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sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Artigo: O ensino/estudo por temas no Ensino Médio - uma experiência, algumas propostas.

                                                                       Marcos José de Souza*
O ensino na etapa final da educação básica vem se consolidando ao longo de sua formação em um amplo e profícuo campo de debates. Longe de desvalorizar a produção científica nacional vou me concentrar somente, nesse texto, nas nossas práticas cotidianas ao longo dos nossos 15 (anos) de exercício pedagógico no Ensino Médio, no âmbito da área de Linguagens, nas disciplinas LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA BRASILEIRA e REDAÇÃO.
Desde nosso primeiro ano de trabalho, no Colégio Estadual Luís Eduardo Magalhães, Fatima-Bahia, em 2001, desenvolvemos trabalhos paralelos denominados de projetos de estudo. O primeiro deles foi o EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO SEMIÁRIDO FATIMENSE. Anos mais tarde, criei o NA TRILHA D’OS SERTÕES. O primeiro durou aproximadamente 05(cinco) e, anos mais tarde, 2009, criei o segundo, cuja abrangência extrapola o universo escolar, sendo já aplicado junto a comunidade local e também no município de Cícero Dantas.
Ambos os projetos tinham como fonte, origem, o estudo do livro OS SERTÕES, de Euclides da Cunha. Partindo da leitura de trechos do livro, íamos ampliando nosso repertório informativo acerca do nosso universo social sob todos os aspectos: literário, histórico, religioso, botânico, geográfico, antropológico, político e social-sociológico.
Naquela oportunidade desenvolvíamos isoladamente no âmbito disciplinar, os enfoques mais “aproximados” de cada matéria de ensino dentro do tema proposto, EDUCAÇÃO AMBIENTAL NO SEMIÁRIDO FATIMENSE. O projeto não tinha um período definido e cada professor agia isoladamente
Numa tentativa de interdisciplinaridade, através da multidisciplinaridade, realizávamos as seguintes atividades:
1.     Viagens locais, a fim de conhecer nosso lugar: fazendas deste município e de vizinhos, como a serra do capitão, palco do livro Serra dos dois meninos de Aristides Fraga Lima, ed. Atica; outras mais distantes, a exemplo de Canudos, Monte Santo, Paulo Afonso, entre locais.
2.     Exibição de filmes a exemplo de Paixão e guerra no sertão de Canudos, de Antonio Olavo, um documentário que registra a presença de descendentes dos conselheiristas.
3.     Produção de cartazes e jornais informativos das mais diversas etapas dos estudos;
4.     Organização de seminários sub-temáticos com o protagonismo juvenil; e
5.     Resolução de provas no estilo tradicional, com perguntas subjetivas e objetivas baseadas nos textos utilizados durante o período de estudo.
O segundo projeto “nasceu” mais organizado, com estrutura definida, mas sem abranger o universo proposto por seu idealizador, que era o de se constituir como trabalho curricular da própria escola, independentemente do  profissional que assumisse ali suas funções.
Compreendendo ainda as disciplinas LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA BRASILEIRA (LPLB)e REDAÇÃO (RED.), ganhou a adesão de SOCIOLOGIA (SOC.) este segundo projeto foi inicialmente aplicado no município de Cícero Dantas para uma turma de professores radialistas e outros profissionais.
Somente no ano de 2013 o projeto ganhou espaço na escola onde trabalhamos, configurando uma unidade letiva de ensino junto as disciplinas acima indicadas.
De modo semelhante, mas não igual, quanto a execução do primeiro, o NA TRILHA D’OS SERTÕES tem conquistado os estudantes, o que atribuo às viagens a utilização de vários filmes durante a realização do projeto. Outro diferencial é o de que construímos uma feição própria para o projeto de estudo incluindo-o no calendário escolar e configurando-o como unidade letiva (nesses dois anos de execução a unidade usada foi a terceira). A série onde o trabalho acontece é o 3º ano, pois é com essa série que o autor desenvolve, desde o ano de 2001, as viagens denominadas por ele como Turismo pedagógico.
Inicialmente os estudantes são apresentados a proposta. Com a confirmação, passa-se à construção do plano de trabalho de modo coletivo, incluindo as leituras, as atividades avaliativas, as viagens, os filmes, entre outras possíveis indicadas pelo coletivo estudantil.
O mote é a leitura do livro Os Sertões, leitura obrigatória em todos os livros didáticos utilizados pelo professor nesses 15 anos de atividade de estudo no Ensino Médio, parte do chamado pré-Modernismo na Literatura brasileira.
O livro é exposto e os seus principais “personagens”, Antonio Conselheiro, a Guerra de Canudos e o próprio autor do livro são apresentados aos estudantes.
Agora de modo interdisciplinar, as atividades são desenvolvidas nas disciplinas sem maiores percalços, sendo a mola propulsora do cotidiano o referido livro de Euclides da Cunha. Por exemplo: em determinado dia de aula, o filme Guerra de Canudos, de Sergio Rezende, foi iniciado na aula de Redação, mas devido a sua longa duração, a aula de Sociologia será usada para dar continuidade a exibição da película sem que haja prejuízo para a classe.
Do mesmo modo, alguma atividade avaliativa fora iniciada na aula de Sociologia, poderá ser concluída na de Lingua Portuguesa. E por falar em avaliação, desde a tradicional prova de perguntas diretas, a produção de texto é uma constante, privilegiando a visão de mundo dos educandos.
De modo amplo como ficaria nosso ensino por temas no ENSINO MÉDIO?
A nossa ideia, ainda embrionária, é a de que a oferta de estudo no Ensino Médio fosse realizada através de temas, nos moldes de mine-cursos, com carga-horária delimitada, como embrionariamente vimos nos dois projetos acima mencionados e carentes de amadurecimento coletivo, seja com a presença de profissionais que atuam no setor pedagógico-curricular das escolas e das secretarias de educação, mas e principalmente com professores, professoras e estudantes.
A ideia é a de que cada escola, de modo coletivo, crie seus mine-cursos, mas sem abandonar as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio e as prerrogativas legais da Lei de diretrizes e bases da educação nacional. Assim teríamos um currículo de fato diversificado e possivelmente mais atraente ao jovem, por demais romantizado como protagonista, mas dificilmente a frente das decisões sobre aquilo que sempre disseram ser ele o principal interessado. Outra novidade seria a do trabalho em conjunto, isto é, qualquer mine-curso poderá ser ministrado por mais de um professor e os formatos dependeriam da ideia do/dos planejadores/professores.
Entretanto a carga-horária semanal de estudos deve ser obedecida e os projetos adequariam os seus trabalhos a determinadas exigências de horário e de duração, tendo em vista a sobrecarga de uns em detrimento da diminuição de trabalhos de outros.
Como vimos, não me propus a “dizer” muito sobre o que penso e aqui idealizo, por entender que a proposição exige o pensar e o repensar da própria coletividade envolvida em cada cantinho desse país. Desse modo cada currículo terá a “cara” de cada escola, a cara de cada lugar.
Texto não revisado pelo autor.
Fim de tarde anunciador de altas temperaturas
Fatima, ex-Monte Alverne, 25 de agosto de 2015.

*Atuando, por enquanto, no Colégio Estadual Eduardo Magalhães, graduado em Educação Física e Mestre em Educação, ambos pela Universidade Federal de Sergipe – 1992 e 1999, respectivamente. Colaborador do Cheio de Arte. 

