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domingo, 17 de novembro de 2013

III Noite Cultural: Saberes Sertanejos faz de Fátima centro cultural regional

ArMarias - grupo musical eclético de Feira de Santana
(foto: Jorge Souza)
A III Noite Cultural: Saberes Sertanejos - da cidade de Fátima - mostrou que o evento criado pela ASCAF – Associação Cultural Arte Fatimense – veio para ficar e já se consolidou como o principal evento de qualidade artística de nossa região. A realização é da Prefeitura Municipal de Fátima. Fugindo dos modismos e apostando no talento e no valor da criação, o evento este ano foi realizado nos dias 15 e 16 de novembro, no Colégio Municipal Floriano Peixoto. Foram inúmeras e variadas as atrações e gostos musicais. Na primeira noite o público vibrou com Cigarro de Palha, Adriana e Patrícia, Claudionor Alves, Walter Oliveira, João Sereno, Edir Carneiro, Érica Sá e ArMarias.
Edir Carneiro na III Noite Cultural
(foto: Jorge Souza)
Fica do todo difícil destacar alguém. João Sereno continua impecável, Edir Carneiro já é nome para ser relacionado entre os grandes e Érica Sá está cada vez mais leve e suave. Quando Érica canta, a gente esquece que o mundo é cruel e pensa num paraíso incomensurável. Mas a novidade este ano foi a presença do grupo formado só de mulheres, quase todas nascidas em Feira de Santana, denominado ArMarias. As meninas tiraram quase todos das cadeiras e o salão do evento virou um clube de mistura de ritmos. E a proposta do grupo é mesmo fazer música brasileira, misturando ritmos. Só para dar um exemplo, elas tocam Adriana Calcanhoto e Vanessa da Mata em ritmo de forró, ao lado de clássicos como “Carcará”, sem causar constrangimentos, muito pelo contrário. Como está no portal (http://tnb.art.br/rede/armarias), o nome 'ArMarias' retrata a popularidade, a coisa comum e cosmopolita, mas traz também a singularidade quando agrega-se o sobrenome a cada 'Maria', cada uma com sua influência pra banda, embora não tenha nenhuma Maria no grupo. A ideia foi formar a banda com os talentos musicais feirenses e mostrar a força da mulher no cenário musical. As integrantes da formação original da banda são: Amanda Queiroz (voz, piano e baixo), Dayane Sampaio (voz, violão e percussão) Luana Reis (voz, violão, percussão e saxofone), Michelly Cardoso (voz, violão, percussão e saxofone) e Rebeca Alves (voz, violão e percussão).
Um bom público participou do evento
(foto: Jorge Souza)
No sábado, o evento continuou em alto estilo com João Ricardo, Luiz, Lito Nyght, Meireles, Vando Reis e Sinval, Paulinho Jequié, Maviel Melo, Rodrigo e Lucas Santana. Mas o espaço não foi dedicado unicamente à música. Ao longo das duas noites houve exposição de pinturas e obras de arte, apresentação de Banda de Pífanos, artesanato, bordados, teatro e poesia. A III Noite Cultural: Saberes Sertanejos parece um projeto com visão de futuro. Binho, vereador, membro da ASCAF e presidente da Câmara Municipal de Fátima, em perfeita sintonia com o prefeito Nego, o Idelfonso deles, no fundo, querem transformar Fátima num polo cultural regional. A cidade, com vocação para a boa educação, para o comércio e para a agricultura, quer deixar de ser apenas mais uma cidade que sofre com os infindáveis eventos da estiagem. Fátima quer ir mais longe, quer ser protagonista da cultura regional. A trilha é esta. 
Abaixo seguem vídeos de alguns artistas que participaram do evento, inclusive o belíssimo clip Pontal, de Érica Sá, filmado em Aracaju, e um resumo da II Noite Cultural, feita em homenagem ao heliopolitano Helvécio Santana. As fotos desta reportagem são do jornalista Jorge Souza, do portal Impacto Jovem.  Para vê-las, dê um clique AQUI.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Vinícius 100 anos: o Orfeu da Conceição de Marcel Camus

Felicidades e tristezas em Orfeu Negro
Com trilha sonora de Tom Jobim e roteiro baseado em peça de Vinicius de Moraes, filme de 1959 conta a história de um casal que se apaixona em uma favela do Rio de Janeiro, durante o carnaval. Assista ao filme completo no final da reportagem.
