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sábado, 29 de dezembro de 2012

Alceu Valença estreia como cineasta


Alceu Valença, o homem que vive três anos em um, estreia como cineasta e se torna uma usina de shows aos 66 anos
JULIO MARIA - O Estado de S.Paulo
Alceu Valença
Abençoado o repórter que consegue fazer três perguntas a Alceu Valença. Como se o mundo fosse acabar ali mesmo, ele toma para si as funções de entrevistado e entrevistador assim que apanha o telefone e sai atropelando a própria ordem narrativa que tenta construir. Cinco ou seis minutos se passam com Alceu respondendo as próprias questões até que ele respira, diz um "tá me ouvindo, meu velho?", ganha confiança ao saber que sim e recoloca o indicador no gatilho. Alceu, 66 anos, vive presente, passado e futuro ao mesmo tempo. Com cinco safenas caprichosas que deixaram o seu coração igualzinho Recife, "cheio de pontes", parece ser levado por cada uma delas a um destino diferente.
É um giro e tanto o que lhe aguarda nos próximos dias: hoje chega a Rio Negrinho, Santa Catarina, para participar de um festival de rock que o tem como atração principal. "Mas você faz um rock que não é rock!", disse a ele um confuso jornalista norte-americano depois de vê-lo em um show no Carnegie Hall, em Nova York, nos anos 80. Depois, sobe para Sobral, no Ceará, pronto para outro formato de show, mais centrado em frevos e em Luiz Gonzaga. "Mas sua banda, Alceu, é uma banda de pife elétrico!", disse a ele Gonzagão, aperreado com o que ouvira, antes de fazerem juntos a canção Plano Piloto. O músico segue então para o Sesc Pompeia, São Paulo, para tocar dias 4, 5 e 6 de janeiro seu modelo acústico, com a acordeonista Lucy Alves e o guitarrista e parceiro de anos Paulo Rafael, que neste projeto sustenta as harmonias dos clássicos de Alceu com viola e violão. Quatro dias depois e o novo destino será os palcos de Lisboa e Paris para uma temporada que desengaveta mais memórias.
Cena de A Luneta do Tempo
Estava Alceu em 1979 prestes a se apresentar no New Folk Festival, na Suíça, quando um repórter o abordou no camarim. "O que você acha de cantar antes da Joan Baez?" Alceu olhou o rapaz de alto a baixo e devolveu: "Mas rapaz, por que você não pergunta a ela o que acha de se apresentar depois do Alceu Valença, do Brasil?"
O gás de Alceu não arrefece com sua volta. É para este ano que ele promete a estreia de A Luneta do Tempo, seu primeiro filme, do qual assina roteiro e direção. Suas ideias começaram há dez anos, quando lhe vieram os esboços da trama de amor que se passa no cangaço de violeiros e artistas circenses, inspirada em rimas de cordel e linguagem de repentistas. Conta a história de Rodrigo, um diretor de cinema, que volta a São Bento do Una (terra do próprio músico) para filmar a saga de Lampião, Maria Bonita, Severo Brilhante e seu bando contra Antero Tenente e seus soldados. Irandhir Santos aparece como Lampião, Hermila Guedes é Maria Bonita e Ceceu Valença, filho de Alceu, vive o mulherengo e canastrão Nagib Mazola.
A mão de Alceu está na trilha sonora e em um texto que poderia sempre ser música. Sem saber que está no purgatório com Maria Bonita, Lampião se enfeza com a mulher que tenta convencê-lo de que ambos estão mortos. Magoada, ela se refugia em uma pedra alta e fica por lá, contemplando um fim de tarde inebriante com toda a sua tristeza. Lampião chega por trás e começa a cortejá-la: "Se o tempo tivesse a medida pequena de um dia de feira e tu não fosse a minha vida, eu cometia uma besteira. Voava daqui do lajedo nas asas leves do vento, matava cabo e sargento e virava o mundo todo do avesso. Mas confesso o meu segredo, do fundo do meu sentimento: sem você, morro de medo. Não te esqueço um só momento." Maria Bonita fica desconcertada. "Tu és o rei da poesia, Lampião." E ele devolve: "Ah Maria, deixe de besteira."
Alceu Valença em ação no set de filmagens
"Quero colocar o filme primeiro nos circuitos internacionais para depois trazê-lo ao Brasil, ainda em 2013", diz o músico. O longa, uma ficção, ganha tons biográficos quando reconduz o artista às origens de São Bento do Una. Pois foi lá que seu pai sentiu com agulhadas no peito que o moleque tinha mesmo um pé no palco. "Música era uma coisa proibida lá em casa. Meu pai não quis me dar nem um violão, queria que eu estudasse outra coisa."
Apesar de ter Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga subindo suas veias lado a lado com os genes do rock and roll setentista e de frevos, maracatus, choros e da música árabe que historicamente usa o baião como seu melhor hospedeiro no Brasil, Alceu diz ser um homem sem ídolos, inspirado por uma conversa de corredor que teve com Hermeto Pascoal. "Mas Hermeto, quem você ouve para se inspirar?" "Eu não ouço nada." "Por que não?" "Para não me influenciar."
Quando fica indignado, seus disparos atingem o programa The Voice, da Globo. "O Brasil precisa tomar vergonha na cara. Enquanto nossa taxa de desemprego é inferior à dos Estados Unidos e nossa economia se fortalece, as pessoas continuam indo para a televisão cantar soul music, fazer cópia de norte-americano. E eu te pergunto: Você acha que um dia vamos fazer soul music melhor do que os americanos?". O circuito que o Nordeste criou para alimentar seu show biz lhe dá vergonha. "Os donos das rádios são os mesmos donos das bandas de forró. Criam uma rede fechada para se apresentar e dizem fazer o que o povo gosta. E como é que o povo vai gostar de outra coisa?" Uma hora e trinta e cinco minutos depois, o repórter consegue fazer a quarta pergunta: "Você pode me mandar o roteiro do seu filme?" E Alceu, o homem que quer viver três anos em um, responde: "Não rapaz, escreve aí que eu dito. Assim a gente continua conversando."

sábado, 22 de dezembro de 2012

Capitães da Areia, o filme, é obra superior


Capitães da Areia, o filme, estreou no dia 7 de outubro de 2011, dirigido por Cecília Amado, tem como tema principal a vida de meninos de rua que viviam em um trapiche na cidade de Salvador. O filme é baseado na obra Capitães da Areia do baianíssimo Jorge Amado, publicado em 1937. No ano de lançamento do filme, faz 10 anos desde a morte do autor. O filme é o marco inicial das comemorações pelo centenário de Jorge Amado. Cecília Amado, a diretora, é neta de Jorge Amado.
Professor (Robério Lima- de óculos) e Pedro Bala (Jean Luís - no centro)

Ana Graciela, no papel de Dora
Não consegui assistir ao filme no cinema. Li resenhas, impressões e críticas e percebi um certo jogo empatado entre “gostei” e o “não gostei”. Neste fim de ano, adquiri minha cópia pela Internet (Original!) e hoje tive a felicidade de desfrutar da obra. O filme custou 9,2 milhões e os atores foram quase todos requisitados, testados e treinados em ong´s de Salvador. Imagino o trabalhão que deu para selecionar 12 atores adolescentes entre mais de mil inscritos. Mas o esforço valeu. Os meninos corresponderam. Destaco o ator Robério Lima, que fez o Professor, e o Jordan Mateus, como Boa Vida, que estavam bem à vontade nos seus respectivos papéis. A atriz Ana Cecília (a Virtuosa de Cordel Encantado, da Globo) não conta. Ela estava extraordinária, como sempre. O papel de Dalva lhe caiu como Tieta, Dona Flor e Gabriela em Sonia Braga. O par Jean Luís Amorim (Pedro Bala) e Ana Graciela (Dora) foram muito bons e serão grandes atores num futuro bem próximo.
Ana Cecília, como Dalva, e Paulo Abade, como Gato.
Para que o leitor tenha as informações completas, os personagens Pedro Bala (Jean Luís Amorim), Professor (Robério Lima), Gato (Paulo Abade), Sem Pernas (Israel Gouvêa), Boa Vida (Jordan Mateus), Dora (Ana Graciela), Dalva (Ana Cecília), Querido de Deus (Marinho Gonçalves), Dona Esther (Jussilene Santana), João Grande (Elielson Conceição), Pirulito (Evaldo Maurício), Volta Seca (Heder Novaes), Almiro (Elcian Gabriel), Barandão (Jamaclei Pinho), Ezequiel (Edelvan de Jesus) e Zé Fuinha (Felipe Duarte) formam a base do filme. Os Capitães da Areia são adolescentes abandonados por suas famílias, que crescem nas ruas de Salvador e vivem em comunidade no Trapiche junto com outros jovens adolescentes. Eles praticam uma série de furtos e roubos, o que faz com que sejam constantemente perseguidos pela polícia. Um dia Professor conhece Dora (Ana Graciela) e seu irmão Zé Fuinha (Felipe Duarte), que também vivem nas ruas. Ele os leva até o Trapiche, o que desencadeia a excitação dos demais garotos, que não estão acostumados à presença de uma mulher no local. Pedro consegue acalmar a situação e permite que Dora e o irmão fiquem por algum tempo. Só que, aos poucos, nasce o afeto entre o líder dos Capitães da Areia e a jovem que acabou de integrar o bando.
Além da direção de Cecília Amado, o filme tem como codiretor Guy Gonçalves. Cecília e Bernardo Stroppiana são os produtores. Na produção executiva, além de Stroppiana, aparecem Bill Fogtman, Pimenta Jr e Camila Medina. O roteiro é também de Cecília Amado, associada a Hilton Lacerda. Música de Carlinhos Brown, o diretor de arte é Adrian Cooper. Guy Gonçalves também assina a direção de fotografia, com figurino de Marjorie Gueller e edição de Eduardo Hartung.
Guy Gonçalves, Carlinhos Brown, Ana Cecília, Cecília Amado (Diretora, no centro), Jean Luís, Ana Graciela e Robério Lima.
Capitães da Areia é um filme brasileiro de qualidade superior. Digo ser uma obra carregada de humanismo e fé no homem. Para Francisco Russo, o filme “carrega consigo o DNA da Bahia, através da sensualidade latente mesclada com uma certa dose de provocação insinuante e malandragem. No filme estes ingredientes ganham ainda o forte tempero da sonoridade do sotaque baiano, inconfundível. Tudo para mostrar, em tela grande, a Salvador de Pedro Bala, Professor, Sem Pernas e companheiros. Jovens unidos pela necessidade, todos moradores de rua, que praticam pequenos golpes sem deixar de lado a ética da camaradagem. Todos delinquentes e, ainda assim, cativantes.” Acho que vai muito além disso e os críticos só perceberiam caso uma elite interpretativa, com cara de “o de sempre”, estivesse à frente do elenco. É difícil no Brasil fazer um filme sobre pobres, negros e afins. Lembro-me de Cidade de Deus. Mereceria um Oscar, mas até mesmo sua indicação foi uma aventura cheia de atrapalhadas. Como tenho fé nos críticos, o tempo fará com que eles descubram que Cecília Amado, Carlinhos Brown e Guy Gonçalves foram geniais. A música de fundo da personagem Dora é de uma harmonia invejável. E o que dizer da cena do carrossel de cavalinhos no parque, cantada pelos Tribalistas! Maravilha! A fotografia, mesmo revelando o mundo pobre da Bahia, consegue passar beleza. Nada no filme parece artificial, exatamente porque Cecília usou uma maioria baiana para falar de si mesma. A minha nota é DEZ!

