Nascido há 90 anos em Montes
Claros (MG) o antropólogo foi comprometido com a busca do ‘ser brasileiro’
EDUARDO PORTELLA – de O Estado de
S. Paulo
Exemplos tirados da história recente para se opor à ideia comum de 'cordialidade' (foto: Wilson Pedrosa/Estadão) |
Darcy Ribeiro (Montes Claros, MG,
26 de outubro de 1922-Brasília, DF, 17 de fevereiro de 1997) foi o menos
convencional, e talvez o mais destemido, dos nossos intelectuais. Lutou
energicamente em várias frentes. Como antropólogo, professor, político, escritor
de perfil plural, ensaísta, romancista, poeta, memorialista. Foi igualmente um
bem-sucedido gestor cultural e educacional. Jamais pode ser visto como um
conformado. Pertencia à família, não muito numerosa, dos militantes da
esperança.
Certa vez escreveu, com aquela pulsação
vital que era bem sua:
"Fracassei em tudo que tentei
na vida. Tentei alfabetizar as crianças, não consegui. Tentei salvar os índios,
não consegui. Tentei uma universidade séria, não consegui. Mas meus fracassos
são minhas vitórias. Detestaria estar no lugar de quem me venceu".
São palavras nunca de um conformista,
porém de um indignado, se recolhemos hoje os ecos da Plaza Mayor, de Madri.
Indignado com a "situação calamitosa" (são palavras suas) da rede
escolar pública, oscilando entre a magnitude e a precariedade.
As suas memoráveis memórias, Aos
Trancos e Barrancos, se mantêm à distância do ajuste de contas e da queima de
arquivos, marcas obsessivas do nosso memorialismo hegemônico. Em Darcy o que é
bem visível são os movimentos crispados da história, movida pela memória viva,
sanguínea, enérgica, porém imune ao ressentimento e à miséria humana.
Os caprichos do destino, em dias
remotos de uma "Abertura" para inglês ver, me concederam a honra e
felicidade de anistiar Darcy Ribeiro. Participei de uma guerra sem quartel. A
chamada comunidade de informação, desinformada por vocação e vontade, não se
conformou. Solicitaram que desanistiasse. Resisti. Foi uma das poucas batalhas
que consegui vencer. Ela e os seus protagonistas desapareceram. Darcy continua
vivo.
Talvez possamos tomar O Povo
Brasileiro (1995) como o seu livro mais emblemático da formação e do sentido do
Brasil. É o corolário de um esforço que vem de longe, infatigável e coerente,
destinado a reconhecer a heroicidade anônima de mulatos e caboclos, de
"mamelucos-brasilíndios", pela nossa parte mitigada, filhos de negros
e índios, sequestrados prematuramente em nome da civilização. Esse livro foi
preparado por cinco antecessores muito bem acolhidos em várias geografias: O
Processo Civilizatório, As Américas e a Civilização, O Dilema da América Latina,
Os Brasileiros: Teoria do Brasil e Os Índios e a Civilização. Deve ser
considerado o corolário porque arremata e leva às últimas consequências, sob a
forma de uma insólita crítica da razão apropriativa, as mazelas dos poderes
concentracionários ao longo de sucessivas hipotecas históricas. A essas obras
se juntam outras, como A Universidade Necessária, proposta pedagógica que
reoxigenou o ensino universitário na América Latina.
Darcy Ribeiro percorre,
atentamente, o interminável caminho da exclusão. Acompanha toda a movimentação
humana, e inumana, que impulsiona os deslocamentos populacionais, as ocupações
territoriais, as desfigurações culturais, conduzidos pela exploração, o arbítrio,
a violência. Ele observa de perto, certamente a contragosto, a desindianização
e a desafricanização. Mas não deixa de saudar, compreensivamente, a emergência
de tipos inesperados como o crioulo, o caboclo, o sertanejo, o caipira. Entre
os brasilíndios, os afro-brasileiros, os neobrasileiros, os brasileiros, Darcy
indaga, o tempo todo, pelo ser brasileiro. Sem fechar a questão, é claro.