Ronaldo Pelli – da Revista de História
É bastante representativo que a música mais conhecida fora da peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, seja a que canta “tristeza não tem fim / felicidade sim”. Em todas as suas estrofes, a canção mostra como a felicidade é efêmera: gota de orvalho numa pétala de flor, pluma que o vento vai levando pelo ar. Curiosamente a música se chama "Felicidade" (Vinicius tem uma outra chamada "Tristeza", aquela em que se pede para ela ir embora), e é representativa porque resumiria o caráter da tragédia, que virou filme pelas mãos do francês Marcel Camus (sem parentesco aparente com o outro Camus, o Albert), com a trilha sonora assinada por Tom Jobim. Mas será que toda tragédia mostra que a tristeza não tem fim, apenas, no caso, a felicidade?
O filme de Camus, Orfeu negro, é falado em português e situado no morro da Babilônia, como se fosse uma espécie de Olimpo carioca, com o Pão de Açúcar de um lado, a praia do Leme do outro. Vinicius percebe isso e escreve na introdução da peça: “O morro, a cavaleiro da cidade, cujas luzes brilham ao longe”. Ele traz o mito trácio de Orfeu para a realidade dos negros e das favelas do Rio de Janeiro no fim da década de 1950, com direito a samba, carnaval e sensualidade. Novamente para comprovar isso, na introdução da peça, Vinicius sugere que “todas as personagens da tragédia devem ser normalmente representadas por atores da raça negra, não importando isto em que não possa ser, eventualmente, encenada com atores brancos”. Ou seja, não era uma cota, mas uma indicação de como o seu autor, o branco mais preto do Brasil, ficaria satisfeito. E, comprovando o nosso racismo velado, foi apenas na primeira montagem da peça, em 25 de setembro de 1956, com quase meio século de existência, que o Theatro Municipal recebeu um ator negro em seu palco. No caso, um elenco inteiro.
Para perceber a importância do herói Orfeu para a mitologia dos trácios – um povo que ficava exatamente na ligação entre o que hoje chamaríamos de Grécia, Bulgária e Turquia –, Voltaire, em seu Dicionário filosófico, o compara a Abraão, entre judeus, cristão e muçulmanos, a “Tot entre os egípcios, o primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules na Grécia” e “Odin nas nações setentrionais”. Sua história, diferente de outros mitos, não tem uma versão “oficial”, não aparecendo em Homero ou Hesíodo, por exemplo, mas já era conhecido no tempo de Ibicus (c. 530 a.C. ) e Pindar (522 – 442 a.C.), que o chamava de “pais das canções”. Em algumas fontes, se diz que Orfeu seria filho de Apolo e da musa Calíope (como a própria peça de Vinicius, que coloca como sua mãe Clio, a musa da História), em outras, esse parentesco não é citado. Há muitas referências a Dionísio, inclusive chegando a dizer que ele seria a hipóstase do deus grego, ou seja, sua realidade concreta, sua substância, sua “encarnação”. De qualquer forma, é curiosa a ligação com esses dois deuses (Apolo e Dionísio), principalmente após Nietzsche, em O nascimento da tragédia, os ter colocado em posições quase antagônicas, de um lado o belo, o perfeito, a verdade, a razão, do outro o instinto de força, de luta, de desequilíbrio. No meio, entre os dois, a música. É aí que Orfeu, o herói, se situa. É o ponto de convergência entre Apolo e Dionísio.
Morto por mulheres
Se não temos a certeza do texto oficial, podemos perceber que em todas as versões que se contam sobre o mito, há uma coincidência: Eurídice. É por ela que Orfeu se encanta, se apaixona, e é por ela que ele vai até o Hades, o reino dos mortos. Os dois estão juntos quando Eurídice foge da perseguição do pastor Aristeu, e, na fuga, pisa em uma serpente que a pica, e a mata.  Desesperado, Orfeu resolve usar a sua arte para trazê-la de volta à vida. Desce ao submundo, e encontra Hades que fica sensibilizado com a sua música, e com o seu sofrimento, e faz-lhe a proposta de trazer Eurídice ao mundo debaixo do sol. Hades aceita mas impõe uma condição: desde que, na trajetória, Orfeu não olhasse para sua amada. Mas o amor nem sempre é paciente. O desespero, a ansiedade e a insegurança foram maiores e Orfeu, antes de chegar de volta ao mundo dos vivos, se vira e a encara. Assim, desrespeitando a ordem de Hades, a perde para sempre. De volta ao mundo dos vivos, Orfeu foi morto – as assassinas variam, mas sempre mulheres – por aquelas que se sentiram desdenhadas e invejavam o amor de Orfeu por Eurídice. “Mas as Musas, a quem o músico tão fielmente servira, recolheram seus despojos e os sepultaram ao pé do Olimpo. Sua cabeça e sua lira, que haviam sido atiradas ao rio, a correnteza jogou-as na praia da Ilha de Lesbos, de onde foram piedosamente recolhidas e guardadas ” – explica La leyenda dorada de los dioses y de los héroes, da autoria do helenista Mario Meunier, citado na apresentação da peça de Vinicius.