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

¨¨¨Landisvalth Blog: Notas do MEC para mais de 2 mil instituições mostr...

¨¨¨Landisvalth Blog: Notas do MEC para mais de 2 mil instituições mostr...: MEC divulgou o IGC, o CPC e o conceito Enade do ciclo 2008 a 2011.  Confira quais instituições e cursos tiveram conceito considerado sufici...

sábado, 1 de dezembro de 2012

A vitalidade da obra de Clarice Lispector III

Conto: O chamado do cego
Obra se baseia num personagem de 'O Amor', obra-prima da narrativa clariciana

Silviano Santiago – de O ESTADO DE SÃO PAULO

Saio de casa às três da tarde. Todos os dias. Faça sol faça chuva. Não há motivo para eu sair de casa a essa hora ou em dia que não me convida ao prazer da caminhada pelas ruas de Botafogo, a não ser o fato de mamãe me perguntar, depois de o cuco cantar três vezes na sala de estar, por que você não vai dar a sua voltinha pelo Largo dos Leões.
Está na hora ? insiste ela, se não me mexo.
Quando estou para abrir a porta do apartamento, escuto sua voz de novo. Não vá esquecer a bengala na chapeleira. Às vezes a esqueço. Não é por esquecimento que a esqueço. Quem é que gosta de sair para passear com uma bengala branca? Está na cara que eu sou quem eu sou. A bengala branca é o pior dos chamarizes. Os passantes me encaram como se fosse bicho do mato em exposição numa jaula do Largo dos Leões. Pressinto o susto e pior! a piedade. Mais que os pressinto, tenho certeza. Interjeição é interjeição, nada é mais espontâneo no mundo. Foge do coração sem que a pessoa se dê conta.
Mamãe nunca diz para eu não esquecer o guarda-chuva quando está chuviscando. Ela sabe que não o esquecerei.
Ao sentar-me no banco para relaxar as pernas, deixo a bengala dependurada para o lado da relva e não do passeio. Se não a esqueço em casa, escondo-a quando posso. Às vezes peço ao dono da banca de jornal para guardá-la. Pego-a na volta, digo, quando for pegar Tribuna da Imprensa para a mamãe.
Mamãe pensa diferente. Sempre diz que um dia, sem a bengala, você ainda será atropelado por um doido ao volante. Quando ela diz doido ao volante, não tem jeito, penso logo em ás do volante. E é o nome de Chico Landi que me vem à mente, junto com o de Fangio. Mamãe não pode adivinhar que ser atropelado no Humaitá pelo grande vencedor do circuito de Bari, na Itália, seria a glória para o temerário homem da bengala branca.
Penso que canso mamãe. O dia inteiro em casa, ao seu lado, sem fazer nada de útil. Tem o direito de ter o apartamento só para ela, ainda que por algumas horas da tarde. Ela deve ter o direito de fazer o que bem entende sem ter de pensar que alguém da sua intimidade escuta os passos e os ruídos e adivinha tudo o que faz nas horas de folga. A vida íntima não é diferente da vida cotidiana? Será que ela não luta por conseguir manter como só suas algumas horas que serão vividas em total segredo de todas as pessoas, até do filho?
Mamãe é tolerante, embora nunca mais me tenha dado banho. Contratou a empregada da vizinha para vir dar-me banho pela manhã. Mamãe tem medo de que eu perca o equilíbrio e escorregue no piso ou na própria banheira. Eu também passei a ter medo e a exigir que a empregada me desse banho todos os dias. Só tiro a roupa depois que ela tranca a porta por dentro.
Sei que a empregada é preta retinta. Sei por que ela me disse. Disse-me também que, mesmo se eu pudesse enxergá-la, eu não a veria. Sua mãe me proíbe ? disse-me ela ? de acender a luz do banheiro e de abrir a janela que fica atrás da privada e dá para os fundos do prédio. Meu banho de chuveiro é na penumbra e, nas manhãs geladas do meio do ano, quando o chuveiro elétrico está no máximo, o banheiro parece um salão de banho turco, é o que a preta retinta me diz. Saio toda suada daqui, precisando dum banho. Posso ensaboar-me e me enxugar sem problema, mas mamãe insiste em dizer que quer me ver limpo e asseado, como o filho de Deus que sou.
Aliás, de há muito Terezinha deixou de ensaboar o que ela chama de minhas partes feias. Ordens de sua mãe - ela se justificou no primeiro dia e nunca mais voltou a tocar naquelas partes. Segura as mãos, mas não consegue segurar a língua. Vira e mexe toca no assunto. Mamãe tem razão. Quando ela me ensaboava as partes feias, era eu que tinha de me controlar. Fazia de conta que estava na rua e começava a chover, a ventar e a fazer frio. Imaginava que tinha de correr de volta ao apartamento antes que apanhasse um resfriado. Ensaboado, debaixo do chuveiro, controlo-me. Fico como se estivesse perdendo o fôlego por causa da correria. Fico resfolegando, que nem cavalo no Jóquei Clube depois da corrida.
Terezinha me perguntava se cego já nasce cansado. Aí eu já não pensava em mais nada, a não ser em reganhar a respiração normal.
Não conseguiria bater uma punheta na frente dela, embora não me faltasse a vontade, que deixo guardada lá dentro de tudo o que tem de ficar bem escondidinho na vida de todos os dias.
Terezinha insiste em me perguntar se eu sinto que estou pelado. Ela acha que, como sou cego, não sei quando estou vestido e quando estou sem roupa. Gosta de certificar-se se sei que estou assim ou assado. Depois de ela me tirar a roupa e de eu lhe assegurar que sei que estou assim ou assado, pergunta-me se eu, mesmo sendo cego, consigo ver os olhos de Deus e se passo pela vergonha que Adão e Eva passaram no paraíso, antes de serem expulsos por ordenação divina.
Ela não conversa comigo de maneira franca e direta sobre as partes feias. Enquanto me ensaboa ou me enxuga, fica resmungando que cego não deve saber o que é o pecado. Se soubesse, ia sentir vergonha, e eu não tinha vergonha nenhuma de me exibir para uma desconhecida. A inocência é a forma de misericórdia que Deus encontrou para compensar o ser humano da cegueira. Mais ela resmunga, mais me sinto feliz, embora eu saiba que ela, no fundo, está me pregando uma baita duma mentira.
Diz também que aprendeu com o padre no confessionário as palavras que fala. Ela lhe disse numa tarde e desde então passou a repetir que todos os dias dá banho num vizinho cego. Num marmanjão. O padre lhe garante que mulher dar banho em homem necessitado não é pecado. Deus sabe bem o que Ele nos manda e o que Ele não nos manda fazer, mas mesmo assim ele lhe passa a penitência de dez ave-marias, cinco padre-nossos e uma salve-rainha.
Ela discorda do julgamento do padre. Contrapõe à penitência a garantia de que nunca toca com maldade nas partes do corpo de homem que não são as partes do seu homem. Continua resmungando. E aí me garante que não é filha de Eva. Jura por tudo o que é mais sagrado.
Ela acha que o padre acha que ela tem a mente suja e que o homem cego, mesmo sendo um marmanjo, tem a mente limpa. Um dia perguntou ao padre se o cego tem a mente limpa só porque não enxerga. Ela se lembra da frase que ele lhe disse antes de fazer o pelo sinal da santa cruz que dava por terminada a confissão: É uma benesse de Deus poder remover dos olhos, para todo o sempre, a imagem profana. A misericórdia de Jesus é infinita.
Penso também que mamãe pensa que tenho de arriscar-me a sair sozinho em terreno estranho às quatro paredes do apartamento. Se eu não exijo nada dela, por que será que ela exige tanto de mim? Por que será que ela não gosta de me dar a mão na rua? Saio sozinho, ela sai sozinha. Caminho sozinho pelas ruas do Humaitá, ela caminha sozinha pelas ruas de toda a cidade. Tenho de sair de bengala branca e ela sai sem bengala, só com a rede para as compras.
Antes, aos sábados pela manhã, eu saía com o papai. Pegávamos o 21 aqui em frente de casa e íamos sacolejando pelos trilhos até o Jardim Botânico.
Papai sentia prazer em segurar minha mão e me mandar atentar para o cheiro das árvores, para o zumbir das abelhas e o chilrear das aves. Dizia-me que ficava siderado com a beleza e a diversidade da natureza. Deus é pai, e o homem é uma peste... - me diz ? penso assim porque tenho vontade de deitar com você na relva e lá está a tabuleta a nos avisar que é proibido pisar na grama. Dá multa pisar na grama.
Em companhia dele, cada detalhe do Jardim Botânico me parecia estranho. Suave demais, grande demais.
Caminhávamos os dois por uma das aleias do jardim e aí apareceu um gato. Vinha de detrás de uma árvore e devia estar com fome. Eu era então menininho. Papai me disse olha o gato! sem saber que eu não poderia ver o gato. Olho o gato e lhe digo não vejo o gato. Ele me diz pode ver sim, pode sim, garanto. Pela voz dele, posso ver o gato e, pelas palavras dele, posso sentir como o pelo do animal é macio e fofo. Ele anuncia que o gato angorá vem caminhando na nossa direção. Ele gosta da gente. Apanha-o no chão. Como é dócil o bichano, diz, e o acarinha e me pede para que eu o toque também. Veja como ele é belo e amigo.