Conto: O último bilhete

                                                                      Natã Santana
    
Um acontecimento dessa natureza sempre deixa a população abalada, ainda mais quando a cidade é pequena, daquelas onde o asfalto ainda não cobriu as ruas de pedras portuguesas. Já era de se esperar uma comoção generalizada, sendo a vítima tão jovem e a morte tão triste. Coube ao padre apenas algumas explicações vagas em nome de sua absolvição pública, mesmo que todo o povo já o houvesse tomado por culpado. Se existiu alguém, que por um instante, refletiu sobre a possibilidade de considerá-lo inocente na história, esse alguém foi o delegado Santoro, por assisti-lo aos prantos durante seu depoimento.
Dr. Benício Franco, como o chamavam em sua terra natal, era um homem lindamente arrasador: bonito, forte, alto e moreno. Um daqueles que vemos no mercado e logo nos pegamos imaginando-o na cama, ou pelado no banho. Mas aqui em Terra Branca, seu título de doutor era totalmente irrelevante, - para não dizer esquecido; Só os íntimos sabiam sobre sua profissão pré-celibato. Aqui ele era só Padre Benício, o melhor padre da região. O difícil é saber se esse último título lhe foi atribuído devido a seus incríveis sermões de domingo ou a sua beleza incomparável que arrancava suspiros das solteironas que fingiam ir à missa pela palavra.
Aos fins de semana, Benício se dedicava totalmente à paróquia. Organizava o mural da igreja, articulava o sermão, revisava a agenda de visitas e realizava a missa principal. A igreja era sempre lotada, o ofertório nem tanto, e os dois ventiladores novos eram falhos perante a fornalha que se formava no instante em que ele tomava seu posto no púlpito. Era um abanar de mãos e um sacudir de saias que muitas vezes faziam a igreja parecer um ântro de estímulo sexual.
Às terças e quartas o confessionário vivia lotado. Tinha dias, inclusive, nos quais se pegava fila para receber o perdão daquela voz gostosa que ecoava por trás dos pequenos buraquinhos na tela do confessionário; a maldita tela que bloqueava nossa visão dos mesmos lábios grossos e chamativos a pronunciar as penitencias. Benício era calmo, e procurava, ao menos nesses instantes, ser o mais breve possível para que menos gente se ajuntasse na fila. Foi numa dessas ocasiões que Brenda surgiu.
― Padre, estou muito envergonhada. Introduziu, ela.
― Não se reprima, minha filha. Todos somos pecadores.
     A voz dele a deixou em êxtase mais uma vez, e ela continuou:
― Eu sei, Padre. Mas meu pecado é realmente uma afronta a Deus... Sou apaixonada por um homem impossível. Desejo-o mais do que tudo, mesmo sendo de uma família correta. E já não sei se tenho controle sobre meu erro.
     Benício repensou um pouco suas próximas ponderações, e então as dirigiu:
― Filha, o desejo é parte da natureza humana; muitas vezes é até involuntário. Na consumação é que se encontra o pecado. Você já o consumou?
― Não, Padre.
― Então não há pecado. Afaste-se dele enquanto é tempo.
     Ela pensou em como sua mãe a arrastava para a missa todos os dias possíveis, e contrapôs: ― Receio que talvez não possa, nem queira, evitá-lo.
― Todos podem evitar o mal quando de fato queremos, minha fi...
― É o senhor, Padre. É você o motivo de meus orgasmos noturnos. Interrompeu ela, aflita.
     Benício sorriu com o canto da boca, e continuou a argumentar que não havia nada de errado com os desejos de Brenda. Ali mesmo ele reconheceu que pouco adiantaria uma conversa comum de aconselhamento no confessionário e despediu-a dizendo pretender revê-la novamente em outra situação.
     Durante a missa do próximo domingo, o sermão estava impecável como sempre; e como de costume, Brenda, em nenhuma palavra prestou atenção. Mantinha o olhar fixo sobre a expressão corporal de Benício, como se o estivesse devorando em segredo, porém, ele, guardava o olhar bem longe de sua direção. E assim o foi até o memento da hóstia.
     O pão não parecia muito apetitoso, e Brenda também não se importava tanto quanto sua mãe a ensinara, com a solenidade da ocasião. Dona Ermézia sempre a alertava sobre a importância de receber o “corpo de Cristo”: “Reze e mantenha o pensamento imaculado quando receber a hóstia, minha filha”.
     Quando ela se aproximou de Benício, pensava em tudo, menos no alerta de sua mãe. Imaginava a grandeza do corpo por baixo daquela batina cansada e a leveza das mãos a escolher as bolachinhas mal assadas. Ele, inteiramente atento ao que estava fazendo, guiou a pequena hóstia até a boca seca e sedenta de Brenda e antes que ela se virasse, gesticulou com os lábios um curto recado que foi claramente entendido por seu olhara atrevido: “não mastigue”.  Ela voltou para o banco, ao lado da mãe, e enquanto todos degustavam o sabor da massa fresca, permaneceu de boca fechada e quieta até o momento de oração.
     Assim que todos fecharam os olhos para dirigir suas preces, ela retirou a bolacha molhada, porém ainda intacta, da boca e lá estava a razão da recomendação de Benício: “9 horas, amanhã, atrás da paróquia”.
     Ela devolveu a bolacha à boca, engolindo-a com todas as letras borradas de saliva, levantou o olhar quando todos ainda se mantinham em reverência e sorriu para ele, que pela primeira vez na missa, a fitou sorrateiramente e devolveu, sem demora, o sorriso.
     Na noite do dia seguinte, a porta que dava acesso aos fundos da paróquia foi aberta pela décima-quinta vez desde que fora instalada, a pedido especial de Benício, e a conversa entre eles terminou no segundo cômodo do corredor que ficava atrás dela, no quarto do padre. Ali Brenda experimentou sua primeira sensação de liberdade e consumou, aos comandos do homem impossível, a realização de seu desejo carnal mais profundo.
     Benício era um homem como qualquer outro, tirando o fato de sua excêntrica formosura; não resistia a um belo par de pernas, e só não se perdia em sua libido com muita frequência porque as moças que frequentavam a missa, apesar de extremamente atraídas por sua figura, não eram tão atrevidas como Brenda. A partir daquela noite, eu, o coroinha mais velho da paróquia, deixei de exercer o papel de único objeto de satisfação sexual do padre.
