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domingo, 29 de dezembro de 2013

¨¨¨Landisvalth Blog: Época revela a divina tragédia de Belchior em 4 capítulos

     Edna Prometheu é o pseudônimo da produtora cultural Edna Assunção de Araújo, de 46 anos. Morena, de cabelos encaracolados e baixa estatura, não é uma mulher de beleza estonteante. Militante de organizações de extrema-esquerda, é definida por seus amigos como “idealista utópica”. No começo de 2005, ela estava em São Paulo, no ateliê do artista plástico cearense Aldemir Martins, já morto, quando entrou pela porta o músico Belchior. O cantor de “Paralelas” também pinta quadros e frequenta o ambiente artístico. Edna queria organizar uma exposição de Aldemir no Ceará. Belchior disse que tinha amigos por lá, poderia ajudar. Trocaram telefones. Os dois acabaram organizando juntos a exposição em Fortaleza, naquele mesmo ano. Na volta, Edna ligou para um amigo e contou a novidade: “Estamos namorando”. A partir daí, a vida plácida de Belchior derrapou no trevo a 100 por hora, como diz a letra de “Paralelas”. Para ficar com Edna, ele abandonou a então mulher, Ângela, com quem estava casado havia 35 anos, mãe de dois dos quatro filhos que tem. Afastou-se dos amigos e foi gradativamente deixando de fazer shows, até sumir sem dar explicações, em 2009. “Essa figura nefasta está fazendo uma lavagem cerebral nele”, afirma Jackson Martins, ex-empresário de Belchior. “Depois dela, sua vida só andou para trás”, diz o artista plástico cearense Tota, amigo de Belchior.
Leia a reportagem completa clicando aqui.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A Amazônia é um mar potável