O Povo Brasileiro adquire, logo
de início, o jeito de um diálogo, não sei se confortável, mas em qualquer caso
amistoso, entre o político e o cientista Darcy Ribeiro. O primeiro,
terrivelmente veraz, deixa de lado as conveniências da frieza expositiva, ou do
distanciamento crítico, para assumir, de corpo e alma, a paixão. Talvez até
para desmentir o boato de que a paixão é inimiga da razão. O segundo
reconstitui e descreve, com precisão, a história dos vencidos, mas sem deixar
de matizar o desempenho dos vencedores. O cientista reconstrói o passado; o
político traz o passado para o presente. O livro se mantém muito fiel a Darcy.
Decifra enigmas que ficaram para trás, porém com mais liberdade; imune às
pressões ideológicas. Até porque Darcy Ribeiro nunca foi bem tratado nem pela
esquerda predatória nem pela direita alucinatória - ambas predominantes, e tão
afins. O que ele quer é viver, abertamente, declaradamente, o sonho precoce de
"uma teoria geral, cuja luz nos tornasse explicáveis em seus próprios
termos, fundada em nossa experiência histórica". São suas palavras.
O itinerário de O Povo Brasileiro
cobre um período extenso, que vai desde as determinações iniciais da Revolução
Mercantil até a industrialização e a urbanização da modernidade tardia, no seio
das quais as relações de trabalho nunca deixaram de ser mais ou menos
aviltantes. Antes mais do que menos. O cativeiro dos índios e a sujeição dos
negros, comprados e coisificados, distribuídos no litoral e progressivamente no
interior, tornaram-se, com o passar dos tempos, a nódoa maior do nosso trajeto
"civilizatório". Não somente: também o lugar tenso, em que o extermínio
e a gestação, gravados contraditoriamente nas cores da pele, foi abrindo
passagem para o advento do novo. Os escravos índios e negros, subjugados até a
crueldade, resistiam culturalmente. Não raro, politicamente. Jamais
economicamente ou tecnicamente. Aí as armas eram extremamente desiguais.
Mas o livro de Darcy Ribeiro
evita permanecer sob as ordens da memória, e acatar obedientemente os desígnios
da tradição patrimonial, certamente tombada e cuidadosamente guardada, debaixo
de sete chaves, nas gavetas de alguma Torre famosa. Se assim fosse, não seria
Darcy, nem estaríamos falando de um livro-vida. Ele reconstitui, calorosamente,
todo o processo da construção do homem tropical lusofalante, recorrendo aos
documentos fornecidos pela Coroa e pela Igreja, e desde o momento em que se
alternam, harmoniosamente, a razão de Estado e a ratio studiorum. E já nesse
amanhecer era possível perceber, no espelho enviesado da colonização, não por
acaso contemporâneo do maneirismo, as impurezas da razão. Mas o autor imprevisível,
vez por outra reaproxima a generosidade da raiva, absorvendo as contradições do
percurso. Nessa hora, os portugueses são distinguidos com um ou outro
reconhecimento, do tipo: "O engenho açucareiro, primeira forma de grande
empresa agroindustrial exportadora, foi, há um tempo, o instrumento de
viabilização do empreendimento colonial português e a matriz do primeiro modo
de ser dos brasileiros". Esses instantes de armistício, vale lembrar,
ocorrem sem muita insistência. Darcy prefere exaltar o reverso da medalha. O
índio e o negro, pelo menos na cena colonial, e na reviravolta proposta pelo
autor de O Povo Brasileiro, foram atores muito mais criativos do que poderia
imaginar a montagem importada.
Darcy Ribeiro |
Darcy Ribeiro está empenhado em
denunciar o dispositivo da exclusão. Ele fotografa os mecanismos de dominação
em movimento, contesta a unidade forjada pela violência, e se espanta ao
constatar a síndrome da feitoria perturbando a produção qualitativa da
sociedade. Chega aos nossos dias, à mundialização de mão única, ao descalabro
da cidade e, por consequência, do que deveria ser a vida urbana na comunidade
de cidadãos.