Seu pelo é macio e fofo. Passei-lhe a mão direita.
Não é um gato, é uma gata - ele descobre e me diz.
Aí ele solta a gata no chão, que volta a caminhar pelo Jardim Botânico, e voltamos os dois felizes para casa.
Penso ainda que, desde que papai morreu e mamãe se aposentou, ela sente falta da Tribuna da imprensa que ele trazia debaixo do braço e lia todo santo dia. Para o seu pai, Lacerda está no céu e Deus na terra - me diziam os vizinhos no elevador. Nunca a tinha visto ler jornal. Papai é que chegava com o jornal na hora do jantar. Agora, mamãe se acostumou a lê-lo antes do jantar e a escutar, depois do jantar, o Repórter Esso na Rádio Nacional.
Antes, se os dois não fossem ao cinema na sessão das oito, ficavam conversando até que a noite caísse de vez. Quando iam ao cinema, não me deixavam sozinho em casa. Tínhamos empregada e ela ficava tomando conta de mim até eles voltarem. Pela conversa deles ficava sabendo do que acontecia no mundo, no Brasil e no Rio de Janeiro. Quando papai falava demais em política, mamãe dizia que não tolerava política. Quando papai falava demais em futebol, mamãe dizia que não tolerava futebol. Papai torcia pelo Fluminense e lembro que execrava três dos jogadores do Flamengo, Bria, Biguá e Pirilo, salvava Zizinho, um craque aquele. Ele voltava ao futebol e lhe dizia escuta mulher, vencemos de goleada o Flamengo, por 4 a 0, há que comemorar. Depois de muita prosa, passavam os dois da sala de estar ao quarto de dormir como o próprio dia passa para a noite e depois volta a ser dia.
Na minha cabeça mamãe gosta de comparar o que se escreve pela manhã sobre cada dia com o que se diz dele à noite. Não tenho coragem de lhe perguntar se é por isso que todos os dias lê o jornal e escuta a rádio. As notícias que saem na Tribuna da Imprensa e as que são ditas na Rádio Nacional não são as mesmas? Prefiro calar-me e adivinhar a resposta. Ela nunca me diz nada sobre as manchetes do dia, apenas repete que gosta da voz do Heron Domingues, o primeiro a dar as últimas. Voz viril, segundo ela. Admiro também sua dicção máscula ? diz. Vira-se para mim e acrescenta você deveria imitá-lo quando conversa com os outros na rua. Quando eu o escuto é como se estivesse a ouvir a voz do seu pai.
Volto para casa lá pelas cinco da tarde. Passo antes pela banca de jornal. Na ida, passo também pela banca de jornal. Nem preciso mais pedir ao seu Giuseppe as duas caixinhas de chicletes Adams a que tenho direito por ordem de mamãe. Uma com sabor de hortelã e a outra com sabor de tutti-frutti. Em cada caixinha vêm duas pastilhas dizem que brancas. Masco primeiro as pastilhas de hortelã. A primeira, e a outra logo em seguida. As duas formam um bolo dizem que cinzento que tira o gosto de almoço e de pasta dentifrícia que fica na boca. O ar escorre limpinho até os pulmões. Não ponho a mão no bolo, cuspo na sarjeta o chiclete insosso. Masco depois as duas pastilhas de sabor tutti-frutti. Adocicam e refrescam o hálito. Sinto o frescor na garganta e nas narinas. Antes de voltar para casa, cuspo a maçaroca na sarjeta.
Mamãe deixa que eu masque chicletes. Você gosta. Mas ela não gosta de me ver mascando. Só pode na rua, longe dos meus olhos. Diz que lembra o pai do pai dela que, depois de tomar café, ficava sentado na cadeira de balanço, mascando fumo de rolo. Era um nojo só. A mãe do pai dela achava o mesmo. Mas quem é que iria falar alguma coisa ao velho desdentado, um caipira que tinha vindo do interior de Minas? Outras vezes, me diz você parece boi ruminando capim no meio do pasto. Não nega a raça.
Não pago as duas caixinhas de chicletes e não pago o jornal. Não me lembro de ter tido muito dinheiro no bolso. Quando sai à rua, mamãe paga a conta ao italiano da banca. Ela não sai à rua como antes. Fica em casa o dia inteiro, lendo alguma coisa ou escutando o rádio. Na terça-feira ela faz as compras na feira e na mercearia. Todos os dias faz o café da manhã e cozinha o almoço e o jantar. Também os serve e lava a louça. Ajudo a secar os pratos, os talheres, os copos e até as panelas. Depois que o papai morreu ela despediu a empregada. Não se podia mais contar com ela. Tinha virado um traste inútil.
Tão logo o radinho de pilha apareceu nas Lojas Americanas, ela comprou o seu, que substituiu o outro grandote, modelo capelinha da Philco, que ocupava mais da metade de uma das prateleiras da cozinha. Era um verdadeiro estrupício. Mamãe gosta de ouvir esses programas infinitos em que o locutor conversa com alguém sobre as mil e uma mazelas e misérias por que a pessoa ou a família atravessam. Gosta mais dos programas da manhã. Se há um locutor que ela detesta é o Júlio Louzada. Piegas demais - diz.
Mamãe não gosta que eu diga chicletes. Corrige-me sempre: é goma de mascar, meu filho. Chicletes é palavra estrangeira. Eu respondo que chicletes é palavra estrangeira porque o chiclete é coisa estrangeira. O jornaleiro me disse que é coisa de inventor gringo que morou no México. Ele se chamava Adams, por isso é que a caixinha de chicletes se chama Adams. Adams é também nome estrangeiro. Não posso dizer chicletes, mas posso dizer Adams.
Ela me diz que sou pirracento e turrão. Puxei ao meu bisavô mineiro.
Mesmo estando aposentada, ela não perde o hábito de professora primária. Quando ela corrige minhas palavras ou quer mudar meu modo de falar, não acho que seja minha mãe. É pessoa diferente da que é quando pede que tome assento ao lado dela no sofá e diz para eu deitar o rosto no seu colo.
Eu disse ao Giuseppe que gosto de ficar deitado no sofá com o rosto recostado no colo da mamãe. O italiano me disse que estava virando 24 veado, que eu me cuidasse. Dia destes, você cai na boca do povo. Pergunto-lhe o que há de mal em ser 24 veado. Responde-me que nada, depende da parte que eu gosto de usar. Se a parte da frente ou se a parte de trás. Tem homem que sente mais prazer usando a parte de trás que a da frente. É 24 veado.
Respondi-lhe que usava a parte de trás e a parte da frente. Uma para cagar e a outra para mijar.
É bene, não é disso que estou falando, seu bobo. Deixa pra lá. Você não é 24 veado, é só filhinho da mamãe. Sorte sua que não vive solto no mundo. Teria virado um schifoso.
Nas manhãs de sábado, depois do passeio pelas aleias do Jardim Botânico, às vezes caminhávamos os dois até a Praça Santos Dumont, onde o público tem acesso ao hipódromo do Jóquei Clube. Papai não apostava em cavalos. Tinha raiva do vício de jogar, do uso lotérico do dinheiro e tinha ainda mais raiva das pessoas que iam apostar nos cavalos como se fossem eles encarnação de algum número de jogo do bicho. Corrida de cavalos não é uma roleta de cassino na Urca. Ia ao hipódromo da Gávea porque gostava de se ver cercado por cavalos de raça, com os cascos duros de pedra e o pescoço potente. No meio da arruaça do mundo moderno, tinha vontade de ser um deles. Fazer parte do bando.
Depois de passear pelo Jardim Botânico com você, eu sinto mais vontade ainda de ser cavalo. Eles me deixam desassossegado, me dizia, e repetia várias vezes a palavra desassossegado ao ritmo do trote dos animais em corrida e da voz do locutor que escoava do alto-falante. Existe um mundo de animais, a que eu não pertenço.
É uma pena - sua voz abandonava os cavalos e se virava para mim ? que você não escute o chamado deles. Quem sabe se você não foi chamado a ser um deles quando nasceu? Sua mãe pensa assim. Eu também penso assim, mas de maneira diferente. Desde criancinha você vê as coisas e o mundo como um cavalo os vê. Você não é um animal, é um potro selvagem! E esse é, na verdade, o meu maior desejo. Ter nascido como você é o meu desejo mais profundo.
Não conheci direito o papai. Saía pela manhã, chegava à noite com a Tribuna da imprensa debaixo do braço e ficava conversando com a esposa até altas horas da noite. Conversávamos quando íamos ou ao Jardim Botânico ou ao Jóquei Clube. Só aos sábados. O domingo era também dela, ou da família dela. Ele não tinha medo de mim. Tinha medo da mamãe e do seu ar de ameaça. Se ele se aproximava de mim para saber melhor quem eu era e para eu saber melhor quem ele era, o mundo, por ordem e vontade dela, despencaria do galho e se esborracharia no chão que nem fruta podre. Só ela tinha o direito de saber que havia uma fruta podre em casa. Era dela a fruta podre. Só dela.
Será que ela me escondia? Será que ainda me esconde? Se quiser me esconder, por que me pergunta se eu não vou dar a minha voltinha pelo Largo dos Leões.
Quando chegava sozinho do hipódromo da Gávea, ela me perguntava: e o seu pai?

