Artigo de 29/10/2009
por Luciano Trigo – de O GLOBO
(G1)
Christopher Dunn analisa o
impacto do movimento na (auto)imagem do Brasil
Christopher Dunn |
Gosto de ler ensaios sobre a
cultura brasileira escritos por estrangeiros, porque às vezes o Brasil parece
mais claro e compreensível quando é visto por quem está fora do que por quem
está dentro. Talvez isso aconteça porque, nas análises domésticas, a opinião
muitas vezes prevalece sobre a pesquisa, e se dá mais importância ao estilo que
ao rigor. Por exemplo, acabo de ler Brutalidade Jardim – A Tropicália e o
surgimento da contracultura brasileira, do americano Christopher Dunn (UNESP,
280 pgs. R$37), que combina clareza e profundidade como raras vezes se vê nos
livros nacionais sobre o assunto. Mais que uma recapitulação
histórico-jornalística dos principais personagens e episódios da Tropicália,
Dunn, professor da Tulane University, onde dirige o Brazilian Studies Council,
investiga as raízes, as contradições e os desdobramentos do movimento que teve
um impacto profundo na imagem que temos (e que os outros têm) do Brasil.
“Brutalidade Jardim” é um verso da música Geléia Geral, de Gilberto Gil, tirado
das Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade. O livro de
Christopher Dunn tem prefácio de José Celso Martinez Corrêa.
- Que relação você estabelece
entre a Tropicália e a Semana de Arte Moderna de 22?
CHRISTOPHER DUNN: A Semana de
22 foi um marco importante da tradição cultural e intelectual de se “pensar o
Brasil” e, portanto, pode ser vista como uma das várias raizes da Tropicália,
sobretudo a antropofagia de Oswald de Andrade.
- A ditadura foi um dos
períodos mais criativos no Brasil, em termos de música, cinema e teatro. A
tensão política pode tornar a cultura mais interessante?
DUNN: Não necessariamente. O
Brasil teve também um período de muita criatividade no final dos anos 50,
durante a euforia do desenvolvimentismo democrático de Kubitschek. Foi quando
surgiram a Bossa Nova, a poesia concreta, o neoconcretismo, o Cinema Novo, os
teatros Arena e Oficina, toda aquela efervescência cultural na Bahia ligada à
Universidade da Bahia, a construção de Brasília etc. Viver sob uma ditadura tornou-se
um tema de extrema importância durante o regime militar, mas a criatividade
floresceu apesar, e não por causa, da repressão. As tensões sempre existem,
mesmo quando uma sociedade tem liberdades democráticas, porque sempre
permanecem contradições e conflitos. Nesse sentido, o momento atual no Brasil
pode ser considerado bem interessante de ponto de vista da criação artística. O
momento tropicalista foi particularmente criativo, porque houve um diálogo
muito intenso entre artistas de vários campos, algo que é sempre possível.
- Os tropicalistas debochavam
das imagens fantasiosas do Brasil e, ao mesmo tempo, a influência crescente dos
meios de comunicação de massa e a mentalidade consumista. Mas, no final das
contas, essas imagens e essa mentalidade não sobrevivem?Em outras palavras, a
contracultura não foi derrotada?
DUNN: Os tropicalistas
brincaram com as imagens absurdas do Brasil, algo que incomodou o crítico
Roberto Schwarz. Ele achava que o deboche podia até reforçar algumas das
contradições históricas do país, em vez de resolvê-las dialeticamente. Alguns
anos depois, Caetano respondeu ao crítico na música “Love, love, love” dizendo
que o Brasil “pode ser um absurdo, mas ele não é surdo/ o Brasil tem um ouvido
musical que não é normal.” Outra pessoa muito atenta a essas imagens absurdas
do Brasil é o grande diretor Zé Celso Martinez Correa, cuja produção, em 1967,
de O rei da vela, de Oswald de Andrade, revolucionou o palco brasileiro e teve
uma influência profunda nos baianos. A idéia básica da Tropicália era ressaltar
o absurdo, a contradição em si, sem propor uma solução, justamente para
incomodar o público. O perigo, para Schwarz, era que essas imagens,
essencialmente irônicas e carnavalescas, passando pela estética do kitsch,
podiam ser consumidas de forma acrítica e celebratória, à maneira do Chacrinha.