Além da água existente na superfície da Amazônia, o subsolo esconde o maior manancial de água potável do mundo, como o aquífero Alter do Chão, que poderia abastecer a humanidade por 400 anos.
Carolina Bergier – da Revista PLANETA
Rio Tapajós: único afluente do Amazonas com águas claras
Na confluência dos rios Amazonas e Tapajós, o município de Alter do Chão, a 35 quilômetros de Santarém, no Pará, guarda a praia de água doce mais bonita do Brasil e o maior aquífero de água potável do mundo. Descoberto em 1958 e mensurado em 2010, só agora os geólogos começam a mapear a riqueza do subsolo amazônico.
Na cidade apelidada de “Caribe Amazônico”, turistas colocam os pés para o alto nas mesas espalhadas pelas areias brancas da Ilha do Amor, que surge na vazante, quando o volume de água do rio diminui, entre janeiro e agosto. Barracas cobertas de sapê oferecem delícias da culinária amazônica, como o tucunaré na manteiga e o suco de açaí. Barquinhos de madeira passeiam pelo único afluente do Amazonas com águas esverdeadas e cristalinas. As praias do Tapajós maravilham os olhos. Quem vê a paisagem nem imagina que sob os pés corra o maior manancial de águas subterrâneas do mundo, o Aquífero Alter do Chão.
Aquíferos são formações geológicas que armazenam ou liberam água subterrânea, como uma esponja cheia que, ao ser movimentada ou pressionada, solta o elemento. Com toda a chuva que cai na Amazônia, era previsível que o subsolo guardasse mais água. Até 2010, considerava-se o maior aquífero do mundo o Guarani, que se estende por baixo de 1,2 milhão de quilômetros quadrados do Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai, com 45 mil quilômetros cúbicos de água. Cerca de 70% das águas estão no Brasil e se espalham pelo subsolo de oito Estados. Já o Alter do Chão ocupa três Estados – Amazonas, Pará e Amapá –, é menor em extensão, mas possui uma reserva de água potável de 86 mil quilômetros cúbicos, o suficiente para abastecer a população mundial por pelo menos 400 anos.
O tamanho do Alter do Chão era subestimado até pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA) anunciarem, em 2010, que ele continha o maior volume de água potável do mundo. Os geólogos Milton Matta e Francisco de Abreu, o engenheiro André Montenegro Duarte, o economista Mário Ramos Ribeiro e o geólogo Itabaraci Cavalcante, esse da Universidade Federal do Ceará (UFC), foram os responsáveis pela análise preliminar do sistema. “Desde a década de 1960, as pessoas estudam o aquífero, mas, quando começamos a pesquisar a fundo, em 2007, descobrimos uma reserva incrivelmente grande”, diz Milton Matta.
Em 2011, a Agência Nacional de Águas (Ana) iniciou estudos nas bacias sedimentares da Província Hidrogeológica do Amazonas. Ao custo de R$ 4,4 milhões, a pesquisa será finalizada em 2014. Dados recentes apontam que o Aquífero Alter do Chão pode fazer parte de um sistema ainda maior. “A pesquisa feita pela UFPA não é equivocada, mas estamos descobrindo que o Aquífero Alter do Chão pode integrar o que chamamos de Sistema Aquífero Amazonas, que engloba também os aquíferos Içá e Solimões”, afirma Fabrício Cardoso, hidrólogo da gerência de águas subterrâneas da Ana. “Embora as informações ainda sejam insuficientes, tudo indica que o Aquífero Amazonas é muito maior do que o Alter do Chão em termos de volume de água e extensão territorial.”
A descoberta da UFPA foi divulgada para informar a sociedade e levantar financiamento para os estudos, mas até agora a verba não veio. Enquanto o Aquífero Guarani, descoberto na década de 1950, já recebeu financiamento de US$ 26,7 milhões do Fundo para o Meio Ambiente Mundial e de outras entidades, nos últimos cinco anos o Aquífero Alter do Chão ficou relegado ao esforço dos pesquisadores. “Parte dos estudos foi subsidiada com recursos de outros projetos que desenvolvemos sem ajuda financeira de patrocinadores. Já o conhecimento prévio que aproveitamos provém dos poços de perfuração para óleo e gás feitos pela Petrobras”, explica Matta.
Abundância excessiva
Apesar de 70% da Terra ser coberta de água, apenas 2,5% constituem-se de água doce, dos quais 99% correspondem a águas subterrâneas e só 1%, ao volume de água doce de rios e lagos. O Brasil tem 18% da água doce do planeta. Para Matta, paradoxalmente a Amazônia “acaba pagando um preço alto por ter muita água”. Com 7% da população, a região detém 70% do recurso. Já no Sudeste, 42% da população dispõe de apenas 6% da água. “Os financiamentos vão para as áreas com menos água. Por termos abundância de recursos hídricos, não somos prioridade de investimento em estudos. Contudo, cuidar das águas da Amazônia é estratégico para a população mundial e principalmente para o Brasil. Enquanto no Nordeste estão sofrendo por falta d’água, estamos sentados no maior manancial do planeta”, diz Matta.
Para Marco Antônio Oliveira, superintendente do Serviço Geológico do Brasil, do Ministério de Minas e Energia, a questão é cultural. “A Lei Nacional de Recursos Hídricos é voltada para o gerenciamento da escassez, o que atrapalha a gestão da água na Amazônia. Ainda não conseguimos avaliar o valor estratégico dessa água toda para o Brasil e o planeta”, diz.
Uma primeira diferença é que, enquanto o Aquífero Guarani está sob a rocha, o de Alter tem terreno arenoso, que funciona como um filtro e garante a potabilidade da água, além de facilitar a penetração da chuva e a perfuração de poços. Se há mais extração do que a capacidade do sistema de repor água, a reserva diminui e torna-se necessário buscar o recurso cada vez mais fundo. A espessura média do Aquífero Alter do Chão é de 575 metros.
Amazonas e Pará
Sob Manaus, o aquífero responde pelo abastecimento de 30% da água da cidade, enquanto 70% vêm do Rio Negro. A concessionária que capta água do rio para abastecer a população não chega à periferia da cidade. Sem opção, os moradores furam artesanalmente poços particulares e rasos, de 40 a 60 metros de profundidade. Outros, mais profundos, são feitos pela própria concessionária. “Esses poços representam risco, pois bombeiam 24 horas por dia, não dando tempo de recuperação de água subterrânea”, ressalta Oliveira.
A captação de água vem causando rebaixamento do nível do aquífero. “Um poço que precisava de 100 metros para captar uma determinada vazão precisa hoje alcançar 140 metros de profundidade para conseguir essa mesma quantidade de água”, diz Daniel Nava, secretário de Mineração, Geodiversidade e Recursos Hídricos do Estado do Amazonas.
No entorno de Manaus, a proliferação de poços está comprometendo a qualidade da água, pois o volume de esgoto in natura nos igarapés da região ainda é alto, o que acaba contaminando a água do aquífero. Segundo Oliveira, nos poços mais rasos nos arredores de Manaus, a poluição já é nítida. Apesar de estar no subsolo, a água dos aquíferos pode ser contaminada caso em suas proximidades sejam construídos lixões, fossas, cemitérios ou grandes lavouras.
No Pará, Alter do Chão, com apenas dois mil habitantes, vê a paisagem mudar com a chegada da estação chuvosa. As faixas de areia diminuem e a água escurece, até que, em maio, no auge da estação chuvosa, só se vê o teto de sapê das barracas. É a hora de se desvendar outra Alter do Chão, com cenários oníricos como a Floresta Encantada, uma mata de igapó pela qual ziguezagueia-se de canoa por entre as copas das árvores duplicadas pelo espelho d’água. Ao entardecer, a dica é atravessar o Tapajós em busca do melhor ângulo para apreciar o famoso pôr do sol local. Com sorte, a experiência pode ser coroada pela visão dos botos nadando sincronizadamernte.
Em setembro, a noite segue no ritmo da Festa do Sairé, que mistura elementos religiosos e profanos e lota as pousadas da vila. A festa, realizada desde o século 18, é marcada por procissões e manifestações folclóricas ritmadas pelo carimbó. Durante os desfiles dos blocos, as duas agremiações culturais, Boto Tucuxi e Boto Cor de Rosa, apresentam um espetáculo de cores, ritmos e beleza ao público. Considerada pelo jornal inglês The Guardian como a melhor praia do Brasil, Alter do Chão possui uma infraestrutura turística que melhorou recentemente, e hoje a vila conta com boas pousadas e hotéis, postos de saúde, restaurantes, agências de turismo, poucas lojas e muitas barracas com artesanato.
Como proteger?
Milton Matta é um advogado da valoração econômica da água. “Ela é o bem natural e mineral mais precioso para a sobrevivência da humanidade”, diz. Os recursos hídricos são cruciais para manter o equilíbrio da floresta e o clima do mundo, para abastecer a agricultura (que responde por 70% do consumo de toda a água mundial) e a indústria (20%).
Um mar de água para abastecer o planeta por 400 anos!
Até agora, não existe um modelo de uso para proteger o Aquífero Alter do Chão. Para tanto, é preciso aprofundar os estudos e produzir informações destinadas a alimentar o Método de Valoração Contingente, aplicado nos Estados Unidos e na União Europeia. Recomendado pela comunidade científica para precificar o valor de recursos naturais, tais como aquíferos, o conceito consta da Declaração do Milênio, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2000.
Para implementar uma política para as águas da Amazônia, a valoração é imprescindível. O engenheiro André Montenegro, da UFPA, ressalta que “o que se paga pela água hoje é basicamente o custo de captação, tratamento e distribuição, um valor ridículo e tecnicamente errado”. O certo, segundo o economista Mário Ramos Ribeiro, seria “valorar o uso direto, o uso indireto e o ‘valor de existência’, e somá-los. Este último, o valor de existência, exige uma metodologia mais complexa, pois as águas são bens públicos para os quais não há mercados e, consequentemente, não há preços monetários”.
Os pesquisadores paraenses propõem a adoção de um valor de “não uso”. Assim, o recurso ganhar valor e importância pelo fato de ser mantido na natureza.
As águas da Amazônia mantêm o equilíbrio ecossistêmico da floresta tropical úmida e controlam a geração de chuvas para toda a agricultura do país, regulando o equilíbrio climático. “Dessa forma, é preciso entender que águas circulando e a floresta em pé têm uma importância significativa para a economia do país. Não é descabida a ideia de se estabelecerem mecanismos de compensação financeira que, como as águas, funcionem como meios de transferência também de renda entre as regiões brasileiras”, defende Matta.
Em 1995, o então vice-presidente do Banco Mundial, Ismail Serageldin, afirmou que “as guerras no próximo século acontecerão por causa da água”. O próximo século já chegou e, segundo a ONU, 1,6 bilhão de pessoas vivem em regiões com escassez de água. Até 2025, dois terços da população mundial podem ser afetados pelas condições do recurso. Em 2012, 80% das doenças em países em desenvolvimento foram causadas por água não potável e saneamento precário, incluindo instalações de saneamento inadequadas. 
Diante da privilegiada situação do Brasil e do rarefeito panorama mundial da água, é urgente desenvolver mais pesquisas sobre o maior manancial de água potável do mundo. Para isso, é necessário investir no mapeamento dos aquíferos, fazer o levantamento dos recursos hídricos e estabelecer uma política de utilização e exploração sustentável.