     Logo, Dona Ermézia proibiu que Brenda se confessasse com tanta frequência. Não ficava bem para uma moça de família correta dar mostras de que cometia tantos pecados. Então eles estabeleceram um sistema de comunicação infalível que serviria tanto para marcar os novos encontros quanto para aumentar a estima dos fiéis em Benício. Ele distribuiu envelopes com a imagem de Nossa Senhora para que, pelo menos uma vez por semana, os fiéis escrevessem pedidos e os guardassem dentro do envelope, devidamente indentificado com o nome de quem desejava receber a graça. Ao final da missa, ele recolhia os envelopes alegando que dedicaria um tempo extra para rezar por aqueles pedidos e assim abençoá-los. Todos adoraram a ideia, principalmente Brenda, que passou a escrevê-lo todas as semanas.
     Os envelopes não eram tantos porque a igreja era pequena e nem todos participavam da nova dinâmica. Ele logo encontrava o envelope de Brenda, e assim que o lia já lhe deixava uma resposta. Para o trabalho de devolução dos envelopes eram requeridos os três coroinhas, dentre os quais eu estava, e nessa tarefa só havia duas recomendações: nunca abram os envelopes, e devolva-os com atenção impecável para que não errem seus donos. Meu sistema, então, foi bem mais simples do que o de Benício: sugeri que dividíssemos a entrega de acordo com o alfabeto. Eu devolveria os envelopes cujo nome do dono começasse com qualquer letra entre o A e o I, e os outros coroinhas se dividiam com o restante do alfabeto. Assim eu poderia ler todos os bilhetes que chegavam e iam para Brenda, porque desde muito cedo comecei a perceber que havia algo entre ela e Benício.
     Quase todas as semanas eles se encontravam, e ficaram tão íntimos que Benício chegou a copiar a chave da porta dos fundos da paróquia para que ele não mais a precisasse esperar. Já a aguardava no quarto, com aquela cueca azul e a mesma expressão de dominador que usava comigo antes de Brenda. Por diversas vezes eu a espreitava chegar ao fundo da paróquia com o mesmo ar temeroso e sedento de quem está prestes a abrir o baú do tesouro. Mas eu só a via por saber dos encontros. Ninguém mais passaria por ali àquela hora, para a felicidade dos imprestáveis. A casa paroquial ficava no final da rua, e atrás dela só havia uma estrada de terra beirando um campo escuro e arborizado.
     Minha frustração aumentava a cada dia. Sentia falta da companhia privada de Benício, que desde então passou a me evitar constantemente, sem ter ideia de que eu conhecia a razão pela qual havia deixado de ser interessante para ele. Mas sempre que o questionava, ele destruía mais de minhas expectativas, mas de mim próprio.
     Os bilhetes já não se detinham a horários e convites. Eram cartas de algo que eu nunca recebi dele, eram cartas de amor. Falavam da falta que um fazia ao outro, do quanto gostariam de viver livres – ela da família moralista, ele do celibato -, e até de como seria lindo se pudessem ter um filho juntos.
     Permaneci acompanhando-os em segredo e logo aprendi a odiá-los, mas ainda não tinha ideia do que fazer para desmascará-los. Mas não demorou muito até um dos bilhetes me obrigar a agir.
     Em uma das missas lotadas de domingo, lá estava mais um bilhete de Brenda. Este, porém, com uma mensagem bem mais perturbadora para mim. Ela dizia já ter se decidido a fugir com ele e que conversariam melhor sobre o assunto no próximo dia, quando voltaria para mais um encontro às escondidas. Eu fiquei atônito ao ler a palavra fugir, que para maior aflição, estava com o I pontuado com um coração perfeitamente equilibrado.
     Era óbvio que estavam loucos de amor e que não demorariam a irem embora pra sempre. Mas decidi, no mesmo instante em que a ultima lagrima me escorreu pela face, que aquilo não ocorreria e que já sabia o que fazer.
     Na noite posterior, peguei a antiga arma de papai, mesmo sem saber usá-la muito bem, e aguardei atrás do eucalipto mais próximo do muro que cercava a paróquia. A arma na mão direita; e na esquerda, uma corda de linho grosso e resistente que comprei naquela manhã.
     Quando Brenda surgiu em meio à escuridão das 09h35min daquela noite, meu coração disparou sutilmente, mas em nenhum momento pensei em retroceder com o plano. Não os deixaria fugir. Era tudo que martelava em minha consciência. Ela vestia uma seda branca e deixara metade dos cabelos soltos sobre os ombros. Usava uma capa azul-claro por cima do vestido e detinha a mesma expressão ansiosa e cautelosa de noites atrás. Parecia estar vestida e pronta para morrer.
     Eu a abordei com a arma apontada para seu peito esquerdo, e sem nenhum barulho excessivo, a obriguei a seguir em direção às árvores mais distantes pela estrada de terra. Ela chorava o tempo inteiro, mas em nenhum momento me comoveu, pois por sua causa eu também me rasguei aos prantos enquanto ela saboreava o prazer que nunca deveria ter deixado de ser meu.
     Eu a fiz várias perguntas e ali mesmo ela me confessou detalhes de tudo; desde o primeiro bilhete na hóstia, até os planos da fuga. E ambos chorávamos juntos – ela por medo de mim, e eu por raiva dela.
     Assim que lancei a corda sobre o galho mais baixo de uma das árvores debaixo das quais paramos, ela começou a entrar em desespero ainda maior e a me perguntar o que eu pretendia. Não respondi nada. Apenas a obriguei a escalar o tronco, que de tão deformado em nada dificultou a tarefa, e ameacei apertar o gatilho caso não me obedecesse. Em seguida, também subi, e ainda sob minha mira, ela mesma deu o nó em volta do pescoço. Eu só tive de empurrá-la. E o fiz sem dó alguma.
     O galho que escolhi não era tão alto, mas foi o suficiente para não deixá-la alcançar o chão. A morte foi trágica, porém piedosa. Em poucos segundos, algumas gotas de sangue escorreram pelo canto de sua boca e se depositaram entre os seios, e ali mesmo depositei o último bilhete.
     Logo que o corpo foi encontrado, o povo correu para a paróquia furiosamente, e Benício só não foi apedrejado porque o delegado o levou preso às pressas.
     A notícia foi avassaladora por todas as regiões em redor: uma moça jovem, bonita e de família correta se rendera ao suicídio, e tudo que deixara fora uma memória manchada e um bilhete preso aos seios que afirmava seu arrependimento por ter se deixado iludir por um padre promíscuo.
     Depois de meses acompanhando os bilhetes de Brenda, não fora difícil copiar suas letras de modo quase perfeito. Nem mesmo Benício foi capaz de duvidar que aquelas letras eram de fato dela.
     O primeiro bilhete Brenda comeu, e eu nunca o vi, mas o último fui eu que escrevi. 
Natã Santana é escritor natural de Heliópolis-Ba. Estuda Letras na Universidade Federal de Sergipe - UFS - e é colaborador do Cheio de Arte.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Dossiê Canudos (1): Viver e morrer em Belo Monte

