tem a Feira de Frankfurt e o Brasil vai ser o país homenageado em 2013. Seria maravilhoso lançar este ano. Mas não adianta forçar. O romance é uma arte que exige obstinação e uma entrega total, que é a paixão pela linguagem. Além disso, acho que já escrevi muito. Cinco livros! Tem gente que publica mais de 30. É inimaginável para mim.
Um Jorge Amado e universal
Por Ana Ferraz – da revista
CARTA CAPITAL
Em seu processo de criação,
Jorge Amado assumia o papel de executor das vontades de seus personagens. Em
Dona Flor e seus Dois Maridos (1966), o escritor queria que a protagonista
fosse embora com Vadinho, mas ela quis ficar com os dois maridos. Zélia Gattai,
a mulher, e Paloma, a filha, contam em depoimento gravado os caminhos criativos
do autor baiano, cujo centenário de nascimento ganha a exposição Jorge Amado e
Universal, parceria entre a Grapiúna, Fundação Casa de Jorge Amado, Secretaria
de Cultura do Governo de São Paulo e Museu da Língua Portuguesa.
“A mostra aproximará do grande público um dos
autores que melhor retrataram nosso povo através de seus cerca de 5 mil
personagens cheios de grandezas, fraquezas, sabedoria popular, sensualidade
encantadora, malícia, fé e esperança”, diz Antônio Carlos de Moraes Sartini,
diretor do Museu da Língua Portuguesa.
Em seis módulos, vida e obra de
Amado. Num deles, originais corrigidos à mão pelo autor, fotos, ilustrações das
obras publicadas em 50 países. Em outro, a Bahia reinventada pelo escritor. Na
Casa dos Milagres, as coloridas camisas do autor.
JORGE AMADO E UNIVERSAL: UM
OLHAR INUSITADO SOBRE O HOMEM E A OBRA
Até 22 de julho
Museu da Língua Portuguesa
Praça da Luz, s/nº, Centro, São
Paulo
segunda-feira, 16 de abril de 2012
Eliane Brum, da revista Época, fala da pequenez do pensamento brasileiro
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou
mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um
romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O
Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago
Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois
documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br. Veja o artigo
publicado nesta segunda-feira (16).
A volta do Brasil Grande que pensa pequeno
Ao contar o passado, pela epopeia dos Irmãos Villas Bôas, o
filme “Xingu” ilumina o presente. E coloca a plateia diante de uma questão
atual e incômoda: omissão também é protagonismo
ELIANE BRUM – da revista ÉPOCA.
Xingu, o filme de Cao Hamburger, conta a saga dos três
irmãos Villas Bôas em seu confronto com o Brasil que não sabia que era Brasil.
Nos anos 1940, Orlando (Felipe Camargo), 27 anos, Cláudio (João Miguel), 25, e
Leonardo (Caio Blat), 23, mentiram que eram analfabetos sem profissão para se
alistar na Expedição Roncador-Xingu, que desbravaria o centro do país. O que
acontece a partir do momento em que três jovens de classe média partem em busca
de aventura e encontram de forma brutal não só uma outra civilização, mas
também a si mesmos, é História. E, infelizmente, uma história que vai sendo
esquecida. Mas, ao iluminar o passado, Xingu, o filme, ilumina Xingu, a vida. E
o ilumina para além do Parque Nacional do Xingu, o grande feito dos Irmãos
Villas Bôas, consumado em 1961. Ilumina com verdades suficientes para
questionar a plateia em outras verdades: por que permitimos, pela omissão da
maioria, que a faraônica obra de Belo Monte – aqui, agora – destrua uma das
maiores riquezas culturais e biológicas do planeta? Por que, em um governo dito
popular, se reedita o autoritarismo para impor um elefante branco da
democracia, com a nossa cumplicidade? A plateia que assiste ao filme precisa
responder, ao deixar a sala de cinema, a uma pergunta bem incômoda: por que, na
vida, não consegue deixar de ser plateia.
O filme termina
quando a Transamazônica começa a ser construída. Naquele momento, com uma
imprensa censurada pela ditadura e um país dominado pelo ufanismo do “Brasil
ame-o ou deixe-o”, do “Integrar para não Entregar”, do “Terra Sem Homens para
Homens Sem Terra” talvez só Orlando e Cláudio Villas Bôas – além do governo
militar e de seus apoiadores – eram capazes de compreender o que aconteceria
quando a estrada rasgasse a selva e literalmente a encharcasse de sangue. Hoje,
não. Nenhum de nós tem a desculpa de não saber o que já aconteceu. Nenhum de
nós tem a desculpa de ignorar a destruição da floresta e a matança de gente,
bicho, planta e cultura consumada no Brasil Grande da ditadura militar. Nenhum
de nós tem a desculpa de ignorar a ocupação incompetente e a trilha de mortes
que só faz aumentar. Não há desculpa para a ignorância do passado. E penso que
não há desculpa para a omissão no presente, diante do futuro.
Quando a Transamazônica se desenhava na tela, era Belo Monte
que estava bem ali. Assisti ao filme enxergando o presente, e não apenas o
passado – e por isso saí do cinema devastada. Vi o passado enxergando o
presente porque o passado tornou-se, de novo, presente. E é com esse presente
que temos o desafio de lidar. Quando a Transamazônica foi imposta pela ditadura
militar, boa parte dos vivos de hoje nem sequer tinha nascido ou ainda era
criança, como eu. Agora, não. Estamos todos aqui.
Conhecer a Amazônia exige um movimento – e um desejo maior.
Assistir ao filme é muito fácil. Se puderem, assistam ao Xingu e, na última
cena, uma das mais belas do nosso cinema, se enfiem na pele de um dos Irmãos
Villas Bôas e percebam que, querendo ou não, é diante desse olhar que nós todos
estamos – agora.
Acho que este é o mérito dos grandes filmes: não permitir
que nos instalemos no conforto eterno da poltrona de cinema. Tornar impossível
o pensamento comodista de que aquilo não nos diz respeito – seja porque já
aconteceu, seja porque é a dor de um outro muito diferente. Ou ainda porque não
nos convém – e nos acreditamos a salvo. E aqui não se trata da arte
utilitarista ou engajada, mas do fato de que os bons filmes, assim como a boa
literatura, nos confrontam com pessoas complexas num mundo complexo – e não
meros heróis em um mundo plano. Como quando Cláudio Villas Bôas diz, ao
perceber que, salvando, ele também destrói: “Somos o veneno e o antídoto”. Ou:
“Há uma coisa deles que morre pra sempre assim que a gente encosta”.