sábado, 7 de dezembro de 2013

Adélia Prado retorna à poesia com ‘Miserere’

Nos 38 poemas, a escritora flerta com a metafísica ao mesmo tempo em que aposta na grandeza das pequenas coisas
Ubiratan Brasil – de O Estado de S. Paulo
Adélia Prado (foto: Tiago Queiroz)
A poesia, para Ferreira Gullar, nasce de um espanto. Já para Adélia Prado, ela vem da “terceira margem da alma”. Ambos concordam, porém, que os momentos inspirados vêm subitamente, sem controle, reservando ao poeta a função de instrumento para decodificá-los em versos. Por isso é irregular o período que separa cada novo livro de poesia. Adélia, por exemplo, não publicava nada havia três anos, quando saiu A Duração do Dia. O jejum termina na quinta-feira, quando chega às livrarias Miserere (editora Record).
São 38 poemas, em que a maior poeta brasileira viva (ao lado de Gullar e Manoel de Barros – sem que o autor da reportagem se zangue, este blog acrescenta Maria Lúcia Dal Farra) tanto flerta com a metafísica como se atém aos detalhes do cotidiano, mas, acima de tudo, aposta na grandeza das pequenas coisas. E, como não poderia ser diferente, sua poesia estabelece um diálogo com Deus, uma ponte com a transcendência e uma crença na perenidade da carne e na eternidade da alma.

Por que os poemas de Miserere são mais escuros que seus habituais? O título do livro foi definido por conta disso?
Primeiro porque os olhos se turvam na velhice e a privação de regalias da juventude trazem consigo, de maneira não idealizada, as realidades do sofrimento e da morte. Abrir os olhos dói: morrer de tuberculose, que eu achava o máximo na maioria dos poetas que admirava na escola e de muitos santos que me encantavam com seus martírios, é de fato coisa tenebrosa e dificílima. Hoje, quando digo ‘miserere nobis’ (tem piedade de nós), sei um pouquinho mais do que estou falando. Assusta descobrir nossa orfandade original. Mas nada se apresenta sem remédio por causa da fé e da poesia, que considero uma forma estupenda de fé e esperança. O título Miserere foi escolhido porque me parece o que mais revela o espírito do livro.

A senhora faz duas citações de Marie Noël, poeta francesa que viveu a separação entre a fé e o desespero, e cuja obra culminou com um grito blasfemo, mas particularmente comovente. O que lhe atrai na poesia de Noël?
Exatamente o que você citou. Seu sofrimento me deixa perplexa e eu não conheço sua poesia – certamente o que lhe permitiu viver. Sabe onde encontro sua obra? Só conheço Notas Íntimas, que me impressionou muitíssimo e onde me reconheci de corpo inteiro em alguns aspectos. Ler esse livro bastou-me como ingresso em sua tribo.

O mundo atual, perturbado pelo terrorismo e pela guerra, ainda é propício à poesia?
Não apenas propício à poesia, mas faminto dela.

A senhora já teve alguma experiência mística por meio da arte?
Como diz Guimarães Rosa, não sei de nada, mas desconfio de muita coisa. Mística – a experiência – é dom de Deus que Ele dá a quem quer. Estou na categoria dos seguidores. Ele me protege, tenho medo de certas dores.

A senhora acredita que sua poesia perderia o sentido sem a religião? A poesia é mais oração ou mais comunhão? Acredita que pode haver um poeta ateu?
Certamente escreveria outro tipo de poesia, mas não deixaria de escrevê-la. No texto de um poeta ateu, o substrato de sua poesia é o mesmo no de um poeta crente. Porque o fenômeno poético é religioso em sua natureza. A poesia, independentemente da crença ou não crença do poeta, nos liga a um centro de significação e sentido, assim como o faz a fé religiosa. Por isso é que a poesia é tão consoladora, dá tanta alegria. Minha formação é religiosa, confesso o que creio e é impossível que nossas profundas convicções desapareçam quando escrevemos. Seria esquizofrênico. Mística e poesia são braços do mesmo rio. Deus me deu o segundo, mas a fonte é a mesma, o Espírito Divino. A despeito de si mesmo, o poeta ateu entrega o ouro em sua poesia. É simples, rigorosamente ninguém é o criador da Beleza (poesia). Ela vem, eu diria como Guimarães Rosa, da terceira margem da alma. O poeta é só o “cavalo do Santo”, queira ou não. Às vezes, somos tentados a desistir quando descobrimos que ela, a poesia, é muito melhor que seu autor. É a tentação do orgulho. Que Deus nos livre dela.

É curioso como a realidade também parece exercer forte influência em seus versos – lembro-me de O Ditador na Prisão, que nasceu a partir de sua preocupação do destino do ex-presidente iraquiano Saddam Hussein, e agora em Lápide para Steve Jobs. A força da poesia está em oferecer um conforto moral?
A poesia oferece a realidade e sua beleza. Esta é sua força, seu conforto, sua alegria.

“Graças a Deus sou medrosa, / o instinto da sobrevivência / me torna a língua gentil” são alguns versos de Branca de Neve. Até que ponto isso se aplica à sua poesia?
A poesia não é nem pode ser uma “língua gentil”. Tem que ser sempre uma língua bela. No poema citado, Língua Gentil refere-se ao poeta e a seus medos e não à poesia propriamente. Língua Gentil, no caso do poema, é a língua que o poeta diz usar para não estumar as feras, para que elas não o devorem. De novo, não no poema, mas na vida, para lidar com os monstros interiores.