O arraial de Conselheiro tinha hierarquias e personagens estratégicos para a rotina e para a guerra
                          *Walnice Nogueira Galvão
Canudos em 1897, antes da completa destruição (Litografia: D. Urpia)
Ao fim de uma série de protestos contra os novos impostos republicanos, enfrentando a polícia baiana em vários lugarejos, Antônio Conselheiro e seus prosélitos instalam-se em Canudos em 1893. A peregrinação de duas décadas chega ao fim. Eles vão entrincheirar-se e fortificar-se no fundo do sertão, no alto das serranias, como se tivesse soado um toque de recolher.
As terras em que ficava Canudos não eram desertas e ali já existia um povoado assim chamado, à margem do Vaza-Barris, um rio intermitente. Os conselheiristas se estabeleceram e sobreviveram de uma parca agricultura de subsistência, plantando mandioca para o preparo de farinha e cana-de-açúcar para a fabricação de rapadura, criando cabras. Assim se fundou o Belo Monte, nome bíblico dado à cidadela que ergueram como baluarte contra a República instaurada em 1889, sobrepondo-se à Canudos preexistente.
Em pouco tempo abriu-se uma rua principal na praça das igrejas, que ficou conhecida como a rua das Casas Vermelhas, destacando-se do conjunto devido à cor das telhas. As duas igrejas defrontavam-se de dois lados da praça. A primeira era a de Santo Antônio ou Igreja Velha, consagrada em 1893 com festas e foguetório. A segunda, a do Bom Jesus ou Igreja Nova, de maiores proporções, não chegaria a ser terminada. A capelinha do povoado anterior passou a ser chamada de Santuário, preservando o altar e abrigando imagens de santos. Num quartinho anexo morava Conselheiro, e ali seria sepultado.
Esse era o centro ao redor do qual, gradativamente, se ergueria a aglomeração de casebres. A construção em taipa ou pau a pique – barro reforçado com galhos – tornava a cidadela indistinguível, na mesma monotonia parda da caatinga. O conjunto, sem um mínimo de cuidados de urbanização – como arruamento, calçadas, esquinas e muito menos saneamento ou água encanada – viria a formar “um labirinto inextricável”, nas palavras de Euclides da Cunha.
Na vida cotidiana do arraial predominava a religião. Como de hábito no sertão e em geral no interior do país, era uma religião festiva, em contraste com a austeridade preconizada pelo líder, que não tolerava luxos ou abusos de conduta. Os habitantes organizavam suas vidas em torno de dois ofícios religiosos diários, à madrugada e à noitinha, e periodicamente assistiam aos conselhos do Peregrino, com data previamente marcada, para os quais vinha gente até de longe. Canudos tornou-se um centro de romaria, atraindo crentes para pedir audiência ao Conselheiro e fazer doações.
À medida que a guerra se avizinha, começa a acorrer gente de todos os quadrantes da região. Multiplicam-se as cartas dos canudenses chamando parentes e amigos para virem em seu socorro. Muita gente pelo sertão abandona seus pagos para acudir Canudos, carregando família e agregados.
Nem todos eram miseráveis no séquito: gente de posses havia se livrado de tudo para acompanhar o Peregrino. Embora não fosse uma comunidade exatamente igualitária – havendo distinção visível entre mais ricos e mais pobres, dada pela aparência das casas – preservavam-se ali traços de igualdade. O mais marcante era a inexistência de propriedade privada da terra. Quem chegasse podia erguer sua choça sem pagar nada a ninguém. Alimentos, roupas e dinheiro, recebidos em donativo pelo Conselheiro, eram repassados aos desafortunados.
Para que a comunidade fosse funcional, alguma estrutura era necessária. Seu Estado-Maior, por assim dizer, era a Guarda Católica. Constituída por 12 apóstolos, sobrepunha-se a tudo o mais porque formava o quadro de imediato apoio a Conselheiro. Os guardas andavam uniformizados, armados e municiados, e recebiam soldo. Revezavam-se como sentinelas defronte ao Santuário, onde ele residia. Em seguida vinha a Companhia do Bom Jesus ou Santa Companhia, bem mais numerosa, contando de 1.000 a 1.200 cabeças. Um grupo de beatas chefiadas por uma mordoma (Benta ou Tia Benta) cuidava da administração da residência e do bem-estar do Conselheiro. Ele quase não comia. Apenas o suficiente para manter-se vivo, mas observando total abstinência.
O arraial contava com uma professora, de modo a não descurar da educação das crianças. O próprio Conselheiro frequentara escola, sabendo ler, escrever e até rudimentos de latim. Um secretário, Leão Ramos, atendia ao líder como escriba. Havia um curandeiro, Manuel Quadrado, perito em remédios silvestres e em simpatias. E José Félix, o Taramela, servia de criado e homem de confiança, como chaveiro e guarda das igrejas. Tornou-se renomado por sua fantasia sem peias, que o levava a inventar casos mirabolantes sobre a subida aos céus de tantos canudenses mortos, que afirmava ter presenciado.
Como a rotina incluía a guerra, destacou-se um “chefe militar”: João Abade, encarregado supremo das operações bélicas e da Guarda Católica, chamado de Chefe do Povo e Comandante da Rua. Paralelamente, havia um “chefe civil”, Antônio Vilanova, abastado comerciante responsável pela boa ordem da comunidade.
Houve combatentes ilustres. Como o pernambucano Pajeú, salteador negro, famoso por sua imaginação tática ao elaborar ardis guerrilheiros. Pedrão, negro imponente e hercúleo, originário dali mesmo, da Várzea da Ema, era integrante da Guarda Católica e um dos 12 apóstolos.  O historiador José Calasans ainda o conheceu, nos anos 50, e com ele teve muitas conversas, que granjearam sua admiração. Inválido das pernas, observou certa vez: “Faz pena um homem como eu morrer sentado”. Antônio Beatinho ficou conhecido porque negociou a rendição de 300 pessoas, entre mulheres, crianças, feridos e velhos, nos últimos dias dos combates. É do resultado dessa negociação a mais famosa foto da guerra, mostrando a multidão andrajosa, doente e esquelética. Tanta abnegação foi recompensada pela degola.
Joaquim Macambira, que já residia em Canudos antes da chegada dos conselheiristas, possuía uma fazenda nas cercanias e era dono de loja. Seu filho e xará, com um punhado de valentes e as bênçãos do pai, tentou tomar a braços o canhão alcunhado de Matadeira, pertencente ao exército, tombando morto ali mesmo. É um dos episódios mais referidos da campanha, tendo despertado a admiração geral.
Também deixou lembranças o sineiro Timotinho, que desafiava o exército insistindo em tocar o sino da Igreja Velha todas as tardes, quando a fuzilaria das tropas inimigas se concentrava nele. Um dia, dois tiros de canhão acertaram a torre, que desmoronou, jogando o sino à distância e aniquilando o heroico sineiro.
Dentre os muitos artesãos que labutaram na arquitetura sacra do Conselheiro – que durante as duas décadas de peregrinação capitaneou a construção ou o reparo de igrejas, cemitérios, calçadas e açudes por toda aquela região – o nome mais importante que a história reteve é o de Manuel Faustino, mestre de obras e entalhador que presidiu aos trabalhos da Igreja Nova. Antônio Fogueteiro, como a alcunha indica, fabricava fogos, a que o povo do sertão em geral, e o de Canudos em particular, era muito afeiçoado.
Os dois irmãos Ciriaco, os combatentes negros Manuel e José, só se tornaram conhecidos décadas após o fim da guerra. Servindo de guia em Canudos ao historiador José Calasans (1915-2001), tornaram-se fonte de preciosas informações.
Na utopia que criaram, Antônio Conselheiro substituiu o fazendeiro, o padre e o delegado de polícia, reunindo em sua pessoa o poder das três autoridades que mandavam no sertão. Por trás de sua figura estava o esforço admirável que uma população carente de tudo desenvolveu para se organizar, resistindo à opressão e à exploração, além de inventar formas alternativas de vida em comum.
Com a guerra, o dia a dia do arraial foi totalmente degradado. Belo Monte, cujos habitantes passavam a vida em oração e penitência para “salvar a alma”, conforme diziam, foi transformado em antevisão do Inferno. Em vez do Paraíso a que todos aspiravam, com as promessas das bem-aventuranças da pregação cristã, aguardava-os o ferro e o fogo dos canhões, o incêndio do casario e a degola indiscriminada. 


*Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH-USP e autora de O império do Belo Monte. Vida e Morte de Canudos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. (Artigo publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional  - dezembro de 2014)

Dossiê Canudos(2):Todos perdemos

O Exército quase deixou de existir em Canudos, uma das campanhas mais sangrentas já travadas pelo Brasil, e contra brasileiros
                                  *Sandro Teixeira Moita
Infantaria do Exército atacando Canudos (foto: Flávio de Barros)
A ferocidade das batalhas foi a marca da Campanha de Canudos. E o Exército não estava preparado para a magnitude da tarefa. As tropas ainda sofriam com os efeitos das recentes Revolta da Armada (1893-1894) e Revolução Federalista (1893-1895), que consumiram muito da sua capacidade. O inimigo da vez era um religioso cheio de seguidores no interior baiano.
O fenômeno Antônio Conselheiro era acompanhado de perto pelos líderes políticos locais. Sua capacidade de arrastar multidões foi rapidamente identificada como uma forma de obter trabalhadores e votos. Os oponentes do governador da Bahia, Luiz Vianna, interpretaram sua falta de reação diante das andanças do Conselheiro como uma estratégia: sua intenção seria tê-lo como aliado nas eleições de dezembro de 1896. Para pressionar o governador, boatos foram espalhados por todo o interior, chegando rapidamente à capital, Salvador, dando conta de que Conselheiro planejava tomar cidades vizinhas.
Colocado em xeque, Vianna pediu ao governo federal homens do Exército, pois em governos anteriores, chefiados por rivais de Vianna, a Polícia Militar do estado já tinha travado várias ações infrutíferas contra os seguidores de Conselheiro A primeira expedição contra Canudos foi comandada pelo tenente Manoel da Silva Pires Ferreira, à frente de três oficiais e 104 soldados. A tropa seguiu de trem até Juazeiro e de lá marchou até Uauá, onde esperou pelo ataque dos homens do Conselheiro. A vila foi esvaziada pela população em pânico, e os sertanejos não demoraram a chegar: na alvorada de 21 de novembro de 1896, vieram armados com facões, lanças e armas velhas. Eram cerca de 500 homens contra os 104 de Pires Ferreira. A luta durou quatro horas, até que os seguidores do beato se retiraram, batidos pela defesa obstinada dos soldados.
Em relatório, o tenente Pires Ferreira listou uma série de empecilhos internos que teve de enfrentar: fuzis que esquentavam demais, fardas que se transformavam em farrapos e calçados que rapidamente desapareciam, deixando os soldados descalços nas longas marchas pelo sertão. Registrou também que tinham de dormir ao relento, pois não haviam sido fornecidas tendas. Seus alertas, no entanto, foram postos de lado pelas expedições seguintes, que acabaram enfrentando os mesmos problemas.
A segunda expedição foi preparada sob o comando do major Febrônio de Brito. Como reforço, foram convocados homens das unidades do Exército de Salvador, Aracaju e Maceió, além de 250 membros da Polícia Militar. Entre os armamentos, chegaram metralhadoras e dois canhões Krupp de 75 mm. Mas dificuldades logísticas afetaram os planos: com meios de transporte limitados, Febrônio deixou pelo caminho suprimentos que acabaram fazendo falta. Além dos jagunços, do ambiente hostil e do sol escaldante, havia agora um novo inimigo: a fome. Os sertanejos atacaram os soldados quando eles cruzavam a estrada do Cambaio, um dos montes que circundavam Canudos. Uma dura batalha se seguiu. O saldo de baixas militares foi de quatro mortos e 23 feridos, contra 115 dos conselheiristas. O monte foi conquistado, mas os soldados estavam exaustos e a comida tinha acabado. Mesmo assim a tropa foi em frente e, no dia seguinte, marchou na direção de Canudos.
O povoado era, de certa forma, imponente: mais de 5 mil casas em um terreno que parecia inconquistável. Os sertanejos não esperaram a aproximação dos soldados: tinham cercado a tropa de Febrônio durante a noite, e avançaram sobre os militares por todas as direções. O que era para ser ataque virou defesa, e cenas dramáticas se seguiram com sangrentas lutas corpo a corpo. Cada vez mais adeptos de Conselheiro chegavam. O major relatou ter sido atacado por mais de 4 mil inimigos. Dois dias de fome cobraram seu preço: só restava a retirada, e os militares a fizeram, com saldo de 10 mortos e 70 feridos. Entre os defensores de Canudos foram 300 mortos. A notícia da derrota foi pessimamente recebida no Rio de Janeiro. E o coronel Antônio Moreira César, que acabara de retornar de Santa Catarina após reprimir duramente os federalistas, foi convocado para liderar uma nova expedição. Rumou para a Bahia com batalhões de infantaria apoiados por cavalaria e artilharia. Além dos baianos, recebeu homens de outros estados do Nordeste, totalizando 1.281 combatentes.
Avançando rapidamente, Moreira César contornou os montes abrindo caminho na caatinga repleta de espinhos sob sol terrível. A tropa sofria com a falta de água e de alimentos. No dia 3 de março de 1897, os soldados conseguiram entrar no povoado. Unidades inteiras desapareceram entre as pequenas casas, e o coronel foi ferido duas vezes. A tropa se retirou quando o dia terminava. A agonia de Moreira César acabou de madrugada, quando faleceu. A notícia correu entre os soldados que, no início da manhã, começaram a se retirar em direção a Monte Santo, num movimento que logo virou fuga desorganizada. Os sertanejos se aproveitaram para executar os feridos e os militares que conseguiram capturar, decapitando-os. As cabeças foram colocadas nos caminhos para Canudos, como um aviso.
Derrota ainda maior, horror no Rio de Janeiro. O presidente Prudente de Morais (1894-1898) retornou da licença médica e se encarregou de mudar o ministro da Guerra, alçando ao cargo o marechal Carlos Machado Bittencourt. Ele organizou uma nova expedição, cuidando dessa vez de garantir o fluxo de suprimentos do Exército, uma das principais razões para as derrotas anteriores. A quarta e última incursão a Canudos foi liderada pelo general Artur Oscar, com duas colunas comandadas pelos generais João da Silva Barbosa e Cláudio do Amaral Savaget. O plano era que cerca de 5 mil soldados envolvessem Canudos e esmagassem o reduto apoiados por artilharia, em especial um canhão apelidado pelos jagunços de “Matadeira”.
O avanço da coluna de Savaget foi cuidadoso, mas sem saber esse grupo avançou contra a principal rota usada pelos sertanejos para levar boiadas e suprimentos para o arraial. Em 25 de junho foram travados os primeiros combates, e dois dias depois a frente principal, comandada por Barbosa e com o general Artur Oscar, tomou o Alto da Favela. No dia 28, um ataque dos conselheiristas fez com que as colunas se unissem, pois Barbosa tinha sido cercado. Sob ordens de Artur Oscar, mais de 1 milhão de balas foram disparadas contra os sertanejos naquele dia. O combate resultou em mais de mil baixas à expedição. Oscar estava sem suprimentos e dependia de comboios que nem sempre chegavam, pois os locais muitas vezes se apoderavam deles.
Em 14 de julho a tropa conseguiu estabelecer uma linha dentro do arraial. Mas não sem um altíssimo custo: 1.014 baixas, praticamente um a cada três homens. O número manchou a reputação de Artur Oscar, especialmente pela perda de oficiais. Batalhões que antes eram comandados por coronéis estavam agora sob as ordens de tenentes. A situação de desmanche impossibilitou novos ataques.
O impasse permaneceu até que novos reforços chegaram, no fim de agosto. No dia 1º de outubro teve início um novo ataque. A resistência foi enérgica. Mesmo sob forte bombardeio, o arraial não se rendia. Nos dois dias seguintes houve tréguas: cerca de 500 a mil sertanejos se renderam, entre mulheres, idosos e crianças. As investidas, porém, não cessaram: os jagunços eram desalojados com o uso de bombas de querosene e dinamite. O fogo se espalhou rapidamente no povoado, gerando um cenário de total destruição.
A batalha chegou ao fim no dia 5 de outubro. O número de mortos no arraial é desconhecido – a estimativa vai de 5.500 pessoas (segundo registro do tenente Macedo Soares) até 26 mil, cálculo baseado na média de cinco pessoas para cada uma das 5.200 casas do povoado.
O Exército também foi destroçado. Quase metade de seu efetivo tinha servido na campanha, que deixou 4 mil combatentes mortos no solo árido do sertão. O episódio foi marcante para a instituição, que nas décadas seguintes reavaliou seu papel na política brasileira. Desde então os militares buscaram incutir na sociedade a ideia de um organismo que era forte e preparado para os desafios que surgissem. Capaz também de driblar armadilhas que pudessem implodir suas estruturas, como aconteceu em Canudos. 