O filme de Camus, que venceu a Palma de Ouro do festival de Cannes, além de ganhar o Oscar de melhor filme falado em língua estrangeira, segue esse mito. Orfeu (Breno Mello) é um motorneiro e um grande músico, um dos principais componentes da fictícia escola de samba do morro da Babilônia. Segundo a lenda em torno de si, é ele quem faz, com o seu violão, o sol se levantar todos os dias de manhã. É um sujeito alegre, simpático, por quem as mulheres do morro vivem suspirando, enquanto os homens o consideram um grande camarada. Mais atirada que as demais, Mira (Lourdes de Oliveira) consegue levá-lo a um cartório para que fiquem noivos. Mas o homem que os atende, como um oráculo, já vaticina: Orfeu sempre ficou, fica e ficará com Eurídice. E Eurídice (Marpessa Dawn) já estava lá. Tinha acabado de chegar ao morro da Babilônia, vinda do Nordeste, fugindo de um homem, fazendo as vezes do pastor Aristeu, que ela diz que lhe quer mal. Chega no início do carnaval e vai ficar na casa da alegre Serafina (Léa Garcia), que vai proteger o casal e criar situações para que Mira não perceba a aproximação dos dois. A partir daí, a história segue até o seu esperado fim.
O que Vinicius de Moraes (e depois Camus) fez com Orfeu foi seguir uma tradição da modernidade, a mesma que o irlandês James Joyce já tinha seguido ao visitar a Odisseia em seu clássico Ulysses. Eles trazem o mito grego para os dias de então, mostrando como eles são eternos, e adaptar determinadas passagens para cenários e situações da cidade em questão. Joyce com Dublin, Vinicius com o Rio, mas o Rio mais pobre que há. Além disso, Joyce também usou da linguagem que era mais cara aos anglo-saxões, a literatura, enquanto Vinicius quis misturar palavra, som e gestos no teatro, mostrando o caráter menos letrado do nosso povo, mas não menor em nenhum aspecto, por conta disso.
Na ida ao reino dos mortos, por exemplo, Camus teve a brilhante ideia de adaptar um dos principais símbolos que há no Brasil de ligação entre os vivos e os não-vivos. Após a morte de Eurídice, Orfeu fica vagando pela cidade cheia por causa do carnaval. Em seguida, é levado por um faxineiro que se apieda de seu desespero para um terreiro de uma religião afrodescente, onde acompanha um ritual de evocação de espíritos. O seu acompanhante sugere que ele cante, para chamar Eurídice de volta, e Orfeu obedece. O clima da cena aumenta, com som de atabaques crescendo de volume, várias mulheres vestidas de branco andando em círculos, como se quisessem entrar em transe, até que uma delas recebe um santo. Orfeu fica assustado, mas continua cantando, até que se ouve uma voz, a voz de Eurídice, vinda de trás de Orfeu. Ele fica ainda mais surpreso, não esperava conseguir encontrá-la. Eurídice diz que eles poderiam conversar, mas que nunca mais se veriam. Ele jamais poderia se virar para vê-la. Se fizesse isso, ela desapareceria para sempre. Desesperado e sem aguentar ficar longe da mulher que ama, Orfeu se vira e vê não Eurídice, mas uma mulher mais velha, que não tinha aparecido até então, e que logo depois, sai do transe. O espírito de Eurídice já tinha ido embora.
Ao voltar para o morro, depois de já ter encontrado, ao menos, o corpo de Eurídice, Orfeu, carregando o cadáver nos braços, é recebido por uma ensandecida Mira, que havia descoberto que estava sendo enganada. Ela ataca Orfeu que morre, ao cair de uma ribanceira, junto com Eurídice. O herói, na morte, se une à sua amada.