É por acolher o conflito que os bons filmes, mesmo que nos
contem de mundos e de gentes distantes, ecoam na vida de todos nós. Pescam
nossos demônios internos e os fazem dançar diante dos nossos olhos. Os bons
filmes, como os bons livros, nos transtornam por dentro, mesmo que ninguém
fique sabendo porque só a nós diz respeito; e nos transtornam de dentro para
fora, como neste caso, ao percebermos que a omissão também é um tipo de
protagonismo. Os bons filmes são como os bons governos: acolhem o conflito e
dialogam com o contraditório. Os maus filmes são como os maus governos: calam
os conflitos e chamam o contraditório de “fantasia”. Xingu é um bom filme.
Os realizadores de Xingu já tinham deixado explícita a
intenção de, ao contar a epopeia histórica dos Irmãos Villas Bôas, criar uma
oportunidade para pensar sobre os dilemas do Brasil atual. “Se o filme
conseguir trazer a história desses caras para uma discussão do futuro e do
presente seria muito legal. Apesar de ser um filme de época, é muito
contemporâneo. Uma das coisas que me encantaram nessa história foi essa
possibilidade de discutir coisas contemporâneas contando uma história do século
passado”, disse à imprensa Cao Hamburger, o diretor, durante o lançamento do
filme. E, em outro momento: “A ideia é que a gente repense a maneira como
somos. O que é o progresso hoje? Que crescimento a gente quer?”.
Também os atores, ao viverem o Xingu para encenar o Xingu,
confrontaram-se com os conflitos vividos por seus personagens – mas também os
incorporaram como cidadãos diante da experiência para além da filmagem. “Os
Villas Bôas fizeram uma previsão: que o encontro (entre brancos e índios) era
inevitável e a civilização ia chegar à fronteira do rio. E eles chamavam isso
de ‘abraço da morte’. De avião a gente vê claramente a devastação ao redor.
Então esse ‘abraço da morte’ chegou”, contou Caio Blat. “Não teve um dia de
filmagem que não vimos fumaça de queimada. Até o set queimou, a equipe toda
ajudou a apagar o fogo. E isso acontece sempre: aconteceu quando filmamos,
aconteceu no ano passado, vai acontecer este ano de novo”, afirmou Felipe
Camargo. “A ecologia não pode mais ser vista como uma coisa bonitinha, ‘vamos
preservar a natureza’. Não: vamos preservar a nossa vida.”
Ao refletir sobre a experiência de filmar Xingu no Xingu,
Cao Hamburger declarou: “Considero que essa cultura e essa filosofia de vida
deles não estão paradas no tempo, elas estão em desenvolvimento, como a nossa.
O que está me interessando muito é o que nós podemos aprender com essa cultura.
O Brasil tem um tesouro que faz questão de esconder e desprezar, e está
perdendo a oportunidade de absorver e aprender com eles. A cultura deles é
muito rica, muito sofisticada, e o Brasil tem muito a ganhar”.
O cineasta Fernando Meirelles, produtor do Xingu, foi
contundente em suas afirmações ao longo da série de entrevistas sobre o filme:
“O que eu acho que vale ressaltar do filme é como ele é atual. Vindo para cá,
eu li no jornal que o Megaron Txucarramãe, que era coordenador da Funai no
norte do Mato Grosso, tinha sido demitido porque tem uma posição contrária a
Belo Monte (outubro de 2011). É a história do filme, da Transamazônica, se
repetindo. O filme não poderia ser mais atual, nesse momento em que Belo Monte
e o Código Florestal são assuntos muito fortes”. E, mais tarde: “Eu,
pessoalmente, acho que Belo Monte é um dos maiores erros atuais. A gente está
construindo usinas basicamente para poder aumentar a produção de alumínio. Vai
comprometer toda aquela área pra produzir mais alumínio. É esse o progresso que
queremos?”.
Em outra manifestação, Fernando Meirelles foi ainda mais
direto: “A Transamazônica do filme é a Belo Monte de hoje. Aquele deputado de
terninho é a Kátia Abreu (senadora da bancada ruralista pelo PSD/TO). Isso está
muito claro”. No filme, há ainda um militar que é a cara desse governo no trato
de Belo Monte e das questões ambientais. Só não gritei – “Nossa, é a Dilma
Rousseff!” – porque faço uma campanha persistente pelo silêncio no cinema.
Quando Orlando Villas Bôas tenta explicar que a Transamazônica vai passar por
cima dos Kren Akarore, uma etnia isolada, o militar declara: “Limpe o caminho.
Mas tem que ser rápido”.
Há de se eliminar aquilo que “atravanca” o progresso ontem,
o desenvolvimento hoje – tirar da frente, custe o que custar. “Resolver”. E
rápido. Como a História mostrou, dos 600 Kren Akarore restaram 79 depois da
abertura da Transamazônica. Ou seja: o efeito da Transamazônica, apenas sobre uma
única etnia indígena, foi um genocídio de mais de 500 seres humanos. E a
Transamazônica até hoje é uma picada intrafegável boa parte do ano, apelidada
por onde passa de “Transamargura”. As obras de Belo Monte começaram – sem o
cumprimento das condicionantes ambientais – e o estrago já é visível.
Os índios recebem "o abraço da morte". |
Entre os desafios que um futuro biógrafo enfrentará ao
contar a vida e a obra de Dilma Rousseff está o seguinte paradoxo: como uma
mulher que entrou na clandestinidade, pegou em armas para lutar contra o
autoritarismo e pagou pela sua coerência o preço altíssimo de ter sido
torturada vira uma ministra, primeiro, uma presidente depois, que, em se
tratando de políticas para a Amazônia e o meio ambiente, incorpora – e o pior,
implanta – a mesma visão da ditadura militar que combateu. De novo, estamos de
volta ao Brasil Grande que pensa pequeno – mas em plena democracia e numa
imprensa sem censura oficial. Acho o paradoxo fascinante do ponto de vista
humano, mas um desastre para o país.
