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segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Dossiê Canudos (1): Viver e morrer em Belo Monte

O arraial de Conselheiro tinha hierarquias e personagens estratégicos para a rotina e para a guerra
                          *Walnice Nogueira Galvão
Canudos em 1897, antes da completa destruição (Litografia: D. Urpia)
Ao fim de uma série de protestos contra os novos impostos republicanos, enfrentando a polícia baiana em vários lugarejos, Antônio Conselheiro e seus prosélitos instalam-se em Canudos em 1893. A peregrinação de duas décadas chega ao fim. Eles vão entrincheirar-se e fortificar-se no fundo do sertão, no alto das serranias, como se tivesse soado um toque de recolher.
As terras em que ficava Canudos não eram desertas e ali já existia um povoado assim chamado, à margem do Vaza-Barris, um rio intermitente. Os conselheiristas se estabeleceram e sobreviveram de uma parca agricultura de subsistência, plantando mandioca para o preparo de farinha e cana-de-açúcar para a fabricação de rapadura, criando cabras. Assim se fundou o Belo Monte, nome bíblico dado à cidadela que ergueram como baluarte contra a República instaurada em 1889, sobrepondo-se à Canudos preexistente.
Em pouco tempo abriu-se uma rua principal na praça das igrejas, que ficou conhecida como a rua das Casas Vermelhas, destacando-se do conjunto devido à cor das telhas. As duas igrejas defrontavam-se de dois lados da praça. A primeira era a de Santo Antônio ou Igreja Velha, consagrada em 1893 com festas e foguetório. A segunda, a do Bom Jesus ou Igreja Nova, de maiores proporções, não chegaria a ser terminada. A capelinha do povoado anterior passou a ser chamada de Santuário, preservando o altar e abrigando imagens de santos. Num quartinho anexo morava Conselheiro, e ali seria sepultado.
Esse era o centro ao redor do qual, gradativamente, se ergueria a aglomeração de casebres. A construção em taipa ou pau a pique – barro reforçado com galhos – tornava a cidadela indistinguível, na mesma monotonia parda da caatinga. O conjunto, sem um mínimo de cuidados de urbanização – como arruamento, calçadas, esquinas e muito menos saneamento ou água encanada – viria a formar “um labirinto inextricável”, nas palavras de Euclides da Cunha.
Na vida cotidiana do arraial predominava a religião. Como de hábito no sertão e em geral no interior do país, era uma religião festiva, em contraste com a austeridade preconizada pelo líder, que não tolerava luxos ou abusos de conduta. Os habitantes organizavam suas vidas em torno de dois ofícios religiosos diários, à madrugada e à noitinha, e periodicamente assistiam aos conselhos do Peregrino, com data previamente marcada, para os quais vinha gente até de longe. Canudos tornou-se um centro de romaria, atraindo crentes para pedir audiência ao Conselheiro e fazer doações.
À medida que a guerra se avizinha, começa a acorrer gente de todos os quadrantes da região. Multiplicam-se as cartas dos canudenses chamando parentes e amigos para virem em seu socorro. Muita gente pelo sertão abandona seus pagos para acudir Canudos, carregando família e agregados.
Nem todos eram miseráveis no séquito: gente de posses havia se livrado de tudo para acompanhar o Peregrino. Embora não fosse uma comunidade exatamente igualitária – havendo distinção visível entre mais ricos e mais pobres, dada pela aparência das casas – preservavam-se ali traços de igualdade. O mais marcante era a inexistência de propriedade privada da terra. Quem chegasse podia erguer sua choça sem pagar nada a ninguém. Alimentos, roupas e dinheiro, recebidos em donativo pelo Conselheiro, eram repassados aos desafortunados.
Para que a comunidade fosse funcional, alguma estrutura era necessária. Seu Estado-Maior, por assim dizer, era a Guarda Católica. Constituída por 12 apóstolos, sobrepunha-se a tudo o mais porque formava o quadro de imediato apoio a Conselheiro. Os guardas andavam uniformizados, armados e municiados, e recebiam soldo. Revezavam-se como sentinelas defronte ao Santuário, onde ele residia. Em seguida vinha a Companhia do Bom Jesus ou Santa Companhia, bem mais numerosa, contando de 1.000 a 1.200 cabeças. Um grupo de beatas chefiadas por uma mordoma (Benta ou Tia Benta) cuidava da administração da residência e do bem-estar do Conselheiro. Ele quase não comia. Apenas o suficiente para manter-se vivo, mas observando total abstinência.