Além da felicidade
A história de Orfeu, como a grande maioria das tragédias gregas, mostra que não podemos escapar do nosso destino último, que é a morte.  Mas mostra também que até lá, até o suspiro final, podemos navegar nessas águas nem sempre calmas da maneira como conseguirmos. Nem sempre os ventos são a favor, mas podemos nos adaptar para tirar o melhor proveito disso. O que Vinicius e Camus fazem, com essa adaptação do mito trágico, é jogar luz ao caráter melancólico, além do galhofento, da cultura nacional. Mostram que, além da felicidade, também é do nosso caráter, até por sermos humanos, a tristeza. Não dá para escapar dela. Essa afirmação pode parecer até estranha num momento como os tempos presentes, em que se busca o prazer de maneira desesperadora, como se viver sem prazer já fosse um sofrimento em si. Mas tristeza e felicidade são, de uma maneira misteriosa, interligadas. Assim como Apolo e Dionísio.
Certamente há momentos em que é complicado pensar que haverá outro carnaval, quando a quarta-feira de cinzas chega, como mostra uma das estrofes da música “Felicidade”, de Vinicius: “A felicidade do pobre parece / A grande ilusão do carnaval / A gente trabalha o ano inteiro/ Por um momento de sonho/ Pra fazer a fantasia / De rei ou de pirata ou jardineira/ Pra tudo se acabar na quarta-feira”. Falta um ano inteiro de tristezas, que parecem não ter fim.
Porém, é também certo que o próximo carnaval é mais aguardado e saboreado quanto mais cinzenta for a quarta-feira. É essa dualidade que faz com que ambos os lados tenham sabor. Se só tivermos contato com um deles, ele acaba se autodeprimindo, ficando sem forças, já que não haverá felicidade o suficiente para se manter para sempre alegre, ou para livrar de uma tristeza profunda. E basta-nos estar na vida para saber que ela sempre se movimenta. Como se a felicidade tivesse fim, sim, mas a tristeza também. Apenas não conseguimos enxergar esse fim, quando estavamos vivenciado um ou outro sentimento. Mas o simples fato de os sentimentos existirem, mostra essa dinâmica de um lado para o outro, como se fosse um pêndulo.
Apesar da grande tragédia, o fim do longa deixa uma pista para essa conclusão. Os dois meninos que acompanham Orfeu e Eurídice durante todo o filme, correm para tocar o violão de Orfeu e assim fazer o sol nascer – como o herói sempre fazia. O sol, de maneira completamente independente das nossas vidas, continua a se levantar. Mas nós podemos dar um sentido para ele – no caso, tocando a música que o fará despertar. Ao se levantar, o sol também nos mostra mais que uma indiferença para com todas as tragédias debaixo dele. Nos aponta uma proposta de vida: de que precisamos seguir, sempre. Mesmo nos momentos mais tristes.

Mais uma história debaixo d'água

Adeus, trem fantasma
Há cem anos era inaugurada, em Porto Velho (RO), a ferrovia Madeira-Mamoré, cuja implantação na Floresta Amazônica custou a vida de 6 mil trabalhadores, de trinta nacionalidades.
Texto e fotos: Heitor e Silvia Reali – da revista PLANETA
Um trecho de oito quilômetros entre Porto Velho e Santo Antônio será reativado
Duas monumentais obras da engenharia brasileira do século passado foram implantadas em Rondônia: a quilométrica linha telegráfica da Amazônia, levada a cabo pelo marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, e a ferrovia Madeira-Mamoré, aberta em plena floresta tropical, que completa 100 anos em agosto. Da primeira não resta um fio, mas a linha de comunicação que uniu Rondônia ao resto do Brasil não se desfez. A segunda está indo pelo mesmo caminho, sem ressalvas. Trabalhadores indianos ajudaram a construir a "Ferrovia do Diabo", junto com espanhóis, colombianos, panamenhos, poloneses e gregos.
Raramente um historiador lida com a história ao vivo, mas em Rondônia isso ainda é possível, pois o que sobrou da sucateada ferrovia ainda dá para ser vislumbrado. Muitos vestígios estão lá: locomotivas abandonadas, trilhos perdidos no mato, um museu em Porto Velho, outro em Guajará- Mirim, um cemitério abarrotado de cruzes, ruínas de estações fantasmas e pontes metálicas enferrujadas.
Parte desse legado está submergindo sob as águas represadas das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, como a ponte metálica Jaci-Paraná, com 84 metros de vão, um ícone da ferrovia. "Essa vai para baixo d'água", lamenta o historiador Aleksander Palitot, da Faculdade Porto, da Fundação Getúlio Vargas de Porto Velho. "Vários trechos da ferrovia foram inundados. Outra perda é a inundação do Marco Rondon, ou Marco Divisório, um obelisco centenário construído pela expedição Rondon, que implantou as linhas telegráficas em 1911, durante a demarcação dos Estados do Amazonas e de Mato Grosso", diz o historiador. Da memória apagada sobreviverão, além dos museus, pontes ferroviárias convertidas em rodoviárias, já usadas na rodovia Porto Velho-Guajará-Mirim.