Talvez, hoje, a presidente Dilma Rousseff passasse um pito
na guerrilheira Dilma Rousseff: “Não há espaço para a fantasia”. E
imediatamente esquecesse que foi essa “fantasia” que tornou possível não só a
própria democracia, mas a ascensão de um operário à presidência do Brasil. E
também a tudo o que veio depois – inclusive ela. Foi essa mesma frase, em minha
opinião a mais infeliz de sua trajetória como presidente, possivelmente de sua
vida, que Dilma Rousseff declarou aos ambientalistas que combatem Belo Monte,
no início de abril, afirmando que não mudará sua política de “desenvolvimento”
para a Amazônia. O que nos faz concluir que, diante dos Irmãos Villas Bôas, os
indigenistas de ontem, Dilma Rousseff só poderia dizer o mesmo que diz para os
indigenistas de hoje: “Não há espaço para a fantasia”.
Cara presidente, se não existisse “fantasia” não existiria
humanidade – não existiria nem mesmo o conceito de nação. Como disse Fernando
Meirelles, no site da produtora O2 Filmes: “Sonhe um pouco, presidenta. Ou ao
menos escute o sonho dos que conseguem sonhar”.
domingo, 15 de abril de 2012
Schwarz X Caetano
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES – da ILUSTRÍSSIMA
– da FOLHA DE SÃO PAULO
Caetano Veloso |
Roberto Schwarz |
Quinze anos depois da
publicação de "Verdade Tropical", de Caetano Veloso, Roberto Schwarz
reitera seu interesse pelo compositor, de quem já havia tratado em outra
ocasião, e publica em seu novo livro o esperado ensaio sobre o "herói
reflexivo e armado intelectualmente" de nossa canção popular, cuja
biografia entrelaça-se com as circunstâncias históricas e os debates de uma fase
importante da vida nacional.
Caetano e Schwarz viveram
naquele mesmo mundo. Experimentaram a efervescência político-cultural dos anos
que antecederam e se seguiram ao golpe de 64, e participaram, cada um a sua
maneira, do debate intenso que se travava à época sobre as perspectivas do
país. Isso não significa, obviamente, que compartilhassem ou compartilhem as
mesmas ideias sobre política, cultura ou país.
Schwarz é o fino e respeitável
crítico marxista que não passa duas páginas sem se referir ao capitalismo e
mostra-se sempre inclinado a buscar na obra de arte suas conexões intrínsecas
com o processo social e histórico.
Caetano é o artista
inconformista que fala de um lugar ambíguo no estatuto da cultura, sempre
disposto a minar convenções e embaralhar as cartas marcadas do alinhamento político
e estético automático.
DIFERENÇAS
As diferenças, que em tese
dificultariam o diálogo, parecem, no caso, potencializá-lo, pois embora
irreconciliáveis em pontos decisivos, são ambos esclarecidos e portanto
interessados na variedade e na diferença.
Schwarz vê em "Verdade
Tropical", especialmente nos dois primeiros blocos, "um excelente
romance de ideias". Tem em alta conta a autobiografia, que é também
"uma história do tropicalismo e uma crônica da geração à volta de
64". Compara o livro a outros congêneres ilustres, como "Itinerário
de Pasárgada" (1954), autobiografia intelectual de Manuel Bandeira ou
"O Observador no Escritório", de Drummond.
Os elogios estendem-se à
qualidade literária, além de aspectos como as "avaliações críticas ousadas
e certeiras", os "retratos perspicazes de colegas famosos" e o
domínio "em alto nível de um setor fundamental do presente, até então
pouco estudado". Não há dúvida de que o crítico acredita estar diante de
uma grande obra. E irá explorá-la com seu conhecido brilhantismo analítico e
vigilância política.
O ensaio ressalta dois momentos
da narrativa e da vida do personagem. O primeiro, em que o artista, com sua
índole peculiar, forma-se em sintonia com as exigências de modernização e
mudança social do país. O segundo, quando passa por um processo de reavaliação
ideológica depois de ter compreendido erroneamente o significado da "morte
do populismo" ao assistir a "Terra em Transe", de Glauber Rocha.
Schwarz refere-se criticamente
às considerações e consequências que Caetano teria extraído da cena famosa em
que o personagem Paulo Martins tapa a boca de um sindicalista e diz para o
público: "Estão vendo quem é o povo? Um analfabeto, um imbecil, um
despolitizado!".
Para o crítico, as conclusões
de Caetano "enxergavam oportunidades e saídas onde o filme de Glauber
desembocava em frustração nacional, autoexame político e morte".
O problema é que esses dois
Caetanos, que poderiam ser grosseiramente classificados de esquerda e de
direita, contrastam um com o outro no ensaio de Schwarz de maneira muitas vezes
esquemática e literal. No intuito, talvez, de compensar a bancada marxista por
deixar-se enfeitiçar pelo tropicalismo e seu herói, mesmo quando sua atitude
"transgressora e libertária" já "rechaçava igualmente os
establishments da esquerda e da direita", Schwarz move-se segundo uma
dialética de elogio e reprimenda.
Vai do samba exaltação à
"protest song", do entusiasmo com Caetano e o tropicalismo a
acusações estudantis de adesão à direita e cobranças de posicionamento
ideológico --não falta nem mesmo o alerta de que é preciso "distinguir
entre antagonismos secundários e principais".
É assim que o ensaísta força a
mão, simplifica e supervaloriza alguns comentários e episódios para demonstrar
que Caetano teria deixado de ser "simpático à transformação social".
Ao mesmo tempo ignora ou
minimiza o fato de que àquela altura a experiência socialista concreta já havia
exposto os horrores de sua vocação totalitária, como atestava a didática e
simbólica Primavera de Praga.
CONTRAPESO
Embora possam parecer
relevantes, essas passagens, na realidade, são, em grande parte, o contrapeso
ideológico do texto, cheio de boas análises e ideias, no qual o ensaísta
retoma, aprofunda e aprimora aspectos de seu anterior e influente "Cultura
e Política 1964-1969".
Publicado na revista parisiense
"Les Temps Modernes", em 1970, e em livro em 1978, no volume "O
Pai de Família e Outros Estudos" (Paz e Terra) [edição atual: Companhia
das Letras, 184 págs., R$ 37], aquele ensaio obteve grande repercussão no
debate cultural da época, com destaque para a explicação que o autor arriscava
para o tropicalismo --o "esnobismo de massas" que teve em Caetano seu
grande protagonista.
Para o crítico, a estética
tropicalista extraía seu brilho da submissão de anacronismos do país patriarcal
e subdesenvolvido "à luz branca do ultramoderno, transformando-se o
resultado em alegoria do Brasil". O efeito era "estridente como um
segredo trazido à rua" ou "como uma traição de classe".