Quando a realidade cotidiana se mostra como maravilhamento e quando não passa de mera realidade? 
Quando olho pedra e vejo pedra mesmo, só estou vendo a aparência. Quando a pedra me põe confusa de estranhamento e beleza, eu a estou vendo em sua realidade que nunca é apenas física. A aparência diz pouco. Só a poesia mostra o real.

Ariano Suassuna volta à ativa com tributo a Capiba

FABIO VICTOR – do caderno ILUSTRADA, da FOLHA DE SÃO PAULO
Será ao som de frevos, valsas e serestas de Capiba a volta de Ariano Suassuna à atividade pública que mais o tornou conhecido pelo país nos últimos anos.
Ariano Suassuna em Ribeirão Preto (SP), em junho deste ano. (Foto: Silva Júnior) 
     Quase quatro meses depois de sofrer um infarto, em 21 de agosto, o escritor paraibano de 86 anos retoma suas aulas-espetáculos no próximo dia 16, no teatro Beberibe, no Recife, com um tributo ao compositor de quem foi amigo desde a adolescência. Um dos maiores nomes da música pernambucana, Capiba (1904-1997), apelido de Lourenço da Fonseca Barbosa, ganhou no final de 2011 uma aula-espetáculo em sua homenagem, em que são exibidas canções menos conhecidas do compositor (entre as mais famosas estão "Maria Bethânia", "A Mesma Rosa Amarela", "Madeira que Cupim Não Rói" e "Voltei, Recife"). Ariano voltará a mostrá-la no dia 16 para uma plateia de professores da rede pública estadual de Pernambuco. As aulas-espetáculos são um misto de palestra, concerto e sarau que o escritor apresenta desde os anos 90. Autor do "Romance d'A Pedra do Reino" e de clássicos do teatro nacional como "O Auto da Compadecida" e "O Santo e a Porca", Ariano Suassuna estava em repouso por recomendação médica desde que sofreu um infarto, ao qual se seguiu uma nova internação para tratar de um aneurisma cerebral. Assessor especial do governo de Pernambuco, perderá o status de secretário numa reestruturação feita pelo governador Eduardo Campos (PSB). Quando o político deixar o cargo para concorrer à Presidência, o que deve ocorrer até abril de 2014, é certo que o escritor o acompanhará.

RECADO À CAETANA

No mês passado, de passagem pelo Recife como convidado do festival literário Fliporto, o escritor Valter Hugo Mãe quis visitar Ariano. "Pedi muito para que me levassem a cumprimentá-lo (...) O Brasil é um mistério que ele soube sempre revelar", relatou o autor português em artigo num jornal do seu país. Suassuna, narrou Mãe, leu para ele trechos do romance em vários volumes que escreve desde 1981. Antes de ir embora, o português disse ter ouvido uma revelação. "O Ariano Suassuna mandou recado à morte. Pediu aos médicos que cuidaram dele para que informassem a caetana [nome pelo qual Ariano chama a morte] de que ele não pretendia morrer. Contou a história e repetiu, olhando bem para mim: 'Eu não pretendo morrer'. Sorriu." Valter Hugo Mãe conta que saiu da visita abalado. "Entrei no carro mudo. Chocado."