O descaso com a preservação do que resta da ferrovia histórica leva o arquiteto Luiz Leite de Oliveira, presidente da Associação de Amigos da Madeira-Mamoré, a denunciar "a degradação, o abandono e o completo desaparecimento que também ocultará o orgulho de termos construído uma obra considerada ciclópica na época".
Exagero? Nem tanto. Na ocasião, a construção da estrada foi comparada à abertura do Canal do Panamá. Personalidades como o presidente Theodore Roosevelt, dos Estados Unidos, o escritor Mário de Andrade e o médico e antropólogo Edgar Roquette-Pinto, pioneiro do rádio no Brasil, "vieram a Rondônia conhecer o resultado do desafio de construir uma ferrovia no coração da Floresta Amazônica", ressalta Palitot.
O apogeu da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) foi sua inauguração festiva em 1º de agosto de 1912, em Porto Velho. Os 366 quilômetros da ferrovia cortavam a floresta unindo as recém-fundadas Porto Velho e Guajará-Mirim (na divisa com a Bolívia). Desde 1867, sonhava-se com a obra. Naquele ano o Brasil firmou com a Bolívia o Tratado da Amizade que permitia ao país andino a navegação pelos rios Beni, Guaporé, Mamoré e Madeira, para escoar produtos pelo Oceano Atlântico. Havia só um porém: faltava transpor um extenso trecho encachoeirado do Rio Madeira - o que só uma ferrovia conseguiria.
A ferrovia da selva
Desativada em 1957, boa parte dos 366 Km de trilhos da ferrovia Madeira-Mamoré, de Porto Velho a Guajará- Mirim, em Rondônia, vai ser inundada pela subida das águas dos reservatórios das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau.
A primeira concessão para a construção da estrada foi acertada em 1868 e entregue ao americano George Church, presidente da Madeira- Mamoré Railway Co. Em 1872, iniciaram- se as obras. Com problemas similares aos encontrados pelos engenheiros franceses na primeira fase da construção do Canal do Panamá - agravados pelas dificuldades de abrir caminho pela floresta e o exorbitante número de trabalhadores mortos por malária e febre amarela -, duas empresas contratadas para a execução da ferrovia foram à falência, deixando para trás, em 1879, sete quilômetros de trilhos colocados.
Em 1879, a Bolívia sofreu uma traumática perda de território na costa do Oceano Pacífico, conquistado militarmente pelo Chile durante a Guerra do Pacífico (1879-1883), travada também contra o Peru. Os bolivianos perderam a cidade de Antofagasta e se viram sem saída para o mar. A ferrovia Madeira-Mamoré e os rios amazônicos viraram a única alternativa para a exportação dos seus produtos, pelo porto de Belém, no Oceano Atlântico. Entretanto, nenhuma outra empresa de engenharia topou encarar o desafio e Church desistiu da empreitada.
Para piorar, as relações entre Brasil e Bolívia também se deterioraram. Na virada do século 20, a Amazônia ganhou prosperidade com o ciclo da borracha, graças à seringueira Hevea brasiliensis. Espalhadas pela floresta, as árvores produziam uma borracha de qualidade única, essencial para o transporte, a comunicação e a indústria da época, um pouco como o petróleo é hoje em dia. Até 1910 a borracha foi o segundo produto da exportação brasileira, perdendo apenas para o café. Em consequência, a região recebeu investimentos, conheceu um boom econômico, inaugurou o Teatro Amazonas, em Manaus, e os seringalistas que haviam invadido a floresta boliviana proclamaram a República do Acre, em 1889.
Graças aos esforços do diplomata José da Silva Paranhos, o barão do Rio Branco, evitouse uma guerra com o país vizinho por meio do Tratado de Petrópolis, de 1903, pelo qual a Bolívia vendeu o Acre ao governo brasileiro. Pelo acordo, o Brasil se comprometeu a indenizar os bolivianos em dinheiro e a construir efetivamente a estrada de ferro. Em 1907 o governo federal assumiu a construção da ferrovia, entregando o empreendimento ao empresário norte-americano Percival Farquhar (1864- 1953). Foi a primeira grande obra da engenharia civil norte-americana fora dos EUA após o início da construção do Canal do Panamá (então em andamento). Quase 800 engenheiros e trabalhadores norte-americanos participaram da empreitada.
