Natã Santana
Já acordou incontrolavelmente feliz e foi direto circular o tão
esperado 17 de fevereiro no calendário da parede rosada. Desejava mais que tudo
ser surpreendida e sabia que teria de esperar o dia inteiro, afinal surpresas
de aniversário raramente acontecem sob a luz do sol. Completava seu
décimo-oitavo ano e nada poderia deixa-la mais feliz. Tinha um namorado bonito,
uma família acolhedora e uma coleção de sapatos extraordinária. Só faltava
mesmo a tal liberdade que acabava de bater à porta. Agora já era responsável
por si mesma e poderia definir seus caminhos.
Quando o velho relógio da sala bateu a nona hora daquela meia manhã de
domingo, resolveu sair do quarto e receber as primeiras felicitações do dia,
que certamente viriam acompanhadas de um reforçado café da manhã feito pelas
finas mãos de dona Rita, sua mãe e maior defensora. Mas antes de qualquer coisa,
refletiu sozinha por mais uns instantes. Olhou as fotos de colégio estampadas
no pôster da parede, releu as palavras orgânicas de seu diploma de ensino médio
e chorou ao lembrar de todas as aventuras que selaram seus incríveis anos escolares,
encerrados naquele mesmo verão. Agora tudo seria mais sério. Era hora de tomar
seu espaço no mundo e se tornar mulher.
Assim que trancou a porta do quarto e abandonou lá dentro seu momento
de nostalgia aflita, percebeu que, no corredor, todas as outras estavam
abertas. Ao passar pelo primeiro quarto, viu que dona Rita já havia levantado,
e como seu pai raramente dormia em casa não havia mais ninguém que pudesse
encontrar ali. Imaginou então que ela já pudesse estar nas tarefas diárias e
continuou a vistoria. No segundo quarto, o de seu irmão Pedro, também não tinha
ninguém, e por fim, o de Joana, que encontrava-se igualmente vazio. Imaginou
que decerto todos a aguardavam na cozinha com uma bela surpresa de café da
manhã e desceu as escadas ainda mais apressada e ansiosa.
O silêncio na casa era infernal e até a rua parecia não emitir ruído algum.
Na cozinha, nada nem ninguém. A decepção foi involuntária e a necessidade de
receber o primeiro sorriso do dia só aumentava. Retornou então para o quarto e
lá se trancou imaginando que destino poderiam ter tomado todos. Depois de
alguns minutos elaborando hipóteses, incluindo a de estarem armando uma
surpresa como nunca feita em outros aniversários, ela resolveu ceder à
praticidade da tecnologia. Primeiro ligou para dona Rita; depois para Joana e
Pedro; e por último para Ronaldo, o namorado; mas, para cada tentativa, a mesma
contrariedade. Todos os telefones tocaram dentro dos respectivos quartos de
seus donos, com exceção do de Ronaldo, cuja ligação nem chegou a ser
completada. Ela, ainda que muito decepcionada e pouco esperançosa, voltou para
a cama pensando no momento em que trouxessem-na a alegria do dia, e enquanto pensava,
um leve sono a tomou delicadamente.
Por volta das 10 e meia daquela mesma manhã, quando o breve cochilo a
deixou e a cama já lhe parecia incômoda o clima parecia ser outro. O quarto
estava frio e as cortinas da janela ferviam numa inquietude dançante. O
silêncio ainda era o mesmo, tanto na casa quanto na rua. Nenhuma pena cairia
sem que se pudesse ouvir, mas nada caia, nada mudava, nada se movia, a não ser
as cortinas e o vento que as estimulava. Ela levantou ainda meio monótona e um
pouco faminta e quando empurrou as cortinas para observar o que calava o clamor
diário das ruas permaneceu atônita por algum tempo até acreditar no que
acontecia lá fora. O calor de verão, que se fazia intacto horas atrás, havia se
submetido ao frio mais inoportuno que já presenciara, e o branco da neve que
caia começava a pintar a rua e queimar as folhas do velho cipreste na esquina
da rua Fortunato Ribeiro.
Ela nunca vira nevar em toda sua vida, tinha certeza que aquela região jamais
permitiria tal feito da natureza, muito menos sob a influência daquela época. O
dia estava, de fato, ficando cada vez mais louco e era difícil saber o que a
assustava mais: a neve de fevereiro ou a estática das ruas, onde nada, além da
própria neve parecia respirar. Nenhum carro, nenhuma moto, nenhum cachorro
mijando nos postes, ninguém.
Depois de alguns olhares duvidosos pelo vidro embaçado da janela, ela
resolveu que olhar não era suficiente. Desceu as escadas ainda mais apressada
que da última vez, e, sem ao menos verificar se alguém já havia voltado, partiu
em direção à rua.