Eu respondia dizendo que ele tinha me mandado descer do bonde e que ele ia continuar até a praia de Botafogo.
Cismava. Praia de Botafogo, praia de Botafogo... Só cego é que não vê.
Perdão, meu filho - disse logo depois.
Será que menino cego tem serventia? Serve para não ver o que o pai faz. Serve para enxergar o que a mãe não vê e quer saber sobre o marido? Será que papai traía mamãe às escondidas e com a ajuda do filho cego? Será que tenho alguma serventia? Não tinha como responder a essas perguntas, e o cuco cantava três vezes na sala de estar. Por que você não vai dar a sua voltinha pelo Largo dos Leões? - escutei.
Antes de abrir a porta, passei pela chapeleira e me muni da bengala branca.
Sentado no banco, mascando chicletes, escutei o 21 que subia a Rua São Clemente. Capengava mais que o normal. À entrada do Largo dos Leões o bonde latia que nem cão raivoso. Respirei profundamente e meus dentes mascavam com maior firmeza o chiclete de hortelã. Tive medo de morrer atropelado. O motorneiro perdia o controle dos freios, o coletor de energia perdia o contato com a rede aérea, o bonde saía dos trilhos, avançava para o espaço vazio e atropelava o cego que, sentado no banco, mascava seu chiclete de todas as tardes.
Varri o desastre da imaginação e, para enfrentar de cabeça erguida o perigo que vinha pela frente, levantei-me do banco onde estava sentado. Dei três passos até o meio-fio. Apoiei-me no poste para reganhar o equilíbrio. Estava apoiado no poste quando o motorneiro freava o bonde. Soltei o poste para apoiar todo o corpo na bengala branca. Através dela minha mão direita se comunicava com a pedra do meio-fio. Não ia escorregar para a sarjeta e ser atropelado por carro. Ouvi o bonde parar no ponto, em frente a mim. Foi aí que eu vi a mulher que me encarava. Estava sentada no banco de trás do bonde. Encarava-me como se estivesse vendo uma girafa no Jardim Zoológico.
Sou cego - gritei-lhe para que não tivesse medo de mim.
A mulher estava intranquila e continuava com medo. Não tinha medo da girafa, tinha medo de mim por ser um cego que mascava chicletes no Largo dos Leões. Mais me encarava, mais me iluminava e mais eu sentia o pau intumescer. Ele já gritava dentro das calças e ela o escutou gritando porque me encarou mais firmemente. Tive vergonha. Por ordenação divina, fui expulso do Paraíso. Como se se tratasse de uma enxada, segurei forte o cabo da bengala branca e, com as duas mãos tensas, levei-a até à altura da braguilha para controlar o descontrole repentino. A mulher me encarava. Ela sorria. Ria de mim? Meu pau se espichava bengala abaixo até encontrar apoio na pedra do meio-fio. Virei um homem cego de três pernas. Terezinha me dizia que tinha virado católica praticante no dia em que tinha sonhado com Exu.
Sentada, a mulher tinha me visto de pé, mascando chicletes, no ponto do bonde e teve medo. Sorria, no entanto. Não, não era riso de deboche. Eu vi. Juro que vi. Um sorriso de alegria desabrochava nos seus lábios. Ela me ama. O bonde deu a arrancada para partir. O solavanco despertou a mulher. Soltou um grito mais lancinante que o grito que meu membro intumescido e contido pela bengala branca soltava. Os dois gritos se cruzaram pelos ares do Largo dos Leões. Ela me amava. Sem se darem conta de mim, todos os passageiros olharam assustados para ela.
Voltei a sentar-me no banco. Era a vez das pastilhas com sabor de tutti-frutti.

A vitalidade da obra de Clarice Lispector II

A possibilidade de narrar e existir
Clarice Lispector explorou não os fatos lineares ou ‘confissões psicológicas’ e sim o sentido final das coisas

ALCIDES VILLAÇA – de O ESTADO DE SÃO PAULO

O que um leitor deve a um escritor é a compreensão da escritura. O afeto pode tê-lo conquistado desde o início e chegado à veneração, mas a compreensão é o eixo ativo, é o compromisso de qualificar o olhar mediante o distanciamento que acaba por levar à intimidade mesma da obra. Afastar-se, para entender as razões da proximidade. Um dos primeiros intentos a que me desafia a ficção de Clarice Lispector é o de alcançar uma sinceridade de leitura espelhada na ansiedade verdadeira e permanente da escritura. Mas a sinceridade, em arte, é imponderável, já sugeriu mestre Carpeaux, que também propunha, para além da admiração, que reconhecêssemos em toda manifestação artística a formulação de um problema.
Cena do filme "A Hora da estrela", com José Dummond e Marcélia Cartaxo
e direção de Suzana Amaral.
A vitalidade singular da literatura de Clarice Lispector (para não falar da pessoa mesma) tem como efeito de linguagem uma espécie de sucção sobre os leitores, que não raro deixam de ser apenas leitores para se converterem em cúmplices de um fenômeno. São os claricianos, tão ou mais convictos que os machadianos quanto à genialidade absoluta da autoria. Os textos de Clarice vivem da relação entre extremos, na qual um descortino lúcido não se opõe a uma detecção nebulosa, antes a inclui, descartando assim o registro dos paradoxos banais. Avulta a realidade mesma de uma escritura que se recusa a ser espelho, pois antes de refletir qualquer coisa investiga a natureza da luz, o processamento da imagem, a consciência do olhar no ponto de partida. Na expressiva fortuna crítica dessa obra não faltam considerações, como a de Benedito Nunes, sobre "uma união íntima entre a existência e a linguagem". O que poderia ser uma polarização comum entre fato e expressão se converte na formulação íntegra de um desejo de revelação que se desnuda, se analisa e se repropõe o tempo todo. É na extremada comunhão entre o narrar da experiência e a experiência do narrar - operação sobre abismo - que se suspende o discurso de Clarice, como numa extraordinária flutuação de matéria.
Já no romance de estreia, Perto do Coração Selvagem (1943), a autora lançou-se à perseguição não de eventos lineares ou de confissões "psicológicas", mas do sentido final das coisas ("ser feliz é para se conseguir o quê?"), sabendo que essa perseguição, feita de palavras, não pode deixar de morder-se a si mesma, se também quer dar conta da qualidade dos silêncios. Fica-se entre as percepções "por demais orgânicas para serem formuladas em pensamentos" e a palavra que, em vez de as expressar, converte-se ela própria em percepção. Assim, a história de Joana, menina e mulher, filha e esposa, costura-se descontinuamente por avanços e recuos no tempo, espaçando-se ainda nos segmentos da montagem reflexiva. Pergunta-se ela se haveria "um meio de ter as coisas sem que as coisas a possuíssem". O leitor se obrigará a reconhecer o comando exercido por esse movimento de autoconsciência, que inclui na peripécia mínima a ameaça turbulenta de algo essencial. A rigor, não há histórias de Joana: há estados de Joana, aproximados não pela justaposição horizontal de um enredo, mas pela verticalidade dos inquietos lances da busca - tão difusa quanto verdadeira - do sentido do ser, da vida, da morte. O leitor talvez se sinta amesquinhado diante de tal compromisso, firmado na ansiedade altiva do discurso; ou se sentirá empolgado pela incursão inesperada por seu próprio eu desconhecido? Com esse romance de estreia se abriu uma perspectiva ficcional e um trabalho de linguagem sem precedentes em nossa literatura.
Dos vários romances que se seguiram, A Paixão Segundo G.H. (1964) é para muitos a culminância dos processos construtivos e expressivos de Perto do Coração Selvagem. Desenvolvido a partir de uma cena nuclear - a visão e o esmagamento de uma barata - e narrado em primeira pessoa, o relato tanto insiste na materialização mesma do episódio vivido como na sua repercussão subjetiva mais intensa, experimentada como conversão de uma personalidade em outra, das iniciais de alguém G. H. na personagem abismal que narra, transfigurada pelo peso místico, cultural e histórico da experiência de ver na barata, viva ou esmagada, uma espécie de verdade ancestral de que tudo deriva, identificando-se com ela essa nova mulher, aterrada, que se indaga: "O que me acontecia? Nunca saberei entender, mas há de haver quem entenda. E é em mim que tenho de criar esse alguém que entenderá". Nessa formulação, Clarice está inteira: a resposta à pergunta é perguntar a pergunta de outro modo, de sorte que nem a afirmação nem a negação tenham a oportunidade de se instalar em definitivo. A técnica de retomar no início de um capítulo a última frase do anterior materializa o fio de uma costura. Num exaustivo processo de investigação do sentido, nada e ninguém se fixa como identidade. Entre a Morte ("tranquila ferocidade neutra do deserto") e o Amor (que ocorre "quando não se dá nome à identidade das coisas") perpetua-se o Movimento: "Minha busca cega e secreta". José Américo Motta Pessanha, leitor agudo e medusado por Clarice, viu nela "a força iconoclasta de um começo de filosofia". Acrescentemos que há também a força iconoclasta de um começo de religião, de mitologia, de poesia, começo de linguagem e de silêncio, tudo convocado para o que se poderia talvez definir como a construção da própria alma. Não por acaso, Clarice desejou que seu livro "fosse lido apenas por pessoas de alma já formada", conforme a nota inicial de A Paixão Segundo G.H. Lido, pois, como um processo de crua aprendizagem, a partir da epifania terrífica da morte e da eternidade da barata, o romance equilibra o cerne mesmo de uma experiência (tomada em seu sentido mais forte) e seu pleno desdobramento como paixão (sofrida, uma vez mais, como verbo que se quer carne). Encena-se mesmo, nesse romance, uma forte concorrência entre a investigação sagrada e a inclinação para uma Natureza absoluta. Tal embate assim se expressa: "Transcender é uma transgressão. Mas ficar dentro do que é, isso exige que eu não tenha medo!".
Em meio aos romances iniciais, os contos de Clarice surgem como ponta aberta para um diálogo interno à obra. Penso sobretudo em Laços de Família (1960) - uma sucessão de contos extraordinários, em que a narração compõe com equilíbrio o peso vivo dos eventos e sua repercussão subjetiva no narrador, nas personagens e no leitor. Pouco se perde da verticalidade insistente e abusada das reflexões especulativas, agora aprofundada - diria mesmo, vitalizada - pelo eixo de gravidade de uma contingência humana. Um cachorro abandonado com profundo remorso, uma galinha provisoriamente poupada, um penoso aniversário familiar, o ressentimento e o ódio por um amor recusado - nessas e noutras experiências a linguagem arma-se para dar conta da luz e das sombras dos casos. Atraído pela matéria viva, o leitor não deixa de repercutir o halo de significação que dela transpira. Dissolve-se, assim creio, a falsa antinomia entre realismo e experimentalismo, nessa convergência entre a fatalidade de sermos todos uma história sensível enquanto também somos um pensamento sobre essa história. Digamos que o big close-up da barata em A Paixão Segundo G.H., a partir do qual se desenrola viva a reflexão especulativa, não é necessariamente mais iluminador que o alargamento de uma história, acolhida e problematizada no fundo comum das experiências cotidianas.
O desfibramento de uma história, de qualquer história, e a insistência intensificada no peso especulativo de cada frase fará de Água Viva (1973) o limite último da antificção de Clarice: linguagem vazada em aforismos e fragmentos, voltados para a expressão de um it - a coisa clariciana, transcendência vazia que o leitor ou aceita em si mesma ou molda por sua conta e risco. Isso é o que é - arrisco eu a paródia, para expor uma tautologia radical do discurso que se anuncia a si mesmo.
Mas o grito último e alto está em A Hora da Estrela (1977), romance em que autora, narrador interposto e personagem fazem uma história que também se historia, como a resumir as apostas essenciais de uma escritora que fez da linguagem uma personagem viva. A falta de ênfase das falas, o silêncio inocente, o pré-estado de qualquer culpa, o desejo obscuro e insondável tem um nome: Macabéa, a moça pobre atropelada pela estrela... de um automóvel Mercedes-Benz. Como a encarnar o início ainda inconsciente de nossa humanidade, a moça é um desafio para todas as palavras, e começa e acaba por não existir, constituindo o entrecho o desafio para qualquer narração. Encenam-se assim, nesse romance, como que inclusas uma na outra, a investigação da possibilidade de narrar e a da possibilidade de existir. Rodrigo e Macabéa são tão necessários um para o outro como a nossa necessidade de história - assumida, em desafio, como sucessão significativa de experiências e como desígnio da escritura que se faz espelho de si mesma: desafio que prossegue, creio, para a arte do nosso tempo.