Farquhar, na verdade, estava mais interessado na borracha acreana do que nos produtos bolivianos. Segundo o jornalista Elio Gaspari, pesquisador do empreendimento, o norte-americano foi o maior empresário de serviços públicos da história nacional. "Ao câmbio de hoje, seus investimentos no país equivaleriam ao controle da Light, da Vivo, da Eletropaulo, da Acesita, dos metrôs do Rio e de São Paulo e ele ainda seria o principal acionista de nossos portos e ferrovias", diz Gaspari.
Sob suas ordens, o trajeto da ferrovia foi alterado, pântanos foram saneados, o médico e sanitarista Oswaldo Cruz foi enviado a Rondônia para dirigir as campanhas de saúde, construiu-se um hospital de referência em Porto Velho e a capital de Rondônia ganhou sistemas de água e esgoto.
Rastro de sofrimento
Depois de seis anos de construção, que empregaram 21 mil homens de 30 nacionalidades e percalços como desmoronamentos causados por chuvas e ataques de índios, a obra terminou em 1912. Seis mil trabalhadores perderam a vida na empreitada, a maioria vitimada pela malária e a febre amarela.
Uma vez implantada, a "Ferrovia do Diabo" tinha tudo para dar certo, pois a borracha seguia valorizada no mercado mundial. Mas veio outro imprevisto. No fim do século 19, o inglês Henry Wickham contrabandeara para a Inglaterra 70 mil sementes da seringueira, liberadas pela alfândega de Santarém como "espécies exóticas e delicadas para o Jardim Botânico de Londres". A hévea foi plantada na Indonésia e na Malásia e começou a produzir intensivamente em florestas cultivadas. Assim, em 1913, a ferrovia sofreu outro golpe: os plantadores asiáticos inundaram o mercado com uma borracha de boa qualidade a preços baixos. A biopirataria de Wickham arruinou a economia da borracha da Amazônia e deu à Inglaterra o monopólio global do produto até a Segunda Guerra Mundial, quando surgiu a borracha sintética.
Falida, a ferrovia se arrastou nas mãos da Madeira-Mamoré Company até 1934, quando a empresa rescindiu o contrato de arrendamento de 60 anos e a estrada voltou para as mãos do governo federal. Durante a Segunda Guerra Mundial a Madeira- Mamoré recuperou valor estratégico, recolhendo borracha para o esforço de guerra aliado. Até 1957, chegou a registrar tráfego de passageiros e cargas. Em 1966, entretanto, o governo federal determinou que fosse desativada e substituída por uma rodovia, para não configurar um rompimento do Acordo de Petrópolis. Tal rodovia é a união da BR-425 (Porto Velho-Guajará-Mirim) e da BR-364 (Porto Velho-Cuiabá). Em 1981, um pequeno trecho da ferrovia voltou a funcionar para fins turísticos, mas foi paralisado no ano 2000. 
Quarenta anos depois do último apito das marias-fumaças, uma pátina de esquecimento líquido cai sobre a estrada, inundada pelas águas do reservatório da hidrelétrica de Santo Antônio. Como compensação pelos impactos da obra, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional determinou a restauração da oficina da EFMM em Porto Velho (5,7 mil metros quadrados de área construída e galpões de 13 metros de altura), paga pelo consórcio Madeira Energia, responsável pela usina.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Os cultos também erram?

Por Ataliba T. de Castilho – da revista Língua Portuguesa

Pesquisas mostram que norma culta é variável. Que as línguas naturais não são homogêneas todo mundo sabe. 