*Sandro Teixeira Moita é professor de história militar na Divisão de Preparação e Seleção da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). (Artigo publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional  - dezembro de 2014)

Dossiê Canudos(3): A mídia em campanha

Na defesa de interesses políticos e disseminando preconceitos, imprensa ajudou a construir o massacre anunciado em Canudos
                                *Dawid Danilo Bartelt 
O cadáver de Antônio Conselheiro (foto: Flávio de Barros)
“Há bons seis meses que por todo o centro desta e da Província da Bahia, chegado, (diz elle,) do Ceará, infesta um aventureiro santarrão que se apelida por Antonio dos Mares: o que, a vista dos aparentes e mentirosos milagres que dizem ter ele feito, tem dado lugar a que o povo o trate por S. Antonio dos Mares”. Publicada em novembro de 1874 em O Rabudo, um pequeno semanal editado em Estância, no Sergipe, esta foi, ao que se sabe, a primeira menção da imprensa brasileira a Antônio Conselheiro. Nos 23 anos seguintes, o personagem se tornaria a peça principal do grande acontecimento “Canudos”, que foi também um evento midiático nacional.
“Opinião pública” era algo muito limitado nos primeiros anos republicanos. Cerca de 85% da população eram de analfabetos e a mídia se restringia basicamente a veículos impressos (as rádios viriam a transmitir com regularidade no país apenas a partir de 1922). Isso significa que os iletrados, os escravos e boa parte da população rural ficavam à margem das notícias da imprensa, embora também incluídos na discussão pública através da cultura oral.
Para o pequeno grupo de indivíduos letrados existia uma grande variedade de jornais e revistas, de diferentes orientações ideológicas. Desde 1894 nos jornais baianos, e de forma rapidamente crescente nos jornais da capital nacional e de São Paulo, Canudos e Conselheiro não apenas provocaram notícias nas páginas principais como viraram título de colunas e motivo para versos de carnaval, sátiras e anúncios comerciais – como o desta loja de calçados de Salvador, já em 1897: “Por pessoas, recentemente chegadas de Canudos, ouvimos o seguinte: Que no último ataque, um grupo de valentes soldados, depois de ter esgotado a munição, lembrou-se de correr a pontapés os conselheiristas, confiados na resistência do calçado que foi comprado na popular casa O Monumento. Que feliz ideia!”.
Num tempo em que fotografias impressas em jornais eram raridade, o retrato desenhado do Conselheiro tinha valor de mercado – a figura de barba longa, túnica, sandálias e bengala era reconhecível mesmo sem o nome ao lado. Era já um signo, no sentido expresso por um oficial do Exército, em 1896: “Antonio Maciel, Antonio Conselheiro e Bom Jesus são três nomes distintos, mas, que um só deles basta para exprimir e concretizar o inimigo do regime atual, o pregador contra os princípios sacrossantos da lei, do trabalho e da moralidade”.
Mais do que uma “revolta” contra a República, Canudos foi um acontecimento útil para dois diferentes conflitos de poder nos tumultuados primeiros anos do regime. Com sua enorme capacidade de atração popular, o tamanho do seu mercado e seu potencial bélico, o arraial do Conselheiro desequilibrou os poderes políticos na Bahia, há tempos tensionados pela disputa entre o governador Luís Vianna e o dono das terras daquela região, José Gonçalves, aliado ao Barão de Geremoabo. Enquanto isso, na capital nacional, Canudos virava fator decisivo para outra competição acirrada: a luta entre os oligárquico-liberais, representando a elite cafeeira paulista, e os “jacobinos”, influenciados pelo pensamento desenvolvimentista-ditadorial de forte base militar. Vencer essa guerra era uma questão de sobrevivência política para o governo do paulistano Prudente de Morais. Era por isso, e não por constituir uma ameaça real à República, que o arraial tinha de ser completamente aniquilado.
A função “crítica” da imprensa se esgotava na defesa de posições partidárias dos proprietários, e não em prol da defesa de princípios constitucionais ou democráticos. Em Salvador, com uma população total de 200 mil habitantes (a grande maioria não alfabetizada), circulavam cinco grandes jornais. O Diário da Bahia e o Estado da Bahia eram gonçalvistas, enquanto o Correio de Notícias, o Jornal de Notícias e (com restrições) o Diário de Notícias apoiavam o governador Vianna. Depois que os seguidores do Conselheiro derrotaram as primeiras duas expedições de policiais e soldados contra eles, os jornais da oposição se engajaram numa produção de medo. Intensificaram a estratégia de criminalização aplicada desde 1893, ano da fundação do arraial, desencadeando uma verdadeira campanha, com a publicação de documentos – na sua grande maioria falsos – para “comprovar” repetidos ataques de canudenses a fazendas da região. Levantavam a suspeita de que o governador fazia de Conselheiro um aliado, usando-o para desestabilizar a região controlada por seus adversários.
A partir de março de 1897, no entanto, os dois campos políticos baianos viram-se encurralados juntos por um forte discurso vindo dos jornais do Rio e de São Paulo. As notícias da derrota da terceira expedição e da morte de seu líder, o famoso “herói” coronel Moreira César, causaram pânico nas capitais. No sul, os jornais reforçaram o discurso da conspiração monarquista, já introduzido pela imprensa jacobina. Agora se via toda a Bahia caracterizada como reduto monarquista – afinal, naquele estado não houvera um movimento republicano antes de 1889 e os políticos do Império transformaram-se em republicanos pelas circunstâncias nacionais. Mas a verdade é que o movimento monarquista dos anos 1890 era insignificante fora do Rio e de São Paulo. A acusação de “monarquismo” era parte do discurso dos bacharéis liberais e dos jovens oficiais “jacobinos”, que visavam instalar uma ditadura modernizadora e positivista no Brasil.
O Nordeste, região de primazia econômica do primeiro ciclo colonial, e Salvador, capital da Colônia, estavam em decadência econômica e política. E os discursos midiáticos sobre a guerra de Canudos reforçaram a imagem da Bahia e do “Norte” (o termo Nordeste ainda se usava pouco) enquanto espaços de coronelismo e violência bárbara (dos “jagunços”), incapazes de se modernizarem: “Só se fala em Canudos hoje em dia,/ De norte a sul, pelo país inteiro.../ E o glorioso nome da Bahia/ Amarrado ao de Antonio Conselheiro!”, rimava o Jornal de Notícias.
Os lugares do evento midiático “Canudos” foram as capitais no litoral, mas a principal novidade da cobertura da imprensa nacional estava no sertão. Inaugurava-se a figura do correspondente de guerra, escrevendo reportagens “ao vivo” – que levavam de 10 a 30 dias para serem publicadas, após passarem pela censura militar rigorosa, ser transportadas a pé ou por jegue até Monte Santo e então transmitidas por telégrafo a Salvador (ou de trem, pela estação ferroviária de Queimadas), de onde enfim seguiam para o sul. Na época, ainda desconhecido do público fora do seu estado natal, o engenheiro Euclides da Cunha se tornaria o mais famoso desses correspondentes de guerra.
Quando Euclides chega a Canudos, o discurso midiático, construído de forma intensiva, diária, ao longo de um ano, já havia produzido seu efeito final, e mortal: o governo do presidente Prudente de Morais decidira destruir Canudos a todo custo. Morreram milhares de famílias sertanejas, numa das maiores chacinas da história brasileira. Mas os relatos de Euclides e de seus colegas ao menos contribuíram para uma mudança na percepção dos canudenses pela opinião pública. Enquanto durante a guerra foram considerados “inimigos da nação”, depois de mortos foram simbolicamente reincluídos. Os inimigos se tornam irmãos e são considerados vítimas por muitos.
Já não foi a imprensa a protagonista desta mudança de perspectiva. O debate se transferiu para tratados científicos, como o de Nina Rodrigues em 1897, panfletos políticos, uma série de crônicas publicadas em livro por oficiais e civis participantes da guerra e livros romanceados, como Os Jagunços, de Afonso Arinos, e O Rei dos Jagunços, de Manuel Benicio, correspondente do diário carioca Jornal de Commercio. Os Sertões, de Euclides, foi publicado cinco anos depois do fecho da guerra.
Assim como Canudos propicia debates até hoje, continua atual a discussão em torno do papel da mídia no Brasil enquanto formadora de opiniões sobre como a “nação” deve tratar os que se encontram nas suas periferias social, econômica e cultural.