A vitalidade da obra de Clarice Lispector I


Uma releitura de seus contos e um ensaio psicanalítico serão lançados no país
ANTONIO GONÇALVES FILHO – de O ESTADO DE SÃO PAULO
Clarice Lispector em seu apartamento em 1961
A crescente onda de traduções dos livros de Clarice Lispector (1920-1977) nos EUA, tema da matéria de capa da Bookforum deste mês, vem acompanhada no Brasil de novas abordagens da obra da escritora. É o que atestam dois lançamentos simultâneos: Extratextos 1 - reunião de 12 contos inspirados por seus personagens e encomendados a um grupo de ficcionistas - e No Limiar do Silêncio e da Letra, ensaio de Maria Lucia Homem sobre a questão da autoria em Clarice Lispector com base em três livros dela: Água Viva (1973), A Hora da Estrela (1977) e Um Sopro de Vida (1978). No primeiro dos lançamentos, Extratextos 1, estão reunidos escritores brasileiros e estrangeiros, entre eles o crítico literário Silviano Santiago, colunista do Sabático (leia trecho de seu conto no link acima). Essa experiência de reescritura é analisada pela ensaísta Olga de Sá em texto publicado abaixo, enquanto o processo construtivo da literatura clariciana e seu diálogo com o leitor - convocado a dividir a autoria dos textos - é o tema do artigo de Alcides Villaça, da USP, que está nos links acima.
Ao confundir as funções de autor, personagem e leitor em alguns de seus livros, Clarice fez a este último um convite ao abandono da razão. Para a crítica literária Rachel Kushner, que assina o ensaio da Bookforum, isso explicaria a empatia dos americanos com seus textos carregados de filosofia - que, contrariando Wittgenstein, ousam dizer aquilo que é impossível ser dito. Ela suspeita que a razão de Clarice ter inspirado verdadeira devoção entre seus leitores resida na segurança de terem um guia - sincero, honesto, ainda que inseguro - à frente do texto. "Os leitores sentem que ela está falando com eles sobre a mais básica e ao mesmo tempo mais complexa experiência humana: a estranheza diante do que significa estar vivo."
A psicanalista Maria Lucia Homem, que dedicou cinco anos à elaboração de No Limiar do Silêncio e da Letra, diz a esse respeito que Clarice "tenta construir outro estatuto para a linguagem verbal", aproximando a escrita de uma "névoa", de uma "fotografia muda", além de estabelecer diálogos intertextuais com outros autores (Shakespeare, Dostoievski) para traduzir a tragédia existencial do homem, "submetido às mazelas do destino e das condições que o cercam". Autor, leitor e texto, segundo a psicanalista, formam uma tríade inseparável. Clarice, observa ela, tematiza o tema da autoria como representante da modernidade literária, em que questiona a posição do narrador e ultrapassa os limites formais, afirmando que sua linhagem é a de Proust, James Joyce e Virginia Woolf.
A autora do artigo da Bookforum vai além, comparando-a a Kafka, uma vez que ambos elegem um simples inseto para conferir ao homem o ingresso numa dimensão metafísica, surreal. Graças à barata de A Paixão Segundo G.H. (1964), a burguesa do livro experimenta, comenta ela, o gosto da transubstanciação católica. É a sua hóstia em seu incipiente processo de transformação espiritual, conclui Kushner. Outra referência citada por ela é Ingeborg Bachmann (1926-1973), poeta austríaca que morreu em consequência de queimaduras provocadas por um incêndio em seu quarto, causado por um cigarro (Clarice passou exatamente pelo mesmo drama, mas escapou).
No entanto, Kushner discorda que a modernidade de Clarice deva algo ao "stream-of-consciousness" (fluxo de consciência) de Joyce ou Virginia. Em termos de correntes literárias vanguardistas e de suas relações com os contemporâneos, ela não seria, acredita a crítica, "conscientemente experimental". Se tanto, Kushner vê maior afinidade com os artistas neoconcretos - Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape -, identificando em Água Viva uma tentativa de traduzir em palavras a ordem geométrica dominante nas obras neoconcretas. O que não pode ser dito talvez possa, afinal, ser mostrado, conforme sua lógica. A ideia que Clarice tinha de Natal, argumenta Kushner, era a de uma árvore decorada com formas geométricas irregulares em preto e cinza, como num metaesquesma de Oiticica. Foi a árvore que ela montou em Chevy Chase, Maryland, em 1950, ainda casada com o diplomata Maury Gurgel Valente.
Por aquela época, Clarice convivia com seus amigos mineiros - Fernando Sabino, Lúcio Cardoso, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos -, convivência essa que a associava automaticamente ao gosto dos mineiros por discussões em torno das tradições religiosas (especialmente a católica). Ela mesma era leitora de Imitação de Cristo, obra devocional do padre alemão Tomás de Kempis, publicada no século 15, cita o também mineiro Silviano Santiago. Quase ninguém, na época, lembrava de Clarice como uma escritora judia, nascida na Ucrânia. Santiago observa que ela, acima de qualquer classificação, foi sucessivamente apropriada pelos católicos nos anos 1950, depois por existencialistas nos anos 1960, pelas feministas francesas nos anos 1970 (notadamente a argelina Hélène Cixous) e, agora, pela intelectualidade americana, que a quer uma escritora encaixada na tradição dos grandes escritores judeus, como Saul Bellow e Philip Roth. Contribui para isso a biografia (Clarice), de Benjamin Moser, em que o americano sugere ser o judaísmo um tema "disfarçado" em seus escritos. Clarice, como Moser, não era religiosa. Ele garantiu mais de uma vez que a presença judaica não contribuiu para seu interesse inicial pela autora.
A psicanalista Maria Lucia Homem ressalta, com razão, que a associação de Clarice com a tradição judaica é anterior a Moser. A escritora tentou "dar forma ao incomensurável", diz. O silêncio, o impronunciável, aquilo que não pode ser escrito, toda essa discussão filosófica judaica, de acordo com a autora, é retomada por Clarice numa perspectiva moderna, cuja chave psicanalítica seria a "subjetividade pautada pelo inconsciente". Clarice, conclui a psicanalista, buscava em sua literatura algo além do texto, como já observara Benedito Nunes (1929-2011), pioneiro no campo ensaístico sobre a escritora. Em O Drama da Linguagem - Uma Leitura de Clarice Lispector (1989), o filósofo paraense faz uma análise fenomenológica e existencialista de sua obra a partir das leituras de Heidegger, Kierkegaard e Sartre (em particular, do conceito de náusea do filósofo francês, angústia que arrebata o corpo).
Hoje, é a filosofia de Clarice que se exporta. Entre os autores selecionados por Luis Maffei e Mayara R. Guimarães no livro Extratextos 1 para "reescrever" Clarice Lispector estão três portugueses (Pedro Eiras, Maria Teresa Horta, Hélia Correia), uma uruguaia (Vera Giaconi) e uma cabo-verdiana (Vera Duarte). O angolano Pepetela (O Planalto e a Estepe) foi consultado, disse que escreveria, mas acabou desistindo. "É engraçado como os ficcionistas de outros países adotam Clarice como uma escritora deles, como se houvesse uma linguagem neutra da qual não se soubesse a origem", analisa Maffei, também um dos autores da coletânea, que escolheu como personagem a senhora Jorge B. Xavier, de A Procura de Uma Dignidade, conto de Onde Estivestes de Noite (1974). Em sua versão, a senhora do título revisita o Maracanã em obras, imaginando entrar num show de Roberto Carlos nos anos 1970.
Maffei traduziu o conto da uruguaia Vera Giaconi, que vive em Buenos Aires, onde a obra de Clarice cresce. Nos EUA, as novas traduções de seus livros, avalia a crítica da Bookforum, são mais fiéis em preservar sua "rudeza intencional" e "idiossincrasias". Cinco dos nove livros traduzidos recentemente tiveram a supervisão de Benjamin Moser, frisa Rachel Kushner - e todas as traduções são menos herméticas que as anteriores, garante ela, cujo conto favorito de Clarice é um sobre a "luxúria" de tomar Ovomaltine, que lhe provocava náusea. Mas Clarice suspeitava não ser culpa da bebida. "Sou eu que não sou boa", concluiu.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