O arraial contava com uma professora, de modo a não descurar da educação das crianças. O próprio Conselheiro frequentara escola, sabendo ler, escrever e até rudimentos de latim. Um secretário, Leão Ramos, atendia ao líder como escriba. Havia um curandeiro, Manuel Quadrado, perito em remédios silvestres e em simpatias. E José Félix, o Taramela, servia de criado e homem de confiança, como chaveiro e guarda das igrejas. Tornou-se renomado por sua fantasia sem peias, que o levava a inventar casos mirabolantes sobre a subida aos céus de tantos canudenses mortos, que afirmava ter presenciado.
Como a rotina incluía a guerra, destacou-se um “chefe militar”: João Abade, encarregado supremo das operações bélicas e da Guarda Católica, chamado de Chefe do Povo e Comandante da Rua. Paralelamente, havia um “chefe civil”, Antônio Vilanova, abastado comerciante responsável pela boa ordem da comunidade.
Houve combatentes ilustres. Como o pernambucano Pajeú, salteador negro, famoso por sua imaginação tática ao elaborar ardis guerrilheiros. Pedrão, negro imponente e hercúleo, originário dali mesmo, da Várzea da Ema, era integrante da Guarda Católica e um dos 12 apóstolos.  O historiador José Calasans ainda o conheceu, nos anos 50, e com ele teve muitas conversas, que granjearam sua admiração. Inválido das pernas, observou certa vez: “Faz pena um homem como eu morrer sentado”. Antônio Beatinho ficou conhecido porque negociou a rendição de 300 pessoas, entre mulheres, crianças, feridos e velhos, nos últimos dias dos combates. É do resultado dessa negociação a mais famosa foto da guerra, mostrando a multidão andrajosa, doente e esquelética. Tanta abnegação foi recompensada pela degola.
Joaquim Macambira, que já residia em Canudos antes da chegada dos conselheiristas, possuía uma fazenda nas cercanias e era dono de loja. Seu filho e xará, com um punhado de valentes e as bênçãos do pai, tentou tomar a braços o canhão alcunhado de Matadeira, pertencente ao exército, tombando morto ali mesmo. É um dos episódios mais referidos da campanha, tendo despertado a admiração geral.
Também deixou lembranças o sineiro Timotinho, que desafiava o exército insistindo em tocar o sino da Igreja Velha todas as tardes, quando a fuzilaria das tropas inimigas se concentrava nele. Um dia, dois tiros de canhão acertaram a torre, que desmoronou, jogando o sino à distância e aniquilando o heroico sineiro.
Dentre os muitos artesãos que labutaram na arquitetura sacra do Conselheiro – que durante as duas décadas de peregrinação capitaneou a construção ou o reparo de igrejas, cemitérios, calçadas e açudes por toda aquela região – o nome mais importante que a história reteve é o de Manuel Faustino, mestre de obras e entalhador que presidiu aos trabalhos da Igreja Nova. Antônio Fogueteiro, como a alcunha indica, fabricava fogos, a que o povo do sertão em geral, e o de Canudos em particular, era muito afeiçoado.
Os dois irmãos Ciriaco, os combatentes negros Manuel e José, só se tornaram conhecidos décadas após o fim da guerra. Servindo de guia em Canudos ao historiador José Calasans (1915-2001), tornaram-se fonte de preciosas informações.
Na utopia que criaram, Antônio Conselheiro substituiu o fazendeiro, o padre e o delegado de polícia, reunindo em sua pessoa o poder das três autoridades que mandavam no sertão. Por trás de sua figura estava o esforço admirável que uma população carente de tudo desenvolveu para se organizar, resistindo à opressão e à exploração, além de inventar formas alternativas de vida em comum.
Com a guerra, o dia a dia do arraial foi totalmente degradado. Belo Monte, cujos habitantes passavam a vida em oração e penitência para “salvar a alma”, conforme diziam, foi transformado em antevisão do Inferno. Em vez do Paraíso a que todos aspiravam, com as promessas das bem-aventuranças da pregação cristã, aguardava-os o ferro e o fogo dos canhões, o incêndio do casario e a degola indiscriminada. 


*Walnice Nogueira Galvão é professora emérita da FFLCH-USP e autora de O império do Belo Monte. Vida e Morte de Canudos. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. (Artigo publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional  - dezembro de 2014)