Ao deparar-se com "o
povo-massa, sofrido e perplexo", o otimismo constitutivo, talvez até
biogenético, de Darcy Ribeiro, parece experimentar ligeiro abalo. O radical
esforço reflexivo de O Povo Brasileiro é confrontado com duas legendas
dificilmente conciliáveis: a do "povo-nação" e de
"povo-massa". Tudo dependerá, sou levado a supor, da consistência do
povo, ou da taxa de povo introjetada na massa, ou da nossa capacidade de,
através da educação, desmassificar a massa. Darcy nos conduz para um debate
que, pelo menos até aqui, continua em aberto. No primeiro movimento, ele se
choca com a voracidade mundializadora; no segundo, abriga uma cisão interna
que, justamente por causa da globalização e de seus correlatos comunicativos,
tende a incompatibilizar povo e massa. É forte a tendência para admitir que
perdemos as chances, os prazos históricos, para a realização da categoria povo,
tal como emergiu e se plenificou em algumas de nossas matrizes ocidentais. Não
é menos plausível a conclusão de que só nos resta a opção de reencaminhar
singularmente esse fenômeno desconcertante a que batizamos com o nome de massa.
Nesta hipótese, a massa, que seria o povo sem rosto, fatalmente anônimo, teria
de ser reprogramada, pelos instrumentos insubstituíveis da cultura, da educação,
da ciência, da comunicação.
Darcy Ribeiro permanece
esperançoso, confiante no povo novo, e investe todas as suas energias vitais e intelectuais
- e nele as duas coisas se confundem - na "vontade de felicidade" do
povo brasileiro, na "Nação Latino-Americana sonhada por Bolívar". A
impressão de resvalar no psicologismo, apostando todas as suas economias na
"felicidade" possível, logo se recupera no questionamento da
cordialidade inata que, em dias mais radiosos, chegou a embalar o sono, e
talvez o sonho, das aspirações nacionais. Darcy guardou, da história e de
episódios recentes, exemplos sucessivos de ausência total de cordialidade. Uma
conclusão alternativa, sem maiores compromissos, merece ser lançada: inexiste
povo vocacionalmente avesso à felicidade, e congenitamente destinado à
cordialidade? Não creio. O que existe é o caminhar do caminho. E ninguém melhor
do que Darcy sabe de cor e de coração a cartografia dessa viagem.
O olhar interpretativo de Darcy
Ribeiro, no seu afã de dar conta da complexidade, inscrita visceralmente na
formação e no sentido do Brasil, recorreu à cooperação interdisciplinar. O seu
saber, fortemente empírico, se relaciona com o seu viver. Nem por isso ele cede
ao narcisismo biográfico. As pequenas digressões autobiográficas são logo
abandonadas, ou porque se reconhecem públicas e notórias, ou porque não têm
dúvidas quanto ao descrédito que envolve hoje os gêneros pessoais, submersos
nas fantasias de memórias e diários pós-fabricados. Em Darcy, a vida o ajuda a
ver. Daí que o seu livro contenha uma vibração existencial pouco frequente.
Em O Povo Brasileiro, a fluência
narrativa com que as situações se encadeiam nos propicia a descrição precisa e
sentida, do desenrolar sinuoso, da corrida de obstáculos, do infindável passar
a limpo que, ainda hoje, interdita o trânsito, paralisa a circulação cidadã.
A qualidade do texto, nesta obra,
se une e facilita a vida do trabalho crítico deliberadamente enraizado. O
enraizado aqui tem o uso específico que lhe confere o próprio Darcy, sempre e
sobretudo quando se abre para a ambicionada "nova romanidade". Mesmo
fazendo ficção, em Maíra ou em Migo, por exemplo, o escritor interpela,
pergunta incessantemente pela nossa gente, sua identidade e sua diferença. E
ninguém como ele conseguiu transformar, sob os auspícios da linguagem, a
esperança em realidade - descobrindo Brasis, inventando mundos.
Nos campos da Educação e da Cultura
as suas impressões digitais permanecem como indicações de caminho: o Centro
Brasileiro de Pesquisas Educacionais, juntamente com Anísio Teixeira, o
Ministério da Educação altivo, a Universidade de Brasília, os 500 Cieps
implantados no Rio de Janeiro, a Universidade Estadual do Norte Fluminense, o
Sambódromo, a Lei de Diretrizes e Bases, marcos da ação integrada de educação,
ciência, cultura, a serviço da transformação social. Assim como há os Darcys do
Brasil, existem também os Brasis de Darcy. É uma constelação solidária e,
apesar de todos os pesares, e de todos os maus-tratos, confiante.