¨¨¨Landisvalth Blog: O veneno letal

¨¨¨Landisvalth Blog: O veneno letal:                             Landisvalth Lima Todos nós sabemos que a qualidade dos nossos políticos não é nada boa. E só enumerar as ...

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O Boca do inferno


                                 Romance de Ana Miranda

       Resumo analítico: Professor Landisvalth Lima

A cidade

Gregório de Matos
Descrição da cidade de Salvador no século XVII. Gregório de Matos lamenta a condição da cidade e pensa em Gôngora, poeta espanhol de sua preferência. Por que havia retornado? Via passar diante dos olhos uma cidade tomada por pessoas de todas as espécies. Muitos chegavam pobres e enricavam. Todos furtavam. Logo cedo, o Governador Antônio de Sousa Menezes, o Braço de Prata, vai se confessar aos Jesuítas, ao Padre Antônio Vieira. Nem tudo pode ser revelado. Por exemplo, os 24 anos recolhidos na quinta, em Olivas. Após ser reverenciado na igreja e nas ruas, O Braço de Prata chega à repartição para despachos.

O crime

Francisco Teles de Menezes, Alcaide-mor, levanta-se cedo e vai, acompanhado por escravos desarmados, para a casa da barregã Cipriana. Depois dali vai ao encontro do governador e sabe que haverá problemas. Uma carta revela uma trama contra o seu amigo, o Braço de Prata. Lá fora, há inimigos à espreita. Antonio Brito, encapuzado, lidera uma conspiração e atenta contra a vida de Teles de Menezes. Depois foram refugiar-se no Colégio dos Jesuítas. A notícia chega ao governador pelas palavras do arcebispo João da Madre de Deus. O governador jura vingança.
Maria Berco, dama de companhia de Bernadina Ravasco, filha de Bernardo Ravasco, leva a notícia de que Gonçalo Ravasco, irmão, é acusado como um dos conspiradores contra s vida de Francisco Teles. Gonçalo também está refugiado no Colégio dos Jesuítas. Bernardo Ravasco era irmão de Padre Antonio Vieira e Secretário de Estado. Ao saber do atentado ao alcaide, refugia-se na quinta dos padres e manda a filha e Maria Berco para o Recôncavo. No Colégio dos Jesuítas, Gonçalo, o pai, Gregório de Matos, Antonio Brito, João de Couros e o vereador Luiz Bonicho analisam os prós e contras da empreitada. Todos decidem pela entrega das armas e Bernardo Ravasco entrega a mão do alcaide para Maria Berco dar um fim. Depois, Bernardo foi ao encontro do irmão Antonio Vieira.
Enquanto isso, o governador comandava buscas na tentativa de encontrar culpados. Quem tinha alguma ligação com os Ravascos tinha sua casa invadida. Muitos fugiam. Ninguém sabia de nada. Ninguém viu nada. Os sinos anunciavam a morte do alcaide. Depois de missas e orações, o governador se encontra com o desembargador Palma e diz que vai invadir o Colégio dos jesuítas e prender os Ravascos, principalmente o cabeça: Padre Antonio Vieira. Palma acha a empreitada arriscada. Era o dia 5 de junho de 1683.
Maria Berco tenta livrar-se da mão do alcaide. Joga-a no lixo, mas acha desumano e pede a um marinheiro para dar uma volta de barco. Desconfiado, o marinheiro descobre a mão e rouba o anel. A mão é jogada no mar. No retorno á praia, são interpelados por soldados. Maria, que guarda o anel entregue pelo marinheiro, é presa como prostituta. No palácio da Secretaria, o governador prende Bernardo Ravasco como assassino do alcaide, mesmo sem provas. Vieira protesta e é também ameaçado de prisão. Dali, Vieira segue com o padre Soares para a quinta dos padres.
Maria Berco penhorou a anel do alcaide e recuperou a moeda que perdeu para os soldados. Comprou algumas coisas e foi ver João Berco, o marido. Luiz Bonicho e Donato Serotino, mestre de esgrima, temem O Braço de Prata e tramam contra sua morte. Após as aulas de esgrima, Donato Serotino ataca Antonio Souza e foge.
Gregório de Matos, com medo da prisão, saiu de casa e vagou pela cidade. Foi parar no dique. Lá pensou em Anica de Melo, prostituta e amante. A ela relatou sua vida, principalmente sua estada em Portugal. O poeta seguiu para a residência de Bernadina Ravasco. Ele a levaria para o Recôncavo. Ao saber da prisão do pai, cancelou a viagem. Maria Berco ficou encantada com o poeta.
Gregório se encontra com Gonçalo e Serotino. Fala ao irmão o encontro com Bernardina e sua recusa de ir ao Recôncavo. Mata lê para o Governador as sátiras de Gregório contra ele. No prostíbulo de Anica, Gregório entrega a Gonçalo ravasco as credenciais para entrar no palácio do governador e recuperar os escritos do pai.
Antonio Souza resolve invadir o Colégio dos jesuítas e prende Antonio Brito, João de Couros, Francisco Dias do Amaral, Barros de França, Antonio Rolim, vários jesuítas e estudantes. Também foram presos os capitães de presídio Diogo de Souza, o Torto, e José Sanches Del Poços. Gonçalo Ravasco escapou. Estavam no meio da multidão e assistiram à prisão dos companheiros.  
Gonçalo ravasco conseguiu adentrar no palácio do governo. Esteve a passos de matar, se quisesse, Antonio Souza. O objetivo maior era recuperar os escritos do pai. A empreitada foi um sucesso. Depois, Gonçalo se encontra com Gregório para irem ao palácio do arcebispado. No trajeto, o poeta descobre o marido cego de Maria Berco e surpreende o amigo com revelações picantes.
Gregório de Matos e Gonçalo Ravasco foram encontrar-se com o arcebispo João da Madre Deus. Lá, Gregório relatou o caos em que estava a Bahia e pediu providências. Cobrou ainda um comportamento mais discreto do arcebispo nas visitas ao palácio. Irritado, o arcebispo se retirou. No caminho de volta, relatou seus casos amorosos a Gonçalo. Já com Anica, confessou uma atração por uma moça: Maria Berco.