Ao justapor o arcaico e o
moderno, fórmula típica do tropicalismo produzia um absurdo que se fixava como
imagem do país. Na canção "Love, Love, Love", de 1978, o compositor
mencionou o ensaísta: "Absurdo, o Brasil pode ser um absurdo/Até aí, tudo
bem, nada mal/Pode ser um absurdo, mas ele não é surdo/O Brasil tem ouvido
musical/Que não é normal".
O tema é retomado agora, bem
como a tarefa de matizar e contextualizar o valor político do movimento, que,
no entanto, o crítico reconhece com todas as letras, ao contrário da nossa
"burritsia" de esquerda.
Por fim, é de notar também o
parentesco do ensaio sobre "Verdade Tropical" com um outro escrito
por Roberto Schwarz sobre Oswald de Andrade --"A Carroça, o Bonde e o
Poeta Modernista". Os paralelismos e inversões da fórmula poética
"fácil e eficaz" do antropófago e do tropicalista são um dos pontos
luminosos do texto.
sexta-feira, 13 de abril de 2012
Por dentro da Tropicália
Artigo de 29/10/2009
por Luciano Trigo – de O GLOBO
(G1)
Christopher Dunn analisa o
impacto do movimento na (auto)imagem do Brasil
Christopher Dunn |
Gosto de ler ensaios sobre a
cultura brasileira escritos por estrangeiros, porque às vezes o Brasil parece
mais claro e compreensível quando é visto por quem está fora do que por quem
está dentro. Talvez isso aconteça porque, nas análises domésticas, a opinião
muitas vezes prevalece sobre a pesquisa, e se dá mais importância ao estilo que
ao rigor. Por exemplo, acabo de ler Brutalidade Jardim – A Tropicália e o
surgimento da contracultura brasileira, do americano Christopher Dunn (UNESP,
280 pgs. R$37), que combina clareza e profundidade como raras vezes se vê nos
livros nacionais sobre o assunto. Mais que uma recapitulação
histórico-jornalística dos principais personagens e episódios da Tropicália,
Dunn, professor da Tulane University, onde dirige o Brazilian Studies Council,
investiga as raízes, as contradições e os desdobramentos do movimento que teve
um impacto profundo na imagem que temos (e que os outros têm) do Brasil.
“Brutalidade Jardim” é um verso da música Geléia Geral, de Gilberto Gil, tirado
das Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. O livro de
Christopher Dunn tem prefácio de José Celso Martinez Corrêa.
- Que relação você estabelece
entre a Tropicália e a Semana de Arte Moderna de 22?
CHRISTOPHER DUNN: A Semana de
22 foi um marco importante da tradição cultural e intelectual de se “pensar o
Brasil” e, portanto, pode ser vista como uma das várias raizes da Tropicália,
sobretudo a antropofagia de Oswald de Andrade.
- A ditadura foi um dos
períodos mais criativos no Brasil, em termos de música, cinema e teatro. A
tensão política pode tornar a cultura mais interessante?
DUNN: Não necessariamente. O
Brasil teve também um período de muita criatividade no final dos anos 50,
durante a euforia do desenvolvimentismo democrático de Kubitschek. Foi quando
surgiram a Bossa Nova, a poesia concreta, o neoconcretismo, o Cinema Novo, os
teatros Arena e Oficina, toda aquela efervescência cultural na Bahia ligada à
Universidade da Bahia, a construção de Brasília etc. Viver sob uma ditadura tornou-se
um tema de extrema importância durante o regime militar, mas a criatividade
floresceu apesar, e não por causa, da repressão. As tensões sempre existem,
mesmo quando uma sociedade tem liberdades democráticas, porque sempre
permanecem contradições e conflitos. Nesse sentido, o momento atual no Brasil
pode ser considerado bem interessante de ponto de vista da criação artística. O
momento tropicalista foi particularmente criativo, porque houve um diálogo
muito intenso entre artistas de vários campos, algo que é sempre possível.
- Os tropicalistas debochavam
das imagens fantasiosas do Brasil e, ao mesmo tempo, a influência crescente dos
meios de comunicação de massa e a mentalidade consumista. Mas, no final das
contas, essas imagens e essa mentalidade não sobrevivem?Em outras palavras, a
contracultura não foi derrotada?
DUNN: Os tropicalistas
brincaram com as imagens absurdas do Brasil, algo que incomodou o crítico
Roberto Schwarz. Ele achava que o deboche podia até reforçar algumas das
contradições históricas do país, em vez de resolvê-las dialeticamente. Alguns
anos depois, Caetano respondeu ao crítico na música “Love, love, love” dizendo
que o Brasil “pode ser um absurdo, mas ele não é surdo/ o Brasil tem um ouvido
musical que não é normal.” Outra pessoa muito atenta a essas imagens absurdas
do Brasil é o grande diretor Zé Celso Martinez Correa, cuja produção, em 1967,
de O rei da vela, de Oswald de Andrade, revolucionou o palco brasileiro e teve
uma influência profunda nos baianos. A idéia básica da Tropicália era ressaltar
o absurdo, a contradição em si, sem propor uma solução, justamente para
incomodar o público. O perigo, para Schwarz, era que essas imagens,
essencialmente irônicas e carnavalescas, passando pela estética do kitsch,
podiam ser consumidas de forma acrítica e celebratória, à maneira do Chacrinha.
Hélio Oiticica também se incomodava com o que chamou de “celebração das
bananas”, que ele via como uma deturpação da idéia original da Tropicália, que
procurava lidar criticamente com o “problema” da imagem — aliás, The Image
Problem é o título de um texto que ele escreveu em inglês. É verdade, que essa
vertente pop-kitsch teve mais ascendência que a vertente
construtivista-vanguardista do Hélio, pelo menos naquele tempo. Nesse sentido,
as canções tropicalistas tinham mais em comum com as obras de artistas
plásticos como Rubens Gerchman, que lidava mais com imagens “popularescas” e
com a estética do kitsch. Por outro lado, as performances aproximavam Hélio no
sentido de criar um “ambiente total” de imagem e som, como ele próprio afirmou
em um texto de 1968. Devemos lembrar que os músicos tropicalistas, sobretudo
Caetano Veloso e Gilberto Gil, não “criticavam” tanto assim o consumo e a
mídia, nem em sua forma “chacrinesca”. Eles queriam fazer sucesso, cantar na
televisão, fazer pop music. Se entendemos por contracultura uma atitude
anti-consumo, então a contracultura de fato “perdeu”, mas acho que a
contracultura teve outras facetas, inclusive facetas que dependiam do consumo
de novos estilos e produtos culturais. Nesse sentido, a contracultura é
ambígua.