*Dawid Danilo Bartelt é doutor em História pela Universidade Livre de Berlim, diretor do escritório Brasil da Fundação Heinrich Böll e autor de Sertão, República e Nação (EdUSP, 2009). (Artigo publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional  - dezembro de 2014)

Dossiê Canudos(4): Notícias do fim do mundo

Canudos foi um evento de mídia global, com ampla cobertura em jornais europeus. Leitores ingleses souberam do fim do conflito antes dos brasileiros
                                      *Berthold Zilly
Os sobreviventes de Canudos (foto:Flávio de Barros)
Se a Guerra de Canudos teve, como todas as guerras, traços arcaicos e bárbaros, ela também foi extremamente moderna. Não apenas pelo emprego de avançada tecnologia militar, mas enquanto guerra psicológica, orquestrada por ferrenha produção propagandística na imprensa brasileira. E também na internacional.O telégrafo instalado pelo exército entre as vilas de Queimadas, estação ferroviária mais próxima do teatro de guerra, e Monte Santo, base de operação das forças legais, a 70 km de Canudos, permitia a transmissao rápida de notícias para o país e para o mundo, mas também a censura e as restrições ao trabalho dos correspondentes de guerra: só os bem-comportados podiam se servir desse moderno e rápido meio de comunicação.
Tudo isso é conhecido. Surpreendente é saber que aquela guerra no distante sertão brasileiro, quase fora da civilização, teve cobertura mundial. Durante meses as vicissitudes da quarta expedição estiveram presentes na grande imprensa das Américas e da Europa, com mil detalhes, fatos, mentiras e boatos, que as representações diplomáticas do Brasil tentavam manipular. As notícias saíam do sertão para as redações de Salvador, São Paulo e principalmente Rio de Janeiro, eram transmitidas para as agências noticiosas de Londres e só então seguiam para as redações de Berlim ou Paris, passando às vezes por Nova York, Lisboa e Buenos Aires. 
O interesse da Europa por Canudos torna-se constante a partir da derrota da terceira expedição, comandada pelo coronel Moreira César, em 3 de março de 1897, e vai até a vitória final do exército, em 5 de outubro. Durante esses sete meses, o Vossische Zeitung, grande diário liberal berlinense, publica 16 artigos ou notas dedicados à guerra brasileira, e sete ganham a primeira página. No mesmo período, The Times, de Londres, produz 15 artigos direta ou indiretamente relacionados a Canudos. Enquanto isso, em Paris, o Le Temps traz 22 matérias sobre o tema.
No Brasil, alguns poucos letrados indignaram-se diante do modo pouco civilizado com que a civilização era imposta aos sertanejos, crítica que ganharia expressão de acusação e protesto com Euclides da Cunha no livro Os Sertões (1902), mas que não teve repercussão na imprensa europeia da época. Esta refletia a visão das elites do Brasil, embora deixasse transparecer também algum respeito pela combatividade dos sertanejos. Em princípio, os três jornais europeus não contestam as afirmações e as metas do governo, torcendo claramente pela vitória das armas legais. As únicas críticas referem-se aos comunicados precipitados de vitória, aos erros de estratégia militar e às suspeitas de corrupção contra o alto comando da quarta expedição. A principal fonte dessas objeções era o carioca Jornal do Commercio, conhecido por seu ceticismo para com os republicanos extremistas e no qual escreveu, por curto período, um dos poucos correspondentes críticos em relação ao exército, Manuel Benício, obrigado pelo alto comando a abandonar o teatro de guerra em julho de 1897.
Tratar Canudos como uma insurreição era facilitado pelo fato de as palavras messias, fanático, insurgente e rebelde serem facilmente traduzíveis. Mais complicado era explicar outro conceito-chave da imprensa brasileira, o calunioso jagunço, descartado pelos europeus. Ainda assim os conselheiristas eram desqualificados com expressões incriminadoras, como “salteadores” e “ladrões de gado”. Porém, na escrita relativamente sóbria desses jornais, não  havia espaço para cobrir o exército com um manto de heroísmo.
Se fossem deixados em paz, talvez os conselheiristas não se tornassem tão perigosos. Esta inteligente observação sobre o caráter defensivo do movimento aparece no jornal alemão e no londrino, que retoma a mesma ideia várias vezes depois. O Times mantém-se em descrença em relação à suposta conspiração monarquista, posição nem sempre partilhada pelos outros jornais, que parecem mais próximos do governo brasileiro. Em março, o Vossische Zeitung traduziu um artigo quase inteiro do Times mas omitiu dois importantes elementos: o empastelamento de jornais monarquistas no Rio e a avaliação do correspondente de que o apoio dos monarquistas ao Conselheiro carecia de evidências.
Em abril, o jornal berlinense tenta explicar a espantosa derrota da expedição Moreira César sem criticar demais o seu comandante, reduzindo seus erros à subestimação do número de inimigos. O artigo exagera a quantidade de combatentes canudenses e de soldados mortos, tendência geral dos jornais brasileiros e europeus. Enquanto no primeiro artigo os inimigos figuravam apenas como fanáticos, no seguinte eles são chamados de rebeldes e insurgentes. A legitimidade de uma guerra contra meros desgarrados mentais e ideológicos pode ser posta em dúvida, mas contra insurgentes não há como hesitar, pois subvertem a ordem estabelecida, ameaçam a vida e as propriedades. O artigo evoca o perigo, na realidade nunca existente, das capitais do litoral serem invadidas pelos seguidores do Conselheiro, preocupação espalhada por alguns jornais brasileiros.
O maior artigo publicado sobre Canudos fora do Brasil naquela época foi provavelmente o do Times de 12 de junho de 1897. Em carta, seu correspondente no Rio recorre a uma sintaxe elaborada e a um raciocínio ora descritivo, ora analítico, para situar a guerra no contexto político e econômico nacional. Atenua as alegadas superstições dos sertanejos e refuta a tese de Canudos ser uma revolução dirigida contra o governo. Se ele é perigoso, isso se deve à repressão – mas agora que esta começou, tem que ser levada até o fim. O correspondente mostra-se preocupado com o endividamento do Brasil, agravado pelas altíssimas despesas com a guerra, o que prejudica, portanto, o crédito internacional do país.
O grande assalto fracassado do exército, em 18 de julho, passa quase despercebido pela imprensa estrangeira, pois, devido à censura, nem os jornais brasileiros souberam explicar o que ocorreu naquele dia. Artigo do Vossische Zeitung de 10 de agosto levanta pela primeira vez a tese do comunismo como princípio de organização igualitária de Canudos, elogiando sua disciplina interna. Na primeira página de 8 de outubro, o jornal alemão noticia a tomada de Canudos em longo artigo com um balanço da guerra, mas recai em erros aparentemente já superados, como a tese da conjuração monarquista – útil talvez para explicar a longa duração do conflito e o desempenho decepcionante do exército. Os leitores alemães são informados do fim da guerra quase tão rápida e amplamente quanto os brasileiros. Já os londrinos souberam da tomada de Canudos no dia anterior, 7 de outubro, algumas horas antes dos brasileiros devido à diferença de fuso horário.
O Vossische Zeitung ainda ignorava, porém, a total destruição do arraial. Supunha a sobrevivência de Canudos como cidade e Antônio Conselheiro mais tarde perante um tribunal. As matanças sumárias e o extermínio a ferro e fogo de toda uma comunidade não entram na imaginação do redator alemão. A biografia resumida do Conselheiro dá ênfase a seu papel de profeta, anacoreta (monges cristãos que viviam solitariamente) e messias, juntamente com o de fanático, provavelmente uma tentativa de lidar com um fenômeno social insólito inserindo-o na lógica do cristianismo. Chamar a guerra de conflito entre brasileiros e fanáticos significa, implicitamente, excluir os canudenses da nação. Por outro lado, enfocar a situação econômica como uma das causas da popularidade do Conselheiro é uma explicação quase materialista, não frequente nos observadores brasileiros da época. A cena dos fanáticos agarrando-se aos canhões atiçou a fantasia dos leitores, pois aparece em vários artigos e livros sobre a guerra – é um topos, cena emblemática inspirada pelo romance Quatrevingt-treize, do francês Victor Hugo (1874), relatada e ficcionalizada também por Euclides da Cunha.  
Entre os três artigos do Le Temps sobre a queda de Canudos, consta a observação verídica de que o fim da guerra fora um  "massacre". Curioso é que o periódico mais citado por outros jornais, o The Times, com correspondente próprio no Rio, pouco noticiou o fim da guerra, resumido apenas em notas nos dias 7 e 9 de outubro de 1897. O órgão central das elites europeias ficou devendo um balanço da guerra, mas no geral sua cobertura foi a mais completa, ponderada e objetiva de todas, a mais confiável à luz das pequisas modernas sobre Canudos.