domingo, 1 de dezembro de 2013

A grande comédia masculina

Em Aracaju, um cinquentão decadente espera chegar o dia de seu casamento com a prima rica e dez anos mais nova.
  Daniel Lopes – do portal AMÁLGAMA (http://www.amalgama.blog.br)
Caderno de ruminações é o 5º romance de Francisco J. C. Dantas
“Era mesmo uma fraqueza danada andar manietado pelo desejo feito um pai de chiqueiro, ou um quadrúpede selvagem”, pensa o doutor Rochinha por meio do narrador. “Afinal, era um homem ou era um bicho?”.
A situação é mais antiga do que andar pra frente. A fêmea se achega jogando charme. O macho se acha o tal por ser alvo do charme, e resolve partir pra cima da fêmea e se divertir bastante no processo, talvez até fazê-la de otária. Após o ato consumado, a fêmea se afasta na medida certa para encucar o macho. O macho se vê perdidamente enlaçado, e se revela o idiota que foi desde o início. No caso do doutor Rochinha, o atordoamento pós-coito é de tal magnitude que, para tentar um pouco de paz e reflexão, ele toma a decisão de sair da sua Aracaju e passar uns dias em Salvador.
Não vai aí uma maliciosa crítica ao macho. A idiotia o acompanha desde tempos imemoriáveis, a ponto de estar incorporada à sua natureza. O observador pode até mesmo dedicar-lhe uma boa dose de simpatia, se não de identificação; com certeza algo mais que condescendência.
E há muito humor nessa idiotia, não devemos esquecer. Fiquei extremamente satisfeito ao ver que no romance de Francisco Dantas, em meio a angústias e delírios de seu protagonista, o que acaba ressaindo mesmo é a comicidade da coisa. Para começo de conversa, Rochinha podia ser um cardiologista. Ele podia ser um pediatra, um geriatra, um ortopedista. Podia ser um psicólogo ou um psiquiatra. Mas não. Ele é um proctologista. Rochinha está sempre avoado ou de mal humor em seu consultório. O leitor pode imaginar que haveria bastante drama em um pediatra fulo da vida. Mas um proctologista fulo ou displicente é um teatro à parte. Também não sei se o nome da fêmea que o arrebatou, com as quatro primeiras letras que tem, é mera obra do acaso.
Rochinha é um cinquentão e está apaixonado pela prima Analice, dez e poucos anos mais nova. Estão de casamento marcado para uma sexta-feira. Caderno de ruminações é dividido em quatro partes, cada uma delas cobrindo um dia da semana a partir de terça. À medida em que o casório se aproxima, Rochinha, sozinho no apartamento ou no consultório, passa a limpo seu passado remoto e seu passado recente, quando se envolveu com a prima. Analice é uma grã-fina, filha do proprietário de um grande grupo empresarial, que inclui uma construtora com negócios no Sergipe e em outros estados. Rochinha está em plena decadência profissional. Ela tem seus próprios interesses para casar com o primo comparavelmente pobre, inexperiente com as mulheres e de corpo mirrado. Ele quer se casar porque está apaixonado, e treme com os pensamentos em que volta a possuir a prima.
Antes de Analice, Rochinha não amara ninguém – “nos momentos mais exigentes, o corpo se extravasara em três ou quatro mulheres fáceis e pagas que possuíra como alívio e paliativo”. De origem humilde, dedicou-se com tenacidade aos estudos desde os tempos de educação primária, com sobra para mais nada. Foi aprovado em medicina. Na faculdade sua falta de tato com o sexo oposto era sobejamente conhecida, a ponto dos colegas apelidarem-no de “arame liso” – aquele que cerca, mas não fura. Seu “sangue sequioso, o espírito obcecado e a floração da vitalidade corporal” só vieram dar as caras agora, aos 50, diante da tentadora prima loira, de olhos azuis e pernas incríveis.
É claro que eu não vou cortar o barato contando os detalhes do momento em que o primo transa com a prima pela primeira vez – e bem pode ter sido a primeira e última. Importa saber que, depois, veio a piração. A paixão naturalmente faz o sujeito perder de vista o longo em proveito do curtíssimo prazo. Pois sabemos que a paixão de Rochinha está elevada ao cubo porque ele persiste tomado pela prima mesmo enquanto a julga uma “sádica”, entre outras coisas, e acredita que, no final das contas, tudo vai dar errado. É a supremacia da carne.
Mas pode dar certo, ainda assim? Quem sabe? O futuro pertence ao futuro. Mas Analice tem para si o seguinte juízo de Rochinha: “um pusilânime encapado de moralista”. E, em quatrocentas páginas, Rochinha só traça uma única e mísera resolução para o pós-casamento: “no criado-mudo de Analice, já decidiu, não vai deixar faltar tranquilizantes”. Façam suas apostas.
Rochinha começou a vida duas vezes – primeiro, vencendo as adversidades da infância e juventude até se formar em medicina; depois, driblando dificuldades na carreira, conseguindo fazer seu nome e se firmar em Aracaju. Quando Caderno de ruminações inicia, ele está tentando se erguer pela terceira vez. Recentemente, foi alvo de rasteiras após presidir uma investigação em um hospital público que descobriu desvios de conduta. Também recentemente, e mais sério, ele levou bolo de dois sócios aos quais se ligara para tocar uma clínica privada, que lhe deixaram na pindaíba e contra os quais nutre desejos homicidas. Mancomunado com esses dois sócios está Eloíno, irmão de Analice, primo e nêmesis de Rochinha.
O passado, que o protagonista pensara ter enterrado para nunca mais olhar, agora lhe volta nesses dias decisivos para seu futuro:
Com a ruína de seu projeto profissional, a infância tem retornado e lhe chega por caminhos insidiosos ocupando, na calada do tempo, os espaços vazios. E ele, que na mocidade fora tão refratário aos sentimentos, acolhe essa vinda como se recuperasse alguma coisa vaporosa e intangível, mas de valor inestimável.
Rochinha fora criado por pai e mãe durante poucos anos. Logo, a mãe o abandona e ao pai, partindo para o Rio de Janeiro. E ele fica só com o pai, seu Aristeu, na casa da infância, interior de Sergipe. A boataria sobre a mãe, mulher esbelta, e sobre as razões de sua debandada corre solta, e atinge continuamente Rochinha. O pai fica completamente entregue, sentado no sofá da sala e ruminando a falta de sentido do mundo à sua volta. Ríspido e muito religioso, porém, faz questão de que Rochinha tenha uma educação padrão, com catecismo e tudo. Os coleguinhas de ensino religioso, a exemplo de uma sua professora, não deixam passar a chance de fazer referência, na frente do menino, ao passado supostamente indecoroso da mãe.
Quando o filho já estava mais avançado no colégio, Aristeu se muda com ele para a capital Aracaju. Lá, o adulto envelhecido pela dureza da vida vira pequeno comerciante, enquanto o jovem, ainda uma criança na falta de tato com o que a vida tem de melhor, estuda de forma compenetrada – “Desgostoso com o ambiente que o cerca, persevera no estudo com a mesma gana que um condenado perpétuo investe numa fuga suicida, como se, fora daí, fosse um menino perdido.”
Francisco J. C. Dantas (Foto: Walter Craveiro)
Num vislumbre do que a vida pode oferecer de diferente em matéria de estudo e também comportamental, Rochinha preferiria ter sido matriculado no colégio liberal Atheneu. Mas não tem conversa. O pai o matricula no católico São Joaquim. Pior: como não tem dinheiro para a mensalidade completa, Aristeu promete aos padres que o filho estaria à disposição para realizar tarefas de manutenção. Quando vê que não, Rochinha está espanando santos. Seu período nessa instituição não foi invejável. Ele ficou enterrado em meio a adultos que, para lembrar o finado Hitchens, “a impossíveis certezas de retidão aliam tédio e uniformidade”. A vulgaridade de um padre-mestre ao sermonar sobre a desgraça da masturbação! – “O sexo, seu Benildo, é uma pistola dada por Deus para a perpetuação da espécie.”
Não sei se Caderno de ruminações teria ficado mais interessante narrado em primeira pessoa. Chutaria que sim. Às vésperas do casamento, Rochinha repisa seu passado distante, mas por meio do narrador. E o narrador, aqui, é oni-tudo. Seu nível de consciência é abissal. Ele tem consciência até das atmosferas de dois livros anteriores de Francisco Dantas – algo que não temos a oportunidade de ver todos os dias. Não há espaço para certas nuances – imprecisões, preconceitos, parcialidades, dúvidas – que se mostrariam ao leitor no caso de um narrador em primeira pessoa olhando o passado com o filtro do presente.
No entanto, à medida que a terça-feira vira quarta, a quarta vira quinta, e a quinta vira sexta, a narrativa, recapitulando agora as últimas semanas de Rochinha, fica mais interessante. Até devido ao fato dos últimos acontecimentos terem precipitado o casamento e estarem marcados de ambiguidades, trapalhadas e absurdos que desafiam o narrador mais intrometido. Narrador, Rochinha e leitor ficam perdidos, no bom sentido, em meio à comédia do homem – digo, do homem-homem.
Diante de prima e futura esposa, o juízo do personagem é capaz de mudar cento e oitenta graus em questão de minutos. Como quando pega Analice para passear, encanta-se com a figura angélica no banco do carona com os cabelos ao vento, e, quando já estão em seu destino, passa a vê-la como uma “sacana traidora”. Às vezes essa mudança de opinião tem ligação com o aparecimento de algum dado concreto, mas na maioria das vezes parece não passar de paranoia.
O proctologista decadente vê o resto da sociedade de cima para baixo, como uma escrava do Estado. Mas às vezes se descuida, tropeça e se vê junto aos outros mortais. Ele mesmo, anos atrás, ao voltar de um curso em São Paulo, foi pedir emprego a um antigo colega de faculdade, à época secretário de Saúde. O jovem Rochinha era um homem profundamente cínico. Sua opinião sobre a solidariedade? – “senão uma tolice, uma ilusão alimentada pelos bestas e pelos frágeis.” O amor? – “teoricamente, um sentimento patético e ridículo, inerente aos homens fracos, às mulheres impressionáveis.” Essa história também é mais velha do que andar pra frente. O jovem com a pior opinião do mundo que vira um adulto feito sob medida para reforçar suas convicções dos verdes anos.
Foi muito prazeroso ler um romance brasileiro contemporâneo de quatrocentas páginas super bem feito, em meio aos breves romances a que andamos habituados (alguns até bem feitos, mas mesmo assim). Se você ler as obras anteriores do sergipano Francisco Dantas (e você devia ler), verá que essa calma e habilidade ao contar uma estória é traço marcante desse autor que começou a publicar apenas aos 50 anos de idade. Também foi um prazer topar com palavras que nunca mais tinha lido, postas no papel adequadamente, sem esnobismo – varancadas, convolado, debique, esbodegado (melhor: esguedelhado), babujar, verrumar, capitosa, esgrouvinha…
Caderno de ruminações, de Francisco J. C. Dantas
Alfaguara, 2012, 408 páginas 
compre na Livraria Cultura.(http://www.livrariacultura.com.br)
Leia um trecho da obra:
E  é assim que mal-humorada, sem motivo justificável, Analice apronta mais uma que doutor Rochinha é obrigado a engolir. Tem nada não, ele se diz resignado, exercitando a paciência.  No próximo encontro vai pôr as cartas na mesa de qualquer jeito. Vai provar-lhe que não é um pretendente interesseiro. Não era a primeira vez que se prometia esclarecer-lhe os termos do casamento. Mas fraquejara. E tome-lhe adiamento. Agora, porém, chegara ao limite.
   Analice sempre fizera prevalecer a sua ascendência, inclusive tomando a frente das iniciativas que concerniam aos dois. De tal forma que o amedrontava: nas conversas telefônicas, ela queria e não queria o casamento. E o pior é que não esbarrava por aí. Quase sempre insatisfeita, ela exigia muito mais. Abusava. Mal ele ousava ponderar ou rebater-lhe algum ponto de vista—e olhe que educadamente!—recebia de volta uma pedrada. Reconhecia, com tristeza, que aquela graça tão feminina, aquela calma aparente do primeiro encontro, a concordância plena e maquinal, se mostravam agora, apenas uma moldura, uma fachada que protegia a sua fúria, pronta a saltar à baila, mal ele a contrariasse.
   Na qualidade de homem, urgia tomar alguma providência. Precisava lançar mão de algum recurso para reverter o foco do mundo. Devia apresentar-se mais decidido, ter uma postura mais firme, arrematar as discussões com palavras inabaláveis. Manifestar-se mais enérgico,  embora assim em termos, sem nenhuma apelação. E sabe Deus quanto tentara! Mas sempre teve pela frente uma mulher entrincheirada numa cerca viva de sisal, exercendo uma resistência inabalável, em que valiam todas as armas, inclusive gritos histéricos que nada tinham de saudáveis…"
(Caderno de ruminações - Francisco J. C. Dantas).