A vingança

Antonio Brito é torturado na cela dos tormentos e jogado na enxovia com João de Couros, Diogo de Souza e outros. Durante tortura, dá o nome de sete dos oitos encapuzados do crime do alcaide: Ele, Luiz Bonicho (vereador), Donato Serotino (mestre de esgrima), João de Couros, Diogo de Souza (o Torto), Manuel Dias (escrivão) e Moura Rolim (primo de Gregório de Matos). Antonio Teles, o novo alcaide, leva os nomes ao Braço de Prata. A suspeita do oitavo nome cai sobre Gonçalo Ravasco. O alcaide-mor quer vingar-se e deseja fazer uma carnificina. Antonio Souza não quer mortes, mas manda fazer prisões, ordena torturas e devassas. Gonçalo Ravasco, Maria Berco e Gregório de Matos estão na lista.
Antonio Teles visita Bernardo Ravasco na enxovia e mostra-se vingativo. Bernardina é chamada no palácio. O governador faz a proposta de soltar Bernardo Ravasco se ela dissesse onde estava o irmão. Bernadina procura Vieira e fala da proposta. Vieira sabe que o governador quer prender os dois e pede a Luiz Bonicho para, em Portugal, entregar cartas aos poderosos. Também escreve uma carta ao judeu Roque da Costa Barreto, ex-governador do Brasil, relatando os fatos e pedindo ajuda. Vieira pede ainda ao padre José Soares avisar a Gregório sobre as intenções do governador. Gonçalo deveria ser avisado.
O Blasfemo havia sido solto. Era colega de enxovia de Bernardo Ravasco. Ao sair de lá foi visitar Luiz Bonicho e Serotino. Disse-lhes que estavam ameaçados de prisão. Maria Berco maltratava o seu corpo com um chicote. Pensava em Gregório e no anel que roubou. Os soldados do governador invadiram  o quarto de Gregório e assustou Anica de Melo. Gregório, depois de ver a destruição que fizeram em seu quarto, amou uma negra novata do prostíbulo. Depois, leu poesias para ela.
Bernardina Ravasco pede a Maria Berco para procurar Gonçalo Ravasco e propor que ele se entregasse para liberar o pai. Maria berco não o encontra e vai à procura de Gregório de Matos. Contrário à troca, Gregório promete encontrar Gonçalo e pedir-lhe que fale com Bernardina. O poeta conversa com Gonçalo e o aconselha a não aceitar a proposta do governador. Para ele, Vieira é o principal alvo do Braço de Prata. Em sua casa, Maria Berco é levada presa na frente do marido.
Padre Vieira vai à procura de Samuel da Fonseca. Lá o rabino lembra os préstimos do padre jesuíta ao povo judeu. Vieira pede-lhe ajuda e Samuel promete fazer o possível para o processo da morte do alcaide sair das mãos de Palma e ir para as do desembargador João da Rocha Pita, que apuraria o crime com isenção. O rabino diz ainda que seria uma boa ajuda para a destituição do Braço de Prata. Gregório de Matos está com Anica de Melo. Ele faz um relato de sua vida e pergunta a Gregório sobre por que o chamam de “o judeu brasileiro”. Gregório faz uma retrospectiva do apoio de Vieira ao comércio internacional, que beneficiava os judeus, sua coragem ao enfrentar a Inquisição, suas missões secretas e diplomáticas, sua luta para livrar os índios da escravidão, sua prisão em Lisboa e os encontros que teve com o padre quando estava em Portugal.
Luiz Bonicho se prepara para ir á Europa. Vendeu todos os seus bens e agora sonha com um tempo em Lisboa e outro em Paris. Serotino chega disfarçado e Bonicho comunica-lhe a morte de Blasfemo. O corpo foi encontrado no Rio Vermelho. Fora executado. Enquanto isso, Vieira relembra, na quinta do Tanque, os tempos na corte. Bernardina Ravasco pede a Gregório um bom advogado para defender Maria Berco. Ele promete providenciar. Quando Gregório de matos se ausenta da casa dos ravascos, Bernadina e presa e jogada na enxovia onde estavam mulheres e familiares de outros presos.
Enquanto Vieira anda pela cidade refletindo sobre seus opositores e seguidores, Samuel da Fonseca faz sua parte. No palácio, o governador recebe os desembargadores Palma e Góis, acompanhados do alcaide Teles. Fica sabendo da suspeição de Palma. Vieira obtinha sua primeira vitória e o governador manda segui-lo. Antonio Teles pede ao governador para agir por conta própria. Quer fazer tudo ao seu modo e assumiria as responsabilidades. O Braço de Prata aceita. Vieira consegue visitar Bernardo Ravasco na enxovia. O padre mente ao irmão sobre a sobrinha. Disse que ele estava num engenho. Falou-lhe sobre o processo, as suspeição do Palma e a nomeação do Rocha Pita para o caso. Bernardo ficou esperançoso e falou a Vieira sobre a prisão de Maria Berco. Vieira contou-lhe sobre o roubo do anel. O Alcaide e o Gordo tentavam ouvir a conversa dos irmãos e se escondem quando o padre sai. O escrivão Manoel Dias vai ao encontro da amante, a negra Ursula do Congo. Confessa que não tem dinheiro para ir a Portugal. Padre Vieira vai providenciar tudo. Percebe que há policias por perto e pede a Ursula que não o denunciasse se fosse presa. Enquanto isso, Padre Vieira fazia visitas e era seguido pelo Gordo. Luiz Bonicho e Donato Serotino confabulam. Luiz está com cartas de Vieira para levar a autoridades em Lisboa e teme que o acusador passe a acusado.
Ana Miranda
Gregório de Matos vê a cidade da Bahia, cenário de seus versos satíricos e vai ao encontro de Samuel da Fonseca. Entrega-lhe os manuscritos de Bernardo Ravasco. Pede para seja levado para a Holanda e publicado. Samuel oferece também os seus préstimos para publicar os escritos do poeta. Gregório não quer. Diz ser um poeta que escreve para os que não sabem ler.
Manuel Dias pensava em Ursula do Congo. Estava ao lado da esposa Aldonça e pensava nos problemas: vistas de pessoas e morcegos no esconderijo. Era um péssimo sinal. Enquanto amava a esposa, O Gordo e Antonio Teles chegava ao local matando as escravas. Em seguida mataram o escrivão e a esposa, deixando apenas uma criança soluçando entre os mortos.Não esqueceram também de decepar a mão de Manuel Dias. Gregório visita Anica de Melo e fala da morte de Manuel Dias. Anica está desconfiada do seu amor por outra mulher. Gregório nega, Anica chora e depois se amam. Anica arranjou um esconderijo para Gregório no armazém de Vicente Laso, numa rua deserta. Para lá foram. Gregório usava uma cabeleira, presente de Anica. Como o local ficava perto da praia, Gregório ficou ao lado de Anica sentados nas pedras. Pensava em Maria Berco e sabia que quando mais visitasse Anica mais a magoaria.
Gonçalo Ravasco foi se despedir do tio. Vieira já não tinha certeza do sucesso da empreitada. Havia perdido muitos parentes em naufrágios e temia pelo sobrinho. Aconselhou-o a não ir. Gonçalo tentou acalmá-lo. Tudo daria certo. Viajaria com outros homens prejudicados pelos Menezes. Vieira pediu que falasse com o príncipe e relatasse o que ocorria na Bahia. Luiz Bonicho e Donato Serotino prepararam-se para a viagem à Europa. No embarque, encontraram o Gordo e vários policiais. Correram pelas ruas estreitas. Serotino acabou morto no meio da rua e Luiz Bonicho, mesmo oferecendo toda sua fortuna ao Gordo, teve sua mão decepada pelo Alcaide. Eles não encontraram as cartas de Vieira. Como o vereador havia desmaiado, o Gordo preocupou-se com as jóias. Bonicho recobrou os sentidos e atirou no Gordo, matando-o. Conseguiu adentrar no navio com o braço enrolado num pano. No mesmo navio viajava, como clandestino, Gonçalo Ravasco. João da Madre deus visita o governador e pede por fim ao processo contra Padre Vieira e Gregório de Matos. Governador rechaça ambos. João da Madre Deus procurou Gregório de Matos e exigiu que ele tivesse um comportamento condizente com o cargo que ocupava e que passasse a trabalhar, já que só aparecia na Sé para receber o salário. Gregório afirmou que estava sendo perseguido pelo Braço de Prata e negou-se a mudar o comportamento. Anica vai levar a Gregório a notícia da morte de Manuel Dias e fala também das fugas de Gonçalo e Bonicho. Fala também que Maria Berco será enforcada e que Bernardina Continua presa. Antonio Teles vai ao governador e fala do sucesso de sua empreitada. O governador não vê sucesso. As cartas de Vieira não foram encontradas, Bonicho e Gonçalo estão indo a Portugal e Rocha Pita vai comandar o processo. Ele afirma que vai retomar o comando.