- Na música, a Tropicália não
trouxe exatamente um gênero novo, mas reprocessou elementos do passado. Você
concorda?
DUNN: Sem dúvida. Em termos de
música, os tropicalistas nunca propuseram um novo estilo, como a Bossa Nova, e
muito menos um novo gênero musical, como o samba. A proposta era de fazer
samplings e justaposições de vários estilos e gêneros musicais oriundos não
somente do Brasil, mas também da Hispano-América, sobretudo Cuba, e do mundo
afro-anglo do rock e do soul.
- Não é estranho que muitos
artistas da Tropicália, um movimento que desafiava o establishment, tenham se
tornado bem-sucedidas estrelas internacionais, sendo, de certa forma,
absorvidos pelo sistema que combatiam?
DUNN: Não acho estranho. Muitos
artistas que surgiram nos anos 60 com uma proposta poliítica e/ou cultural de
contestação depois acharam caminhos profissionais dentro do “sistema”. É um
pouco ingênuo imaginar que Caetano e Gil deviam ter mantido uma posição de marginalidade
em relação ao sucesso artístico ou ao poder político. Até porque eles sempre
procuraram ter sucesso, mesmo agitando e desafiando os padrões da MPB naquele
tempo. Pode-se até criticar a atuação do Gil como ministro ou o disco mais novo
do Caetano, mas acho uma tolice criticá-los por terem alcançado posições de
destaque no cenário nacional e internacional.
- Tom Zé parece cativar mais os
estrangeiros que os próprios brasileiros. Além da divulgação feita por David
Byrne, que outros fatores explicam isso, já que muitos aspectos interessantes
de suas letras se perdem na tradução?
DUNN: Acho que de alguma forma
Tom Zé ajudou a transformar as expectativas do ouvinte norte-americano e
europeu em relação à música brasileira, que foi consumida por muitos anos como
um grande desdobramento da Bossa Nova, muito ligado ao mundo de jazz, ou então
como uma vertente tropical e latina da world music, termo muito criticado pelo
próprio David Byrne. Tom Zé abriu os ouvidos para uma tradição experimental e
vanguardista na música brasileira que havia passado despercebida – salvo
algumas exceções, como a música instrumental de Hermeto Pascoal, uma exceção
que confirma a regra porque a inserção internacional do Hermeto sempre se deu
através do jazz. A coletânea do Tom Zé organizada por David Byrne saiu em 1990
e preparou o terreno para a apreciação tardia da música tropicalista no
exterior. É verdade que muitos americanos não conhecem bem a música brasileira,
mas adoram a música de Tom Zé. A turnê americana com Tortoise, em 1999,
reforçou esta tendência. Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que o público
brasileiro de Tom Zé também cresceu muito, de lá para cá. Acho que ele merece
ainda mais reconhecimento, mas estamos longe daqueles tempos, nos anos 80,
quando seu público era de alguns estudantes e intelectuais paulistas.
- Esse fenômeno coincidiu com a
ascendência póstuma do Hélio Oiticica no mundo de artes plásticas?
DUNN: Sim, mas foram dois
processos diferentes. O último deveu-se em grande parte ao trabalho cuidadoso
da família Oiticica, de amigos-artistas como Luciano Figueiredo e do saudoso
Waly Salomão, além de críticos estrangeiros, como Guy Brett. Que eu saiba, a
primeira vez que se juntou um tropicalista musical com a obra do Hélio foi
quando Tom Zé tocou na abertura da retrospectiva no Walker Arts Center, em
Minneapolis, em 1993. Podia ter sido no Whitechapel Gallery, em Londres, em
1969, mas Caetano e Gil chegaram exilados alguns meses depois da famosa
exposição organizada por Guy Brett.
- O nome Tropicália veio de uma
exposição de 1967, de Hélio Oiticica. VocÊ soube do incêndio que destruiu boa
parte da obra do artista?
DUNN: Sim, eu fiquei muito
abalado e triste com a notícia. É uma perda enorme, mas a obra maior de Hélio
foram suas idéias e projetos, que permancerão para sempre.
- “Brutalidade Jardim” é um
verso que capta a essência e a ambigüidade da Tropicála, que desmonta o
discurso do Brasil como paraído tropical, mas ao mesmo tempo é fascinada por
ele. Mas qual é a imagem do Brasil no exterior hoje? A meta de destruir a
imagem do jardim foi alcançada?
DUNN: Se a imagem do Brasil no
exterior enquanto jardim idílico foi destruída, não foi por causa dos
tropicalistas. A ironia tropicalista, que desmantelou a ideologia da
modernidade conservadora do regime, foi em grande medida para consumo interno,
durante a época da ditadura. Quando surgiu o interesse pela Tropicália no
exterior, ele passou mais pela questão formal, pelas novidades sonoras, do que
pela crítica subversiva ao regime e sua ideologia. Alguns anos atrás, Caetano
Veloso escreveu um artigo em tom freyreano, meio sebastianista, defendendo uma
nova utopia brasileira enquanto país mestiço de língua portuguesa. Mais tarde
Gilberto Gil afirmou que o Brasil “tinha lições a dar” para o mundo, quando
tomou posse como Ministro de Cultura. É claro que eles continuam também a fazer
músicas críticas ao quadro social, mas tendem a ver o Brasil com mais otimismo.
A destruição do “Brasil Jardim” se deve sobretudo ao narcotráfico e a violência
policial dos tempos atuais. Mesmo assim, acho a imagem do Brasil continua muito
positiva no exterior, o Lula é visto com muita simpatia, e os avanços
econômicos e sociais são cada vez mais reconhecidos. Mesmo quando esta imagem
passa pela chave do estereótipo, tende a ser algo positivo e alegre. A imagem
do Brasil como paraíso tropical permanece mesmo quando se sabe que não é
verdade.