Antônio Torres revela como virou escritor

                   Kátia Borges – Revista MUITO, de A TARDE
O imortal Antônio Torres
Aos 73 anos, completados em 13 de setembro de 2013, o escritor Antônio Torres mantém o fôlego criativo do menino que, aos 10 anos, no Junco (hoje Sátiro Dias, a 206 quilômetros de Salvador), socorria os analfabetos do povoado, lendo e respondendo cartas dos migrantes em troca de doces. A vocação literária precoce, refinada pela atuação no jornalismo e na publicidade, foi aplaudida pela crítica em 1972, quando fez sua estreia com Um Cão Uivando para a Lua. Fã confesso de Jorge Amado, de quem tornou-se grande amigo, Torres ocupa, desde 7 de novembro deste ano, a cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras, justamente a que pertenceu a Amado. Ainda sob o impacto positivo da eleição para a ABL, que repercutiu em todo o país e no exterior, ele esteve rapidamente em Salvador para participar do Café Literário da XXIII   Bienal do Livro da Bahia. Nesta entrevista - concedida no hotel, pouco antes de um jantar em sua homenagem, organizado por amigos e escritores baianos -, Torres fala sobre a polêmica das biografias, o preconceito contra os autores "regionalistas", o poder, as contradições e a força da memória e o mercado literário nacional. "Até 1998, eu sentia medo de perder o emprego formal. Hoje, como escritor, não tenho emprego, mas trabalho não falta".    
Como aquele menino, que aos 10 anos escrevia cartas para os moradores do Junco em troca de doces, virou escritor?
Obra consagrada do autor
Começou na escola, quando a professora Serafina me colocou para ler Castro Alves num palanque no 7 de setembro e o povo da roça veio ver e se entusiasmou. Depois disso, se você me perguntasse o que eu queria ser quando crescesse, eu responderia: Castro Alves! Então a professora Teresa veio inaugurar o prédio da escola rural e nos ensinou composição. Dava um tema, a gente desenvolvia. A partir daí, as pessoas começaram a me notar. Tanto que, quando houve a primeira solenidade importante do povoado, fui escolhido para fazer um discurso, e, com isso, criou-se a imagem do menino que sabia escrever. Um dia, ao chegar em casa, um rapaz com uma folha de papel e um lápis na mão disse que me esperava desde cedo. Queria que eu escrevesse uma carta para uma moça por quem estava apaixonado. Ele era analfabeto. Fiquei encantado com o pedido, mas temeroso. Pedi que ele falasse da paixão e escrevi. Na semana seguinte, era a moça que estava lá, pedindo para que eu lesse a carta e respondesse. Foram os melhores direitos autorais da minha vida, pois o pagamento era feito em doces. A coisa foi num crescendo, e começaram a chegar cartas dos migrantes, que não iam ainda para São Paulo, nos anos 1940, mas para o sul da Bahia, a região do cacau. Toda segunda, o correio chegava no lombo de um burro e havia uma fila de mulheres à espera de notícias dos maridos. Falavam: "Chama o menino". E lá ia o menino ler. Era uma alegria para elas, mas um drama para aquele leitorzinho, pois elas choravam muito, e choravam no meu ombro.
Tornar-se escritor já era um sonho?