Hélio Oiticica também se incomodava com o que chamou de “celebração das
bananas”, que ele via como uma deturpação da idéia original da Tropicália, que
procurava lidar criticamente com o “problema” da imagem — aliás, The Image
Problem é o título de um texto que ele escreveu em inglês. É verdade, que essa
vertente pop-kitsch teve mais ascendência que a vertente
construtivista-vanguardista do Hélio, pelo menos naquele tempo. Nesse sentido,
as canções tropicalistas tinham mais em comum com as obras de artistas
plásticos como Rubens Gerchman, que lidava mais com imagens “popularescas” e
com a estética do kitsch. Por outro lado, as performances aproximavam Hélio no
sentido de criar um “ambiente total” de imagem e som, como ele próprio afirmou
em um texto de 1968. Devemos lembrar que os músicos tropicalistas, sobretudo
Caetano Veloso e Gilberto Gil, não “criticavam” tanto assim o consumo e a
mídia, nem em sua forma “chacrinesca”. Eles queriam fazer sucesso, cantar na
televisão, fazer pop music. Se entendemos por contracultura uma atitude
anti-consumo, então a contracultura de fato “perdeu”, mas acho que a
contracultura teve outras facetas, inclusive facetas que dependiam do consumo
de novos estilos e produtos culturais. Nesse sentido, a contracultura é
ambígua.
- Na música, a Tropicália não
trouxe exatamente um gênero novo, mas reprocessou elementos do passado. Você
concorda?
DUNN: Sem dúvida. Em termos de
música, os tropicalistas nunca propuseram um novo estilo, como a Bossa Nova, e
muito menos um novo gênero musical, como o samba. A proposta era de fazer
samplings e justaposições de vários estilos e gêneros musicais oriundos não
somente do Brasil, mas também da Hispano-América, sobretudo Cuba, e do mundo
afro-anglo do rock e do soul.
- Não é estranho que muitos
artistas da Tropicália, um movimento que desafiava o establishment, tenham se
tornado bem-sucedidas estrelas internacionais, sendo, de certa forma,
absorvidos pelo sistema que combatiam?
DUNN: Não acho estranho. Muitos
artistas que surgiram nos anos 60 com uma proposta poliítica e/ou cultural de
contestação depois acharam caminhos profissionais dentro do “sistema”. É um
pouco ingênuo imaginar que Caetano e Gil deviam ter mantido uma posição de marginalidade
em relação ao sucesso artístico ou ao poder político. Até porque eles sempre
procuraram ter sucesso, mesmo agitando e desafiando os padrões da MPB naquele
tempo. Pode-se até criticar a atuação do Gil como ministro ou o disco mais novo
do Caetano, mas acho uma tolice criticá-los por terem alcançado posições de
destaque no cenário nacional e internacional.
- Tom Zé parece cativar mais os
estrangeiros que os próprios brasileiros. Além da divulgação feita por David
Byrne, que outros fatores explicam isso, já que muitos aspectos interessantes
de suas letras se perdem na tradução?
DUNN: Acho que de alguma forma
Tom Zé ajudou a transformar as expectativas do ouvinte norte-americano e
europeu em relação à música brasileira, que foi consumida por muitos anos como
um grande desdobramento da Bossa Nova, muito ligado ao mundo de jazz, ou então
como uma vertente tropical e latina da world music, termo muito criticado pelo
próprio David Byrne. Tom Zé abriu os ouvidos para uma tradição experimental e
vanguardista na música brasileira que havia passado despercebida – salvo
algumas exceções, como a música instrumental de Hermeto Pascoal, uma exceção
que confirma a regra porque a inserção internacional do Hermeto sempre se deu
através do jazz. A coletânea do Tom Zé organizada por David Byrne saiu em 1990
e preparou o terreno para a apreciação tardia da música tropicalista no
exterior. É verdade que muitos americanos não conhecem bem a música brasileira,
mas adoram a música de Tom Zé. A turnê americana com Tortoise, em 1999,
reforçou esta tendência. Ao mesmo tempo, devemos reconhecer que o público
brasileiro de Tom Zé também cresceu muito, de lá para cá. Acho que ele merece
ainda mais reconhecimento, mas estamos longe daqueles tempos, nos anos 80,
quando seu público era de alguns estudantes e intelectuais paulistas.