TRECHO DE ‘BRUTALIDADE JARDIM’:
“O Festival de Música de 1968
da TV Record gerou o primeiro mal-entendido público entre o grupo tropicalista
e Chico Buarque. Foi divulgado que, durante a rodada final, Gilberto Gil vaiou
a música de Chico ‘Bem-vinda’, por ser ultrapassada. Apesar de Gil ter negado o
episódio, Chico reagiu com um artido discreto, criticando Gil e observando que
‘nem toda loucura é genial. nem toda lucidez é velha’. Os tropicalistas
menosprezaram o incidente com elogios ambíguos a Chico Buarque. Tom Zé, por
exemplo, disse com ironia: ‘Eu respeito o Chico. Quero dizer, tenho que
respeitá-lo. Afinal, ele é meu avô’. Por sua vez, Caetano negou qualquer
conflito entre ele e Chico, mas observou que ‘enquanto ele fala de
supernostalgia, eu falo de super-realidade’.”
quinta-feira, 12 de abril de 2012
A Semana de Arte Moderna de 1922
Um movimento entre a ruptura
estética e o valor do passado. Projeto de brasilidade do modernismo ainda era
incipiente na Semana de 1922
Suzana Velasco – do jornal O
GLOBO
O grupo organizador da Semana de Arte de 22 |
RIO - Falar em modernismo
brasileiro é mais do que localizar no país tendências artísticas de pretensões
universais. O brasileiro é a marca fundamental pela qual o movimento, aqui, se
garantiu modernista. Pensar no nosso modernismo é pensar no folclore do "Macunaíma"
(1928) de Mário de Andrade e da música de Villa-Lobos; na antropofagia de
Oswald de Andrade e do "Abaporu" (1928) de Tarsila do Amaral,
retomada pela Tropicália. Antes de tudo isso, até hoje o marco do movimento no
imaginário corrente é a Semana de Arte Moderna de 1922. Só que naqueles dias
13, 15 e 17 de fevereiro de 90 anos atrás, a ideia de brasilidade era apenas um
borrão. O Brasil ainda era sobretudo um país cujo atraso deveria ser superado —
mesmo que os "passadistas" a serem combatidos estivessem na plateia
do Teatro Municipal de São Paulo, representados pela elite cafeeira
financiadora da programação de artes, música e literatura da Semana, no ano do
centenário da independência.
Em "A brasilidade
modernista: sua dimensão filosófica" — que, publicado originalmente em
1978, será reeditado em março pela Móbile —, Eduardo Jardim trata de dois
tempos do modernismo brasileiro. Segundo ele, a partir de 1917, havia uma
preocupação imediatista com a inserção na ordem moderna internacional, com uma forte
ideia de ruptura, norteadora da Semana de 1922. Já a partir de 1924, molda-se
um caminho construtivo para essa inserção, o da particularidade nacional — e
então a tradição cultural brasileira passa a ter valor.
— No primeiro momento, a
oposição de modernismo e passadismo é muito clara — afirma Jardim. — A
discussão era como modernizar a produção cultural brasileira pela absorção de
recursos expressivos modernos. Em 1924, já se percebe que essa perspectiva não
vai funcionar, e que se pode assegurar a entrada numa ordem universal por uma
mediação dos traços nacionais. Esses traços perduram ao longo do tempo, como o
folclore. Isso faz com que a ideia de ruptura seja revista.
Professor de Filosofia da
PUC-Rio, Jardim coordena a coleção Modernismo +90, da Casa da Palavra, que terá
11 livros sobre os desdobramentos do movimento em diversas áreas da cultura. Em
15 de março, serão lançados os dois primeiros: "Olhares sobre o moderno —
Arquitetura, patrimônio e cidade", com textos e entrevistas do arquiteto
Ítalo Campofiorito; e "Semana sem fim — Celebrações e memória da Semana de
Arte Moderna de 1922", em que Frederico Coelho analisa a visão desse marco
cultural ao longo do tempo, entre o mito, a crítica ponderada e a condenação.
— Em 1924, numa longa viagem
pelas cidades históricas de Minas, Oswald, Mário e Tarsila veem o barroco
mineiro, e todos falam da importância disso para suas pesquisas — conta Coelho,
professor de Literatura da PUC-Rio. — Por que essa viagem não foi considerada o
marco do modernismo? Existe um modelo de análise que vem dos manifestos e
movimentos de vanguarda europeus, e que a Semana seguiu. Mas isso não quer
dizer que ela não teve importância.
Mistura de interesses se
refletiu na programação
O "primeiro momento"
do modernismo — que Mário de Andrade, em 1942, chamaria de "tempo
destruidor" — é contado pelo jornalista Marcos Augusto Gonçalves em
"1922 — A semana que não terminou", que a Companhia das Letras lança na
próxima sexta, dia 10. Numa reportagem de cunho histórico, ele explora a rede
de relações que culminou na Semana, inaugurada com uma exposição de artistas
como Victor Brecheret, Di Cavalcanti e Anita Malfatti.
Depois de estudos em Berlim e
Nova York, Anita abrira em 1917 — ano que Jardim usa como início desse primeiro
tempo — a primeira mostra no país a se autodenominar moderna, que entrou para a
História pela crítica feroz de Monteiro Lobato. O escritor condenou aquela
"arte caricatural" tipicamente europeia, vinculando-a à perturbação
mental. Já para Oswald, sua pintura causava "impressão de originalidade e
de diferente visão". Mais do que por características próprias, naquele
momento a obra era moderna sobretudo por ser diferente — e essa diferença ainda
era, em grande medida, representada pelo que se criava lá fora.
Teatro Municipal de São Paulo em 22 |
Lobato defendia um caminho
próprio para a arte brasileira — e o "moderno" era sinônimo de
estrangeiro. Seu nacionalismo se voltava para o mundo rural paulista,
representado por artistas como Almeida Júnior (1850-1899), mas a São Paulo que
se projetava na jovem República era a cidade industrial, do progresso. As
contradições desse momento são bem representadas no livro de Gonçalves por
encontros como o do restaurante Trianon em 1921, em homenagem a Menotti del
Picchia, com "homens das finanças, jornalistas, poetas e escritores da
velha e da jovem guarda". Ali, Oswald exaltou o "tumulto egoísta e
inteligente de São Paulo" e vociferou contra os "formalistas negados
e negadores", num discurso que, mantendo o tom antiquado desses mesmos
formalistas, foi aplaudido por eles.
— O projeto da Semana se
inscrevia num projeto maior de projeção de São Paulo no plano intelectual — diz
Gonçalves. — São Paulo, que rapidamente passou de vila colonial a cidade
grande, já tinha um poder econômico definido e lançava suas ambições culturais.
Havia um setor esclarecido dessa elite, que valorizava a independência
proclamada na cidade e o mito do bandeirante paulista. Isso cabia bem a uma
cidade mais provinciana, buscando se afirmar.