Seu livro mais conhecido
O sonho começou ali, com as leituras em voz alta e as redações da escola. A professora Teresa abria os livros e colocava os alunos em fila, mandando cada um ler um trecho. Para mim, certa vez, caiu "verdes mares bravios da minha terra natal" (Iracema, José de Alencar).  Nunca esqueci, sobretudo porque não sabia o que eram verdes mares. Na minha terra, nem rio havia. Imagina o que aquilo causou na minha cabeça? Passei noites a sonhar com o mar. Aquilo cumpria em mim o papel da literatura, que é abrir a imaginação, como o cordel já havia feito, quando li O Romance do Pavão Misterioso. A literatura surgiu com força e beleza na minha infância, e eu queria muito ser poeta. Só em Alagoinhas, um professor de português, figura fantástica, disse para mim que meu negócio não era poesia. Na mesma época, outro professor, o Carlos Borges, me emprestou Mar Morto, de Jorge Amado, e eu li todo em uma noite. No dia seguinte, fui até a livraria e comprei todos os livros dele. Quanto mais lia, mais sentia vontade de escrever.

domingo, 17 de novembro de 2013

III Noite Cultural: Saberes Sertanejos faz de Fátima centro cultural regional

ArMarias - grupo musical eclético de Feira de Santana
(foto: Jorge Souza)
A III Noite Cultural: Saberes Sertanejos - da cidade de Fátima - mostrou que o evento criado pela ASCAF – Associação Cultural Arte Fatimense – veio para ficar e já se consolidou como o principal evento de qualidade artística de nossa região. A realização é da Prefeitura Municipal de Fátima. Fugindo dos modismos e apostando no talento e no valor da criação, o evento este ano foi realizado nos dias 15 e 16 de novembro, no Colégio Municipal Floriano Peixoto. Foram inúmeras e variadas as atrações e gostos musicais. Na primeira noite o público vibrou com Cigarro de Palha, Adriana e Patrícia, Claudionor Alves, Walter Oliveira, João Sereno, Edir Carneiro, Érica Sá e ArMarias.
Edir Carneiro na III Noite Cultural
(foto: Jorge Souza)
Fica do todo difícil destacar alguém. João Sereno continua impecável, Edir Carneiro já é nome para ser relacionado entre os grandes e Érica Sá está cada vez mais leve e suave. Quando Érica canta, a gente esquece que o mundo é cruel e pensa num paraíso incomensurável. Mas a novidade este ano foi a presença do grupo formado só de mulheres, quase todas nascidas em Feira de Santana, denominado ArMarias. As meninas tiraram quase todos das cadeiras e o salão do evento virou um clube de mistura de ritmos. E a proposta do grupo é mesmo fazer música brasileira, misturando ritmos. Só para dar um exemplo, elas tocam Adriana Calcanhoto e Vanessa da Mata em ritmo de forró, ao lado de clássicos como “Carcará”, sem causar constrangimentos, muito pelo contrário. Como está no portal (http://tnb.art.br/rede/armarias), o nome 'ArMarias' retrata a popularidade, a coisa comum e cosmopolita, mas traz também a singularidade quando agrega-se o sobrenome a cada 'Maria', cada uma com sua influência pra banda, embora não tenha nenhuma Maria no grupo. A ideia foi formar a banda com os talentos musicais feirenses e mostrar a força da mulher no cenário musical. As integrantes da formação original da banda são: Amanda Queiroz (voz, piano e baixo), Dayane Sampaio (voz, violão e percussão) Luana Reis (voz, violão, percussão e saxofone), Michelly Cardoso (voz, violão, percussão e saxofone) e Rebeca Alves (voz, violão e percussão).
Um bom público participou do evento
(foto: Jorge Souza)
No sábado, o evento continuou em alto estilo com João Ricardo, Luiz, Lito Nyght, Meireles, Vando Reis e Sinval, Paulinho Jequié, Maviel Melo, Rodrigo e Lucas Santana. Mas o espaço não foi dedicado unicamente à música. Ao longo das duas noites houve exposição de pinturas e obras de arte, apresentação de Banda de Pífanos, artesanato, bordados, teatro e poesia. A III Noite Cultural: Saberes Sertanejos parece um projeto com visão de futuro. Binho, vereador, membro da ASCAF e presidente da Câmara Municipal de Fátima, em perfeita sintonia com o prefeito Nego, o Idelfonso deles, no fundo, querem transformar Fátima num polo cultural regional. A cidade, com vocação para a boa educação, para o comércio e para a agricultura, quer deixar de ser apenas mais uma cidade que sofre com os infindáveis eventos da estiagem. Fátima quer ir mais longe, quer ser protagonista da cultura regional. A trilha é esta. 
Abaixo seguem vídeos de alguns artistas que participaram do evento, inclusive o belíssimo clip Pontal, de Érica Sá, filmado em Aracaju, e um resumo da II Noite Cultural, feita em homenagem ao heliopolitano Helvécio Santana. As fotos desta reportagem são do jornalista Jorge Souza, do portal Impacto Jovem.  Para vê-las, dê um clique AQUI.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Vinícius 100 anos: o Orfeu da Conceição de Marcel Camus