Assim que abriu a porta, a estranheza foi imediata e radical. Nunca
tinha experimentado um ar tão seco e gélido como aquele, e por isso, achou
melhor tomar um dos casacos pendurados na porta. Tocou, ainda que incrédula;
cheirou, ainda que sem aroma; provou, ainda que sem sabor; brincou, e até fez
seu primeiro anjo de neve como sempre planejara caso algum dia viajasse ao
exterior; e quando enfim, adaptara-se parcialmente com a ideia de estar andando
sobre a neve, percebeu que haviam coisas igualmente estranhas a observar. A rua
continuava parada e a cada novo floco que caia, tudo ficava mais sombrio. O
desespero começava a achar lugar no único coração que ainda batia. Ela olhava
atenta para todos os lados a procura de qualquer vestígio de vida, mas tudo
continuava imóvel e gelado.
Estava realmente difícil imaginar uma justificativa lógica para um enredo
tão dramático. Era uma cidade razoavelmente grande e não se encontrava um pé de
gente, nem nas ruas, nem nas casas. Quando gritou pelos vizinhos, ninguém
respondeu; quando percorreu quase todo o bairro, a ninguém encontrou. Andou,
correu, chamou... mas só o próprio eco lhe respondia, e a neve continuava a
cair.
Perto das 2 horas da tarde, quando já desistira de tentar entender o
que aconteceu com todo mundo no dia mais estranho de sua vida, também desistiu
de procurar e gritar. Sentou em um dos 24 bancos do parque Dávilas` Caus e ali
ficou esperando que Deus pudesse ouvir suas preces angustiadas.
O parque era grande e muito bem frequentado em dias comuns, mas naquele
dia a solidão o tomara por completo e o vazio se mostrava tão intenso quanto a
frieza do laguinho congelado. Nem parecia o mesmo local. Com a cabeça baixa, os
cabelos cobertos pelo capuz de seu casaco vermelho e as pernas bem ajuntadas,
sentada ela continuou. Até que não pôde mais se conter de tristeza e desprezo e
quebrou o bruto silêncio que cercava seu mundo sem vida com o barulho de um
choro soluçante. A menina que achava ser mulher desabara como menina novamente,
mas dessa vez não teve o colo de ninguém para ampará-la.
O dia continuou indiferente à data, e quanto mais tempo se passava,
mais peripécias a vida lhe revelava.
Não demorou para que as lágrimas cessassem, e assim que cessaram ela
percebeu que lá no fim da avenida vazia, uma enorme árvore se destacava. Ainda
estava muito longe, mas de cara qualquer um saberia que era uma árvore, pois
seu verde refletia a quilômetros sobre o branco que já cobrira todo o chão, e
ainda assim, a árvore permanecia intacta ao frio, como se estivesse no ápice da
primavera mais promissora. Ela levantou-se do banco de concreto resfriado e
seguiu a avenida em busca de sua mais nova descoberta.
À media que se aproximava da árvore, ela concluiu que se tratava de uma
magnifica macieira, com frutos fartos, graciosos, e o mais fascinante: azuis.
Isso mesmo! A macieira era gigantesca e as maçãs eram de um azul tão intenso
que podiam ser vistas mesmo quando contrapostas às folhas. A copa da árvore era
perfeita e se distribuía igualmente tanto para esquerda quanto pra direita, e
seus galhos tão longos que alguns desciam até quase tocar o solo. O tronco era
rústico e muito largo, e nele uma curta inscrição entalhada: “satisfaça-se”.
As maçãs eram lindas e pareciam extremamente deliciosas, e ela estava
sem comer desde que acordou, mas antes de obedecer à ordem que lera no troco,
notou mais uma excentricidade da ocasião: a árvore estava exatamente no meio de
um importante cruzamento entre duas avenidas conhecidas por ela, e por onde
havia passado dias antes, por isso deduziu que ou a árvore foi construída
artificialmente ou nascera de forma sobrenatural naquele local. E poucas coisas
a assustavam tanto quanto o sobrenatural. Resolveu então, não comer e sentou-se
para descansar ali mesmo.
Passou-se mais uma hora desoladora e a fome continuava ferrenha. Depois
de muito pensar ela decidiu que nevar no verão e nascer árvore no meio do
asfalto já eram anomalias demais. Viu que estar sozinha, de uma hora pra outra,
numa cidade deserta e descansar debaixo de uma macieira de maçãs azuis também
não era nada comum. De qualquer forma, estava cercada de esquisitices que não
tinham explicação. Certamente sobreviveria a algumas mordidinhas se tentasse. E
resolveu que tentaria. Tomou duas das tantas que estavam ao seu alcance e as
degustou gulosamente. Não poderia ter sido melhor. Dentre tantos infortúnios
que fecundaram o dia, aquela refeição fora a única coisa adorável para com a
solitária aniversariante.
Assim que satisfeita, retomou sua disposição e continuou sua caminhada
pelas ruas desertas tentando, de qualquer forma, encontrar alguém a quem
pudesse pedir explicações sobre a loucura do dia ou com quem pudesse
descarregar seu medo de ficar sozinha para sempre. Mas, por mais que tentasse
incansavelmente, não sustentava grandes expectativas. E a cada minuto, tudo
ficava menos afetuoso.