*Berthold Zilly é professor visitante da Univesidade Federal de Santa Catarina e tradutor de Os Sertões para o alemão. (Artigo publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional  - dezembro de 2014)

Dossiê Canudos(5): Sobrevivência na tela

 Ficção e documentário, dois filmes são exemplos de como o cinema impediu que a destruição de Canudos significasse esquecimento
                       *Sérgio Armando Diniz Guerra   
Cadáveres expostos nas ruínas de Canudos (foto: Flávio de Barros)
Quando as tropas militares dispararam os últimos tiros contra o arraial liderado por Antônio Conselheiro, Canudos estava arrasado. Mas simbolicamente tudo continuou bem vivo: décadas depois daquele sangrento episódio, o beato e seu povo permaneceram ressoando na memória e nos estudos de muita gente. São incontáveis as obras que surgiram sobre o tema. Entre elas estão dois filmes que merecem ser vistos e discutidos por conterem elementos fundamentais para um melhor entendimento daquele universo de confronto: Guerra de Canudos, de Sérgio Resende, e Paixão e Guerra no Sertão de Canudos, de Antônio Olavo.
Ambas as produções nasceram quase um século após a queda do vilarejo baiano. E trazem, cada uma, suas próprias técnicas narrativas, suas visões de mundo, seus objetivos, interesses e compromissos. Enquanto o filme de Resende, lançado em 1997, é um longa de ficção, Olavo reconstrói a história por meio de um documentário que veio a público em 1993.
Em Guerra de Canudos, o diretor aproveita a vida de seus personagens para contar o drama que também ficou imortalizado em Os Sertões (1902), clássico da literatura nacional produzido por Euclides da Cunha. Ao longo do filme, trechos bastante conhecidos do livro são citados, além de outros documentos do escritor, como a famosa “Caderneta de Campo” – com breves observações e ricas reproduções de fragmentos – e até um “ABC”, integralmente copiado.
Levar para os cinemas a história de Canudos não saiu barato. Para que a produção milionária pudesse se tornar realidade, Sérgio Resende contou com fortes apoios financeiros, que vieram de patrocínios dos órgãos públicos e de empresas privadas. O resultado foi uma belíssima reconstrução daquela guerra, que contou com a contratação de renomados técnicos – havia, inclusive, um profissional de Hollywood – e artistas famosos do cinema, do teatro e da televisão nacional.
Uma cidade cenográfica foi erguida na região, conferindo ao longa um elevado nível de fidedignidade técnica e profissional. Assim como na vida real, terminou absolutamente destruída após a Guerra. Além dos atores famosos, como José Wilker, Marieta Severo e Cláudia Abreu, centenas de artistas locais foram escalados para interpretar os habitantes da cidade. Do início ao fim, reviveram a violenta intervenção do Exército nacional, apoiado por inúmeros batalhões de polícias militares de vários estados brasileiros. Quase cem anos depois da guerra, as câmeras lideradas por Sérgio Resende filmavam a reconstituição de uma vila que foi bombardeada, queimada, conquistada palmo a palmo e por fim devastada, para que sua imagem fosse definitivamente apagada de nossa história.
Isso, porém, não aconteceu, como pode ser visto em Paixão e Guerra nos Sertões de Canudos. No documentário, Antônio Olavo se baseia em depoimentos de vários estudiosos, além de conhecedores da vida e da obra de Antônio Conselheiro. Ele também entrevista populares, descendentes e familiares do beato, confrontando opiniões e aproveitando as posições contrárias para discutir os vários temas que escolheu, em rigorosa cronologia.
Para reconstruir a vida e os caminhos do líder religioso, Olavo mergulhou fundo: refez o percurso do Peregrino, viajando e filmando com sua equipe por mais de 2.400 quilômetros. Cruzou o interior dos sertões do Nordeste, foi até Salvador e Rio de Janeiro, recolhendo palavras, memórias e imagens de pesquisadores, acadêmicos, intelectuais, além de palácios e museus, todos rigorosamente autênticos para compor o seu roteiro.
Sem os recursos dos grandes patrocinadores, muito menos a garantia de exibição em uma extensa cadeia nacional de telecomunicações – o que lhe garantiria público e recursos – o diretor teve de contar com o voluntariado de amigos e apaixonados por aquela história. A equipe não só deixou de receber, como financiou suas próprias despesas, e alguns chegaram a dar contribuições para que o trabalho se realizasse, de maneira quase inteiramente artesanal. Prova de que, mesmo arrasado, o arraial de Canudos continua de pé na memória de muita gente.

*Sérgio Armando Diniz Guerra é professor aposentado de história da Rede Estadual de Educação da Bahia e da Universidade do Estado da Bahia. (Artigo publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional  - dezembro de 2014)