Professor Ataliba no Programa do Jô, da Rede Globo
Elas variam segundo parâmetros bem conhecidos: variam no tempo (donde o português arcaico, médio, moderno e contemporâneo), no espaço geográfico (donde o português europeu, africano, brasileiro), no espaço social (donde o português padrão, ou culto, e o português vernacular), e até no espaço individual (donde o português espontâneo e o formal, o de idosos e o dos jovens). A pesquisa tem mostrado que qualquer um desses parâmetros pode ser detalhado. A dimensão geográfica do português brasileiro, por exemplo, compreende o português do Norte, do Nordeste e do Sul. Os pesquisadores ligados ao Projeto do Atlas Linguístico do Brasil têm comprovado isso. Basta consultar o sítio www.alib.ufba.br/. Isto quer dizer que qualquer manifestação linguística vem sempre marcada pelo fenômeno da variação, mais acentuada em línguas como o italiano, menos acentuada em línguas como a portuguesa. Fatos sócio-históricos explicam isso. Curiosamente, persiste entre nós a ideia de que a variedade padrão, a norma culta, escapa a essa heterogeneidade. Não é o que as pesquisas têm demonstrado. Desde os anos 1970, maiormente depois de 1978, os pesquisadores do Projeto de Estudo da Norma Urbana Linguística Culta passaram a constatar que a norma do português brasileiro é heterogênea.  Depois disso, o projeto Gramática do Português Culto Falado no Brasil procedeu a uma descrição minuciosa da norma, com base nos materiais levantados pelo projeto anterior, identificando diferenças por toda parte. Elas não impedem a intercompreensão, mas existem. Impossível resumir aqui a enorme bibliografia gerada pelos dois projetos. Pena, aliás, que a mídia brasileira não a conheça, e siga repetindo lições aceitáveis até os anos 1970. Mesmo assim, peço a atenção do leitor para o que Dinah Callou, João Antônio de Moraes de Yonne Leite descobriram no capítulo "Mapeamento dos processos", em Maria Bernadete M. Abaurre (org.) A Construção Fonológica da Palavra, São Paulo: Contexto, 2013, que é o volume VII da série Gramática do Português Culto Falado no Brasil. Eles observaram a realização de seis processos: palatalização do /s/ em final de sílaba (meninos ou meninosh?), fricativização e posteriorização do /r/ antes e depois de vogal (comer ou comeR?), palatalização do /t/ e do /d/ diante de /i/ (dia ou djia?), vocalização do /l/ em final de sílaba (anil ou aniu?), nasalação da vogal pretônica antes de consoante nasal (bànana, ou bãnana?), elevação da vogal média pretônica [e] à [i] e [o] à [u] (pequeno ou piqueno? moleque ou muleque?).  Esses linguistas concluíram que esses processos "não evidenciam, como em princípio seria de esperar, uma coincidência entre o comportamento linguístico dos vários falares e as áreas geográficas correspondentes". Eles recolhem num mapa suas conclusões, evidenciando assim que também a norma culta é variável. O leitor pode colecionar outras evidências folheando os 8 volumes de ensaios desse projeto, e os 7 volumes da fase de consolidação, de que se publicaram 4 até aqui. Não é por falta de pesquisas que hoje se conhece a norma culta do português brasileiro. E ainda bem que é assim! As línguas são muito complexas e variadas, apesar do senso comum em contrário. Uma língua homogênea seria inteiramente disfuncional. 

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Mentes comprometidas “Em transe”

Último filme do premiado diretor Danny Boyle, 'Em transe', levanta aspectos da psiquê para compreender até que ponto a ação das pessoas é fruto de decisões individuais
Carolina Ferro – da Revista de História
James McAvoy faz o segurança Simon [Foto: Divulgação]
Todos os dias, inúmeras pessoas sofrem influência direta ou indireta para tomar suas decisões cotidianas, seja através de uma propaganda, da conversa com os amigos, com a família, na escola ou no trabalho. Os mais autocríticos (ou com maior autoconhecimento) conseguem perceber melhor essas nuances, mas mesmo eles se surpreendem ao ver que agiram por influência de outrem.  Em transe faz o espectador questionar o tempo inteiro: até que ponto as decisões de uma pessoa correspondem aos seus anseios? E que segredos nós queremos revelar?
A história começa com a tentativa de roubo da tela “Voo das bruxas”, de Goya (1746-1828), quando estava sendo leiloada, na Inglaterra. O responsável pela equipe de segurança, Simon (James McAvoy) consegue fugir com a obra de arte, mas o chefe da gangue de ladrões, Franck (Vincent Cassel) o encontra e dá um golpe em sua cabeça. Simon cai desmaiado e Franck foge com a pasta que deveria conter a tela. Como a pasta estava vazia, Franck sequestra Simon para que ele fale onde escondeu o objeto do furto, mas, devido ao golpe na cabeça, ele não consegue se lembrar.
Após algumas tentativas frustradas de “arrancar” informações sobre a localização da tela, Franck decide que a melhor opção é contratar um especialista em hipnose para “resgatar” a informação perdida na mente do homem que a guardou. É permitido a Simon que ele escolha seu terapeuta através de uma lista de hipnotizadores encontrados na internet. Ele olha todas as fotos, mas paralisa na imagem de Elizabeth (Rosario Dawson) e a trama começa a ganhar corpo.