A devassa

Começam as investigações sobre a morte do alcaide. Na relação, o desembargador Rocha Pita começa a colher depoimentos. O primeiro a depor é o desembargador Manoel da Costa Palma. Seu depoimento é amplamente favorável ao governador. Antonio Souza Menezes pede a Mata que investigue o ponto fraco de Rocha Pita. Achava que todo homem é corruptível. Vários depoimentos se sucedem. Vieira manda seus procuradores depor no Tribunal da Relação. Há dificuldades em encontrar os verdadeiros culpados, mas Rocha Pita sabe da impopularidade do governador. O meirinho Manoel do Porto, auxiliar de Rocha Pita, sugere perdão para todos. Decidido, Rocha Pita quer aprofundar as investigações e marca uma audiência com o Braço de Prata.
No palácio, Rocha Pita se queixa ao governador das prisões efetuadas. Fazia ver ao governador que ele não podia prender todos os inimigos pelo crime do alcaide. Gentil, o Braço de Prata lhe oferece facilidades para ter acesso a toda documentação do palácio. Enquanto isso, Manoel do Porto descobre documentos da aquisição de propriedades em nome de parentes do governador.
Gregório de Matos leu o processo de Maria Berco. Estava condenada à forca. Sabia que era inocente. Procurou Rocha Pita e pediu por Maria. A questão ficou resolvida. João Berco pediria clemência ao governador. Gregório prometeu pagar a fiança. Assim foi feito. Imediatamente, Gregório de Matos foi procurar Bernadina Ravasco. Já fora da prisão, encontrava-se doente. Gregório lhe informou sobre o processo de Maria Berco e sobre a fiança. Pediu-lhe o dinheiro. Não tinha, mas aconselhou-o a procurar Samuel da Fonseca, o judeu. Gregório foi ao Matoim em busca do judeu, acompanhado com o filho de Samuel, Gaspar da Fonseca. No caminho, depois das recordações do poeta sobre as mulheres de sua vida, foram atacadas por homens do governador. Salvaram-se mergulhando no rio Matoim. No destino, Samuel da Fonseca conseguiu o dinheiro. No dia seguinte, o da audiência, Gregório já aguardava João Berco para pagar a fiança e soltar a esposa. Como não aparecia, o poeta tentou encontrá-lo. Foi até a morada dele. Estava morto e com uma mão decepada.
Gregório vai procurar Anica de Melo. Seu lupanar estava sendo vigiado. Gregório marcou encontro na taberna da rua de baixo. Sobe da devassa feita na propriedade de Anica. Procuravam o poeta. Enquanto isso, o estudante Gaspar Fonseca era detido no porto. Num baú que levava estavam os escritos de Bernardo Ravasco. O Braço de Prata os queimou folha por folha. Samuel da Fonseca foi surpreendido quando encontraram o corpo do filho roído pelos peixes. Gregório procurou Rocha Pita e pediu mais uma vez por Maria Berco. Achava que o caso estava perdido. Com o dinheiro que seria da fiança, religiosos visitaram a prisão para dar conforto aos presos e Maria Berco foi solta e mandada para a casa de Samuel da Fonseca, no Matoim.
Salvador no século XVII
Padre Vieira queimava em febre, mas continuava em atividade. Alimentava-se entre os pobres quando padre José Soares comunicou-lhe a soltura de Bernardo Ravasco e a expatriação feita pelo governador. Mesmo assim, o irmão de Vieira estava escondido no convento de Santa Teresa. Rocha Pita também mandou suspender a devassa e soltar outros suspeitos presos indevidamente. Tal comportamento causou revolta a Teles de Menezes. O alcaide não se conformou e, numa reunião no palácio, ameaçou o Braço de Prata. Gregório de Matos, depois de passar a noite com Anica de Melo, comunica-lhe que vai para o Recôncavo.

A queda

Na Praia Grande, no Recôncavo, Gregório de Matos pensava na vida e sentia falta da cidade da Bahia. Vivendo sendo posses e alimentado pelas negras, pelo álcool e peixe, não conseguia esquecer Maria Berco. Foi ao engenho de João da Fonseca e ela ainda se recuperava dos maltratos da enxovia. Não pôde vê-la, mas ouviu um relato minucioso das questões comerciais da agricultura da região. A Bahia trabalhava para enriquecer a Europa.
Certo dia, Gregório recebeu a visita de Samuel da Fonseca. Disse-lhe que Maria Berco queria vê-lo na igreja do seu engenho. Gregório foi vê-la. Usava um véu para esconder as cicatrizes. O poeta a pediu em casamento. Ela marcou um encontro em Salvador. Depois que Maria se afastou, Gregório ouviu uma viola animar a praia. Havia negras por lá. Era o lugar dele.
Antonio de Souza Menezes recebe a visita de um mensageiro do Rei de Portugal. Trazia dois comunicados. Bernardo Ravasco seria readmitido como secretário e deveria ser imediatamente posto em liberdade. O outro comunicado era a demissão do próprio governador. Foi Tomás Pinto Brandão quem comunicou o fato ao Gregório. Agora poderia voltar a Salvador. Foi levar a notícia a dom Samuel. Lá, apareceram Eusébio de Matos, padre e irmão de Gregório, e Bernardo Ravasco, ainda com as marcas da prisão. As notícias não eram boas. Vieira não estava nas graças do Rei e todos os processos continuavam. Além disso, o padre estava muito doente. Dois cometas pairavam nos céus da Bahia e marcaram o fim do governo do Braço de Prata.

O destino

Gregório de Matos teve paz durante o governo de Antonio Luiz de Souza, o marques de Minas, mas desistiu de Maria Berco. Casou-se com Maria de Povos, uma negra pobre. Com ele teve um filho chamado Gonçalo, em homenagem ao filho de Bernardo Ravasco. Quando assumiu o governo Antonio Luiz da Câmara Coutinho, o Tucano, as sátiras de Gregório voltaram com carga total. Abandonou a mulher, vivia em patuscadas. O sobrinho do Tucano assumiu o governo. Era João de Lencaster, amigo do poeta. Foi encarregado de matar Gregório. Traído por Gonçalo Ravasco, o poeta foi preso e mandado para a ilha de madre de Deus. Em seguida, foi deportado para Angola. Lá, meteu numa sublevação de militares. Como colaborou com o governador daquela colônia, foi perdoado e mandado de volta ao Brasil. Estava proibido de viver na Bahia. Passou a viver da advocacia e morar no convento de Nossa Senhora da Penha, no Recife. Lá foi enterrado, vitimado por uma febre. Estava com cinqüenta e nove anos. A capela foi demolida e não há vestígios mais do poeta. Sua poesia foi registrada em livro, a pedido do próprio governador Lencaster. Pessoas de toda a Bahia traziam de cor ou nas mãos os poemas que mais representavam a vida naquele século.
Padre Antonio Vieira não cessou de escrever e publicar seus Sermões, mesmo estando cego de um olho. José Soares o auxiliava. Chegou a ser nomeado visitador geral das Missões. Defendeu a província do comércio desvantajoso com a Europa, defendeu os índios da escravidão, pregava a criação da moeda provincial. Ficou completamente cego e parcialmente surdo em 1696, mas ainda ditava cartas para José Soares. Quando não mais pôde, despediu-se da nobreza portuguesa. Em 1697, logo após uma visita de um soldado de frota, enviado pelo coroa, morria na quinta do Tanque assistido por José Soares e pelo reitor do Colégio da Bahia, Padre Andreoni.
Bernardo Ravasco morreu dois dias depois do irmão. Fora inocentado em 1687 no caso da morte do alcaide. Seus livros nunca foram encontrados, mas deixou numerosa obra poética em português e castelhano.
Gonçalo Ravasco assumiu o cargo de Secretário de Estado em lugar do pai. Após trair Gregório de Matos, tinha constantes pesadelos. Foi secretário exemplar.
José Soares morreu aos setenta e quatro anos. Dizia, quinze dias antes de morrer, que Vieira o havia chamado. Um dia, mandou anunciar a sua própria morte. Após recitadas as preces, veio a falecer.
João de Araújo Góis, o seu colega o desembargador Palma e o arcebispo João da Madre Deus foram vítimas da peste que sepultou a maior parte da população da Bahia, a partir de 1686.
Antonio de Souza Menezes, o Braço de Prata, foi nomeado, em Portugal, governador de Campo Maior. Viveu o resto de sua vida atormentado pelo rancor a Vieira e pelo arrependimento de um pecado nunca revelado.
O alcaide Teles obteve o perdão no governo de Lencaster e descobriu que a rivalidade entre Ravascos e Menezes tinha uma causa: Bernardina Ravasco.
Antonio de Brito ficou homiziado até 1692, quando obteve perdão do rei dom Pedro II, após interferência de Vieira e do papa Inocêncio XII.
Samuel da Fonseca mudou para Amsterdã. Casou-se com a filha de um rabino e logo ficou viúvo. Vendeu tudo que tinha e dedicou-se a imprimir livros. Morreu em 1698, na Holanda.
Luiz Bonicho chegou vivo a Lisboa. Lá tentou colocar uma mão de prata, mas estava sem recursos. Lutou na coroa pelo deposição do Braço de Prata e alistou-se numa tripulação de capitania destinada à Índia, em 1692. A viagem foi um fracasso. Dos quase seiscentos homens, só oitenta e quatro chegaram vivos. Sobreviveu, mas foi acometido de escorbuto e febre. Abandonado em Goa, foi para o golfo Pérsico e virou pirata. Nas lutas, perdeu uma perna. Rico, retornou a Portugal em 1698. Depois seguiu para Paris, de onde não se teve mais notícias suas. Só boatos.
Anica de Melo recebeu sua casa de volta e continuou com seu prostíbulo. Gregório sempre a visitava, mesmo casado. Apaixonada, quando soube do degredo do poeta, seguiu para Angola. O navio foi atacado por corsários holandeses e ela morreu afogada. Gregório nunca soube de sua morte.
Maria Berco esperou Gregório em vão. Sofreu muito quando do casamento com a viúva Maria de povos e no nascimento do filho dele. Rica e sem aceitar nenhum casamento proposto, viajou para Portugal no mesmo navio que levava o ex-governador Antonio Luiz da Câmara Coutinho. Em Lisboa passou a defender os judeus. Foi indiciada no tribunal da Santa Inquisição. Foi excomungada, teve seus bens seqüestrados e foi deportada para a ilha de São Tomé. Morreu na mesma ilha. Estava pobre e o rosto desconfigurado. Nunca esqueceu Gregório de Matos.
O molecote que ajudou os conspiradores na morte do alcaide nunca foi descoberto. Gregório de Matos afirmou certa época que ele foi um dos negros revoltosos que levantou as espadas contra os desembargadores. Foi enforcado e esquartejado.
Enquanto isso, a Bahia cresceu sem perder a marca da terra do prazer e do pecado. Continua encantando a todos e será a eterna cidade do Boca do Inferno.