Uma hora antes do crepúsculo, quando inexplicavelmente a neve começou a
se desfazer, ela deparou-se com um enorme muro de pedra no final de uma rua por
onde nunca tinha passado. Mas não havia portão nem grades, então ela pensou que
se quisesse conhecer o que havia além das pedras, deveria seguir até encontrar
a entrada. E por alguma razão, sentiu vontade de saber o que guardava um muro
tão alto. Muita vontade.
Andou tanto que quando finalmente achou a entrada o crepúsculo já
começara, e da neve quase mais nada ainda restava. O portão de entrada era ainda
mais alto que o muro e sobre sua haste principal estava escrito tudo que
precisava ser dito para atiçar ainda mais a curiosidade de um visitante: “Só
você ainda não viu. Bem-vindo à morada dos memorandos”. Logo que leu a saudação
e observou a suntuosidade do portão, ela decidiu automaticamente que aquele era
mais um fenômeno criado por forças desconhecidas, assim como a neve e a
macieira. E exatamente como brincou com a neve e comeu as maças, também passou
pelo portão, que abriu sem precisar do mínimo toque de suas mãos.
No interior, ela encontrou o jardim mais belo entre todos os mais belos
que conseguiria imaginar, mas infelizmente não poderia percorrê-lo por completo
já que o sol oferecia seus últimos raios do dia. O jardim dividia-se em duas
partes: uma do lado direito, com flores de todos os tipos e árvores podadas em
formato de animais; outra do lado esquerdo, com um lago cristalino rodeado de
rosas amarelas. Ao centro, apenas uma pequena árvore com ramos de samambaias
estendidos sobre seus galhos floridos que ofereciam sombra a quem se deitasse
sobre os lençóis vermelhos da cama que havia sido posta embaixo da árvore.
Havia também um longuíssimo tapete aveludado de cor branca que dividia os lados
do jardim e ia do portão de entrada até os pés da cama. Mas poucas coisas
chamaram tanto a atenção da visitante quanto as estátuas de bronze polido
postas ao lado de que cada arbusto e embaixo de cada árvore, com exceção da que
ficava no centro do jardim. Na verdade, o que mais havia ali eram estátuas e como
não dava para visitá-las todas e descobrir a quem faziam referência, ela
resolveu andar até o centro e olhar apenas as que estavam próximas ao tapete.
Assim que observou a primeira delas, percebeu que estava em homenagem
ao famoso Ramilo Donato, um locutor de rádio famoso em sua cidade. Em seguida
achou a de um homem desconhecido, e isso aconteceu muitas vezes, pois haviam
muitas estátuas e não teria como conhecê-las todas. Continuou o percurso
olhando a todas que alcançava e quando estava quase na metade ficou surpresa ao
observar uma que lhe era bem familiar. Ao se aproximar, testificou que não era
só parecida, mas se tratava exatamente da estátua do seu João Guilherme, o dono
da padaria que ficava próxima de sua casa. E a partir de então ela se assustava
cada vez mais, pois cada nova estátua representava com exatidão uma pessoa de
seu dia a dia, e a todas ia conhecendo. Passou pelo dono do mercado, pelo filho
do vizinho, por dona Marli, a professora de infância, e até pelos colegas de escola.
As lágrimas já escorriam quando ela começou a perceber que ali estavam todos os
habitantes da cidade, mas o choro inflado só veio mesmo quando estava quase
chegando ao centro do jardim e encontrou as estátuas de dona Rita, de seu pai e
de seus dois irmãos já pertinho da árvore das samambaias. Estavam com um
aspecto ameno, quase todos com um meio sorriso que doía a cada olhar, mas ela
continuava olhando e chorando até quando não pode mais e se sentou sobre a cama
para recuperar as forças. Foi quando olhou para cabeceira e ali estava mais um
recado escabroso: “Reservado para o sono profundo do seu décimo-oitavo
aniversário”.
Ao ler a última inscrição, o pânico já não lhe pôde dominar, pois a dor
e a tristeza já a tinham levado. Ela dormiu ali mesmo, na cama que desde o
princípio estava reservada para si.
No dia posterior, ela abriu os olhos lentamente e ainda meio atordoada
levantou chorando, mas seu namorado, dona Rita e seus irmãos já a esperavam de
pé ao lado da parede rosada para circular o 17 de fevereiro juntos na folha do
calendário. Ao perceber que estava assustada, Ronaldo a abraçou e perguntou o
motivo das lágrimas, mas foi surpreendido quando ela falou sobre estátuas, neve
e solidão. Ele então a consolou e pediu que se acalmasse, pois o domingo
acabava de começar e todos estavam ali para proporcioná-la o melhor aniversário
de maior idade que alguém poderia ter. Dona Rita abriu a janela, mostrou-a que
o sol já brilhava forte desde muito cedo e olhando-a fixamente, falou:
— Tá vendo sua teimosa?! Eu avisei pra não exagerar na janta.
-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-x-
Natã Santana é estudante de Letras da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Autor do romance inédito O epitáfio. Natural de Heliópolis, foi estudante do Colégio Estadual José Dantas de Souza.