- Esse fenômeno coincidiu com a
ascendência póstuma do Hélio Oiticica no mundo de artes plásticas?
DUNN: Sim, mas foram dois
processos diferentes. O último deveu-se em grande parte ao trabalho cuidadoso
da família Oiticica, de amigos-artistas como Luciano Figueiredo e do saudoso
Waly Salomão, além de críticos estrangeiros, como Guy Brett. Que eu saiba, a
primeira vez que se juntou um tropicalista musical com a obra do Hélio foi
quando Tom Zé tocou na abertura da retrospectiva no Walker Arts Center, em
Minneapolis, em 1993. Podia ter sido no Whitechapel Gallery, em Londres, em
1969, mas Caetano e Gil chegaram exilados alguns meses depois da famosa
exposição organizada por Guy Brett.
- O nome Tropicália veio de uma
exposição de 1967, de Hélio Oiticica. VocÊ soube do incêndio que destruiu boa
parte da obra do artista?
DUNN: Sim, eu fiquei muito
abalado e triste com a notícia. É uma perda enorme, mas a obra maior de Hélio
foram suas idéias e projetos, que permancerão para sempre.
- “Brutalidade Jardim” é um
verso que capta a essência e a ambigüidade da Tropicála, que desmonta o
discurso do Brasil como paraído tropical, mas ao mesmo tempo é fascinada por
ele. Mas qual é a imagem do Brasil no exterior hoje? A meta de destruir a
imagem do jardim foi alcançada?
DUNN: Se a imagem do Brasil no
exterior enquanto jardim idílico foi destruída, não foi por causa dos
tropicalistas. A ironia tropicalista, que desmantelou a ideologia da
modernidade conservadora do regime, foi em grande medida para consumo interno,
durante a época da ditadura. Quando surgiu o interesse pela Tropicália no
exterior, ele passou mais pela questão formal, pelas novidades sonoras, do que
pela crítica subversiva ao regime e sua ideologia. Alguns anos atrás, Caetano
Veloso escreveu um artigo em tom freyreano, meio sebastianista, defendendo uma
nova utopia brasileira enquanto país mestiço de língua portuguesa. Mais tarde
Gilberto Gil afirmou que o Brasil “tinha lições a dar” para o mundo, quando
tomou posse como Ministro de Cultura. É claro que eles continuam também a fazer
músicas críticas ao quadro social, mas tendem a ver o Brasil com mais otimismo.
A destruição do “Brasil Jardim” se deve sobretudo ao narcotráfico e a violência
policial dos tempos atuais. Mesmo assim, acho a imagem do Brasil continua muito
positiva no exterior, o Lula é visto com muita simpatia, e os avanços
econômicos e sociais são cada vez mais reconhecidos. Mesmo quando esta imagem
passa pela chave do estereótipo, tende a ser algo positivo e alegre. A imagem
do Brasil como paraíso tropical permanece mesmo quando se sabe que não é
verdade.
TRECHO DE ‘BRUTALIDADE JARDIM’:
“O Festival de Música de 1968
da TV Record gerou o primeiro mal-entendido público entre o grupo tropicalista
e Chico Buarque. Foi divulgado que, durante a rodada final, Gilberto Gil vaiou
a música de Chico ‘Bem-vinda’, por ser ultrapassada. Apesar de Gil ter negado o
episódio, Chico reagiu com um artido discreto, criticando Gil e observando que
‘nem toda loucura é genial. nem toda lucidez é velha’. Os tropicalistas
menosprezaram o incidente com elogios ambíguos a Chico Buarque. Tom Zé, por
exemplo, disse com ironia: ‘Eu respeito o Chico. Quero dizer, tenho que
respeitá-lo. Afinal, ele é meu avô’. Por sua vez, Caetano negou qualquer
conflito entre ele e Chico, mas observou que ‘enquanto ele fala de
supernostalgia, eu falo de super-realidade’.”