A princípio, Elizabeth parece tentar ajudar o segurança a escapar da gangue de ladrões. Descoberta, ela se insere no cotidiano da gangue e se envolve amorosamente com os dois protagonistas. Uma rede de intrigas e violências se estabelece em torno das seções de hipnose. A cada momento, Simon começa a descobrir mais detalhes de sua vida que estavam obscuros e os personagens passam por provações constantes de amor, ódio, companheirismo, lealdade e obsessão.
Elizabeth é a grande personagem da película. De traços simples (mas muito fortes), rosto limpo, cabelos longos sem corte e personalidade aparentemente frágil, ela se transforma numa mulher fatal quando demonstra mexer com a mente dos dois personagens como quem brinca como fantoches. Se antes eles eram opositores apenas por conta do quadro perdido, tornam-se inimigos mortais na disputa pelo amor da terapeuta.
  Trance - Dir. Danny Boyle, 2013, Reino Unido
As imagens de câmeras paradas e focos de luz intensos de apenas uma cor, típicos dos filmes de Danny Boyle também estão presentes e fornecem uma aura de participação de quem aparentemente apenas observa. Não há um só momento em que o espectador se desligue e tal como os personagens masculinos da história, ele se sente enganado pela trama.
O tema da hipnose já apareceu em várias obras cinematográficas de gêneros distintos. Na comédia romântica, destaca-se O amor é cego (2001), dirigido por Peter e Bobby Farrelly, onde o personagem Hal (Jack Black) é hipnotizado para que ele veja apenas a beleza interior das pessoas. O protagonista acaba se apaixonando pela bela e generosa gordinha Rosemary (Gwyneth Paltrow) e com o fim da hipnose começa a enxergar as pessoas de outra forma, promovendo uma mudança comportamental estrutural, bem diferente das convenções sociais e estéticas predominantes que tanto influenciam na hora da escolha de um par amoroso. Outro suspense, mais próximo do filme analisado é o que leva o nome da prática terapêutica: Hipnose (2002). Nele, uma policial (Shirley Henderson) que pretende parar de fumar procura um terapeuta (Goran Visnjic) que utiliza do método para acabar com o vício. A hipnose praticada pelo psicólogo passa a ser vista como um dom, pois a policial começa a desvendar crimes através da prática. Mas, além disso, segredos que jamais seriam revelados com o paciente consciente aparecem desvendados nas seções. Daí vem um dos problemas mais sérios. A questão da viabilidade da prática, tendo em vista revelações do subconsciente que o indivíduo prefere manter escondidas.
O termo "hipnose" foi cunhado em 1842, por James Braid (1795-1860), mas foi com Jean Charcot (1825-1893) e com Sigmund Freud (1856-1939) que a hipnose tornou-se amplamente conhecida. Enquanto para Charcot, apenas os histéricos eram hipnotizáveis, Freud dedicou-se profundamente à prática no início de sua carreira. Acabou por abandoná-la, pois acreditava que ela trazia apenas memórias reprimidas. Aos poucos, os sonhos foram tomando uma importância muito maior para o médico e criador da psicanálise.
Posteriormente, vários personagens, de médicos a terapeutas e mesmo ilusionistas, se utilizaram da hipnose com certo sucesso, mas com finalidades distintas. No Brasil, quase todos já viram apresentações televisivas do hipnólogo Fábio Puentes, conhecido por entortar talheres e fazer com que as pessoas comam cebolas como se fossem maçãs.
De fato, a prática da hipnose pode ser considerada uma forma de poder. Enquanto o indivíduo estiver sob efeito do transe, a mente fica sob controle de outra pessoa e o melhor e o pior de um ser humano podem ser descobertos. É o que acontece com Simon e Franck. Estragando o suspense (mas nem tanto), Simon (o bom moço da segurança) mostra-se um monstro para os padrões sociais contemporâneos, Franck (o líder dos ladrões) demonstra-se uma pessoa confiável e gentil e Elizabeth (a terapeuta) consegue justificar a dominação da mente dos dois homens.

O filme não ficou muito tempo em cartaz, mesmo nos cinemas mais restritos. Trata-se de uma obra bem diferente de Quem quer ser um milionário (2008), ou Trainspotting (1996) - grandes sucessos de Danny Boyle. Não se trata de um grande blockbuster, mas faz pensar se todas as nossas sugestões são fruto de fortes influências que nossa mente sofre. Até a escolha deste filme para a seção pode ser parte de um jogo feito pelo diretor para promovê-lo. Quem sabe?