Teatro Municipal de São Paulo hoje |
A mistura de interesses se
refletiu na Semana, que, encapada por um discurso revolucionário, ainda
misturava a arte "acadêmica" e as experimentações. Com grande
improviso, o evento foi pensado também por homens vinculados a círculos mais
tradicionais, como o diplomata e escritor Graça Aranha e o investidor Paulo
Prado, que assegurou a realização do evento. A Semana teve a pianista Guiomar Novaes tocando Debussy e a
música inovadora de Villa-Lobos, com 20 composições, vaiadas e aplaudidas; os
trechos do primeiro romance de Oswald, de linguagem ainda convencional, e a
leitura do poema "Os sapos", de Manuel Bandeira, causador de reações
inflamadas; a conferência morna de Graça Aranha e o discurso triunfalista de
Menotti del Picchia, uma ode a "motores, chaminé de fábricas, sangue,
velocidade, sonho".
Tarsila do Amaral, que se tornaria símbolo do modernismo, estava em Paris, e
voltou ao Brasil em junho de 1922.
Nos anos 1980, críticas à
centralidade dada à Semana
Passeando pela imprensa do
século XX, Frederico Coelho nota como o mito de uma Semana divisora de águas na
cultura se consolidou nos anos 1970, quando o modernismo foi celebrado tanto
pela esquerda quanto pelo governo da ditadura, pela valorização da identidade
nacional. Nesse momento, a ideia de antropofagia trazida pelo Manifesto
Antropófago e pelo "Abaporu" de Tarsila, ambos de 1928, tinha sido
levada a sua máxima potência com o tropicalismo, na arte de Hélio Oiticica, no
teatro de José Celso Martinez Corrêa, na música de Tom Zé, Mutantes, Caetano e
Gil.
Três décadas antes, conta o
pesquisador, a revista "Dom Casmurro" decretara a morte do
modernismo, em 1942, ideia reforçada três anos depois com a morte de Mário de
Andrade e o fim do Estado Novo. Uma reflexão menos dicotômica se deu nos anos
1980, quando pesquisadores passaram a questionar a excessiva centralidade dada
à Semana no modernismo, sem decretar sua morte. Foi um momento marcado pela
crise do ideal universal de progresso — que norteou o movimento mesmo quando
ele se voltou para traços do passado nacional em seu projeto de brasilidade,
como lembra Pedro Duarte, professor de Filosofia da UniRio, que prepara "A
palavra modernista: vanguarda e manifesto" para a coleção Modernismo +90.
— No modernismo, questiona-se a
forma pela qual o Brasil vai se inserir no Ocidente, ao qual ele pertence, mas
de um modo próprio — afirma Duarte, que vê a presença de um pensamento
modernista no Brasil até os anos 1970. — O discurso de Caetano no Festival da
Canção de 1968 talvez seja um dos últimos manifestos modernistas, com o
enfrentamento do público, a ligação entre arte e política, a colocação de uma
primeira pessoa do singular, tudo sob o título de "é proibido
proibir", um grito de liberação de cânones e preconceitos que me parece
típico dessa modernidade.
terça-feira, 10 de abril de 2012
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quinta-feira, 5 de abril de 2012
Mergulho na Torre do Tombo
A meca dos historiadores
brasileiros é um edifício moderno que abriga, desde 1990, o arquivo da Torre do
Tombo, em Lisboa. Nos seus 140 quilômetros de prateleiras há documentos que
recuam até o ano 882.
Texto Maria da Paz Trefaut – da
revista PLANETA – edição 472
A nova sede da Torre do Tombo, na Cidade Universitária de Lisboa. No detalhe, duas das gárgulas criadas pelo escultor José Manuel Aurélio, que sobressaem da fachada. |
Em um prédio modernista de
formas retilíneas, na Cidade Universitária de Lisboa, Portugal preserva parte
expressiva da sua história, do Brasil e de suas ex-colônias. Ali funciona a
Torre do Tombo, onde estão guardados os originais de documentos preciosos como
a carta de Pero Vaz de Caminha sobre o “achamento” do Brasil e o Tratado de Tordesilhas,
celebrado em 1494 entre portugueses e espanhóis.
Com uma área de 54.900 metros
quadrados, o espaço reúne três áreas: arquivo e investigação, eventos culturais
e setor administrativo. Milhares de volumes se espalham por quatro pisos com
capacidade para 140 quilômetros de prateleiras. Aí estão mil coleções
documentais de origem pública e privada e 50 coleções de documentos relevantes
para o estudo da história comum dos países colonizados por Portugal: Brasil,
Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste
e as possessões de Macau (China), Goa, Damão, Diu e Cochim (Índia).
O edifício foi aberto ao
público em 1990, pondo fim a séculos de romaria do arquivo por sedes
improvisadas – mas não se parece em nada com uma torre. A Torre do Tombo
original ruiu no terremoto que destruiu Lisboa parcialmente, em novembro de
1755. Parte da documentação foi recolhida dos escombros e guardada num barraco
de madeira, construído por ordem do Marquês de Pombal. Mas só em 1901 o acesso
público aos documentos começou a ser liberado a pesquisadores.
Algumas peças de extremo valor,
como a carta escrita por Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Cabral, em
1500, ao rei Dom Manuel I, não estão disponíveis para conferência. O arquivo
não é um local de turismo, mas de pesquisa acadêmica e profissional. O
documento escrito por Caminha está no cofre-forte e não vai para a sala de
leitura, mas já foi digitalizado. Só aparece em exposições especiais, como a
que comemorou os 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, em abril de
2000. “É uma peça que sai daqui sempre cercada de muito cuidado, pois precisa
de controle constante de umidade e temperatura”, explica o diretor-geral da Torre
do Tombo, Silvestre Lacerda.
Peregrinação histórica
Muitos historiadores
brasileiros frequentaram a antiga sede do Arquivo Nacional, antes da sua
transferência para o prédio novo. De 1861 até 1990, os arquivos funcionaram
numa ala do Mosteiro de São Bento, no bairro da Estrela, em um anexo da
Assembleia da República, o Parlamento português. Ali fizeram pesquisas autores
antigos e modernos como Capistrano de Abreu, Fernando Novais, Evaldo Cabral de
Mello, Carlos Guilherme Mota, Luiz Felipe de Alencastro e muitos outros.
As antigas salas de pesquisa da Torre, no Mosteiro de São Bento. |
O jornalista Alberto Dines
conheceu as duas sedes, a antiga e a nova. Entre 1988 e 1989 passou um ano indo
ao mosteiro todos os dias, pesquisando para o livro Vínculos do Fogo – Antônio
José da Silva, o Judeu, e Outras Histórias da Inquisição em Portugal e no
Brasil, editado em ambos os países. O personagem em questão foi uma das mais
famosas vítimas da Inquisição portuguesa, e a Torre do Tombo guardava um
material inestimável sobre ele. “As condições de trabalho eram precariíssimas.
Havia apenas 12 mesas e era preciso chegar muito cedo ao arquivo para reservar
uma pesquisa”, relembra.
No fim dos anos 1980 os
documentos ainda não estavam digitalizados. “Era preciso pedir os antigos
‘ficheiros’ (pastas) e romper a barreira da compreensão entre portugueses e
brasileiros para encontrar o que se queria. Aí, quando você abria, os bichinhos
do papel vinham junto”, conta Dines. “Mas havia um grande prazer no manuseio
físico, em pôr as mãos no documento.” O jornalista vasculhou 300 processos
inquisitoriais em busca frenética, com pequenos intervalos para almoço, na
lanchonete da Torre, onde o cardápio não ia além de sanduíches “de péssima
qualidade”.
A historiadora Lilia Schwarcz pesquisou no arquivo em 2001. |
Quando o arquivo foi
transferido para o prédio moderno, na Cidade Universitária, a situação mudou do
dia para a noite. “Em 1991, passamos a ter condições de primeiríssimo mundo.
Mas ainda sinto saudade do antigo, onde, literalmente, botava a mão na poeira
da história. Foram alguns dos anos mais felizes de minha vida, nos quais
vivenciei um prazer intelectual imenso”, rememora Dines.
Fora do mundo
Já a historiadora Lilia Moritz
Schwarcz frequentou apenas as novas instalações na Cidade Universitária, entre
2000 e 2001, quando reunia material para escrever A Longa Viagem da Biblioteca
dos Reis, editado pela Companhia das Letras. Nos dias que passou no arquivo
guardou a imagem da Torre do Tombo como uma superbiblioteca que oferece ótimas
condições para pesquisa. “É muito silenciosa, as mesas são espaçosas e cada um
tem sua lâmpada. É o paraíso para qualquer pesquisador”, afirma.
Silvestre Lacerda Diretor Geral da Torre do Tombo |
Lilia estava mergulhada no
passado num dia marcante da história contemporânea: 11 de setembro de 2001.
“Estava absorta e, como todos, meio fora do mundo e sem comunicação. Nesse dia
descobri um documento importantíssimo para a minha pesquisa, algo que só um
historiador acha relevante. Supunha-se que a biblioteca real tinha vindo com
Dom João VI para o Brasil, em 1808, e, naquela tarde, descobri um documento que
provava que os caixotes tinham ficado no cais de Lisboa. A biblioteca chegou a
ser dada como perdida.”
Ao sair da Torre, onde ficara
todo o dia sem almoçar, especulando sobre o passado, Lilia percebeu várias
ligações do marido, Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, registradas
no seu celular. “Quando liguei de volta, a primeira pergunta dele foi: ‘Você
viu?’ Eu estava tão imbuída da descoberta que respondi: ‘É mesmo, os documentos
não partiram.’ Só diante da perplexidade dele fiquei sabendo do ataque às
Torres Gêmeas, em Nova York, que mobilizava o mundo.”
Capa do livro de bens do Mosteiro de Seiça. |
A história da Torre do Tombo
remonta ao século 13, mas só aparece documentada em 1378, ano em que o Arquivo
Real foi instalado numa das torres do Castelo de São Jorge – cujas ruínas ainda
são referência na paisagem lisboeta. Essa é a origem do nome Torre do Tombo.
Ali permaneceu até o terremoto de 1755. Na época, era chamada de “Torre das
Escrituras”, porque guardava as memórias dos reis e do reino. Esses documentos,
que fazem parte do Arquivo da Casa da Coroa, são classificados, hoje, pela
Unesco como parte do registro da “Memória do Mundo”.
Carta do rei Dom Afonso Henriques, de 1129, na qual surge a palavra “Portugal” |
Sucessivos reinados e governos
mudaram seguidamente a hospedagem do arquivo, que atravessou a história de
Portugal como uma das suas instituições mais antigas – são 600 anos de
existência. No reinado de Dom Manuel I, “o Venturoso”, foram elaboradas cópias
de diversos documentos de difícil leitura, que estavam em mau estado de
conservação. Com o tempo, papéis de instituições extintas foram incorporados ao
patrimônio da casa. No século 19, a documentação que provinha dos cartórios das
igrejas e das corporações religiosas também entrou na Torre.
Gênese da língua
Assim, a partir de 1862, o
arquivo passou a deter a documentação mais antiga de Portugal, originária do
século 9. Seus papéis testemunham vivências e acontecimentos anteriores à
fundação da nacionalidade portuguesa, muito valorizados pelos linguistas como
fonte de estudo das origens da língua portuguesa e da escrita visigótica,
utilizada na Península Ibérica do século 8 ao 13.
A Torre do Tombo guarda, por
exemplo, um ofício de 28 de julho de 1129 no qual se registra pela primeira vez
a palavra “Portugal”. Seu documento mais antigo é a carta de fundação da Igreja
de Lardosa, nas proximidades da cidade do Porto, datada de 27 de junho de 882.
É claro que muita coisa se perdeu, pois o acervo foi prejudicado não só pelo
grande terremoto, mas por diversos incêndios e, ainda, pela atabalhoada
transferência da família real para o Brasil, em 1808, fugindo dos exércitos de
Napoleão.
Ao longo do tempo, o arquivo
histórico esteve subordinado a diferentes ministérios e instituições e passou
por problemas de manutenção, sucessivas crises econômicas e falta quantitativa
e qualitativa de pessoal especializado. Só a partir dos anos 1960 os cuidados
com o acervo e os serviços prestados à sociedade ganharam relevância e
profissionalismo. Nessa época iniciaram-se a ampliação da microfilmagem de
fotografias e livros, as visitas organizadas de estudo e as exposições de
documentos raros.
Com a modernização, muitos
documentos em formato de livro, caderneta ou “ficheiro”, como dizem os
portugueses, vêm sendo digitalizados. Hoje, o catálogo da torre apresenta
contínuo crescimento e as ferramentas da internet foram agregadas de forma a
permitir o acesso a uma porcentagem cada vez maior da documentação. Já existem
muitos papéis importantes disponíveis para download. Para quem quiser dar uma
olhada, basta entrar no site www.antt.dgarq. gov.pt, acessar “Pesquisar na
Torre do Tombo”, depois a página “Fundos e Colecções” e boa viagem.
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