Felicidades e tristezas em Orfeu Negro
Com trilha sonora de Tom Jobim e roteiro baseado em peça de Vinicius de Moraes, filme de 1959 conta a história de um casal que se apaixona em uma favela do Rio de Janeiro, durante o carnaval. Assista ao filme completo no final da reportagem.
Ronaldo Pelli – da Revista de História
É bastante representativo que a música mais conhecida fora da peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, seja a que canta “tristeza não tem fim / felicidade sim”. Em todas as suas estrofes, a canção mostra como a felicidade é efêmera: gota de orvalho numa pétala de flor, pluma que o vento vai levando pelo ar. Curiosamente a música se chama "Felicidade" (Vinicius tem uma outra chamada "Tristeza", aquela em que se pede para ela ir embora), e é representativa porque resumiria o caráter da tragédia, que virou filme pelas mãos do francês Marcel Camus (sem parentesco aparente com o outro Camus, o Albert), com a trilha sonora assinada por Tom Jobim. Mas será que toda tragédia mostra que a tristeza não tem fim, apenas, no caso, a felicidade?
O filme de Camus, Orfeu negro, é falado em português e situado no morro da Babilônia, como se fosse uma espécie de Olimpo carioca, com o Pão de Açúcar de um lado, a praia do Leme do outro. Vinicius percebe isso e escreve na introdução da peça: “O morro, a cavaleiro da cidade, cujas luzes brilham ao longe”. Ele traz o mito trácio de Orfeu para a realidade dos negros e das favelas do Rio de Janeiro no fim da década de 1950, com direito a samba, carnaval e sensualidade. Novamente para comprovar isso, na introdução da peça, Vinicius sugere que “todas as personagens da tragédia devem ser normalmente representadas por atores da raça negra, não importando isto em que não possa ser, eventualmente, encenada com atores brancos”. Ou seja, não era uma cota, mas uma indicação de como o seu autor, o branco mais preto do Brasil, ficaria satisfeito. E, comprovando o nosso racismo velado, foi apenas na primeira montagem da peça, em 25 de setembro de 1956, com quase meio século de existência, que o Theatro Municipal recebeu um ator negro em seu palco. No caso, um elenco inteiro.
Para perceber a importância do herói Orfeu para a mitologia dos trácios – um povo que ficava exatamente na ligação entre o que hoje chamaríamos de Grécia, Bulgária e Turquia –, Voltaire, em seu Dicionário filosófico, o compara a Abraão, entre judeus, cristão e muçulmanos, a “Tot entre os egípcios, o primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules na Grécia” e “Odin nas nações setentrionais”. Sua história, diferente de outros mitos, não tem uma versão “oficial”, não aparecendo em Homero ou Hesíodo, por exemplo, mas já era conhecido no tempo de Ibicus (c. 530 a.C. ) e Pindar (522 – 442 a.C.), que o chamava de “pais das canções”. Em algumas fontes, se diz que Orfeu seria filho de Apolo e da musa Calíope (como a própria peça de Vinicius, que coloca como sua mãe Clio, a musa da História), em outras, esse parentesco não é citado. Há muitas referências a Dionísio, inclusive chegando a dizer que ele seria a hipóstase do deus grego, ou seja, sua realidade concreta, sua substância, sua “encarnação”. De qualquer forma, é curiosa a ligação com esses dois deuses (Apolo e Dionísio), principalmente após Nietzsche, em O nascimento da tragédia, os ter colocado em posições quase antagônicas, de um lado o belo, o perfeito, a verdade, a razão, do outro o instinto de força, de luta, de desequilíbrio. No meio, entre os dois, a música. É aí que Orfeu, o herói, se situa. É o ponto de convergência entre Apolo e Dionísio.
Morto por mulheres
Se não temos a certeza do texto oficial, podemos perceber que em todas as versões que se contam sobre o mito, há uma coincidência: Eurídice. É por ela que Orfeu se encanta, se apaixona, e é por ela que ele vai até o Hades, o reino dos mortos. Os dois estão juntos quando Eurídice foge da perseguição do pastor Aristeu, e, na fuga, pisa em uma serpente que a pica, e a mata.  Desesperado, Orfeu resolve usar a sua arte para trazê-la de volta à vida. Desce ao submundo, e encontra Hades que fica sensibilizado com a sua música, e com o seu sofrimento, e faz-lhe a proposta de trazer Eurídice ao mundo debaixo do sol. Hades aceita mas impõe uma condição: desde que, na trajetória, Orfeu não olhasse para sua amada. Mas o amor nem sempre é paciente. O desespero, a ansiedade e a insegurança foram maiores e Orfeu, antes de chegar de volta ao mundo dos vivos, se vira e a encara. Assim, desrespeitando a ordem de Hades, a perde para sempre. De volta ao mundo dos vivos, Orfeu foi morto – as assassinas variam, mas sempre mulheres – por aquelas que se sentiram desdenhadas e invejavam o amor de Orfeu por Eurídice. “Mas as Musas, a quem o músico tão fielmente servira, recolheram seus despojos e os sepultaram ao pé do Olimpo. Sua cabeça e sua lira, que haviam sido atiradas ao rio, a correnteza jogou-as na praia da Ilha de Lesbos, de onde foram piedosamente recolhidas e guardadas ” – explica La leyenda dorada de los dioses y de los héroes, da autoria do helenista Mario Meunier, citado na apresentação da peça de Vinicius.
O filme de Camus, que venceu a Palma de Ouro do festival de Cannes, além de ganhar o Oscar de melhor filme falado em língua estrangeira, segue esse mito. Orfeu (Breno Mello) é um motorneiro e um grande músico, um dos principais componentes da fictícia escola de samba do morro da Babilônia. Segundo a lenda em torno de si, é ele quem faz, com o seu violão, o sol se levantar todos os dias de manhã. É um sujeito alegre, simpático, por quem as mulheres do morro vivem suspirando, enquanto os homens o consideram um grande camarada. Mais atirada que as demais, Mira (Lourdes de Oliveira) consegue levá-lo a um cartório para que fiquem noivos. Mas o homem que os atende, como um oráculo, já vaticina: Orfeu sempre ficou, fica e ficará com Eurídice. E Eurídice (Marpessa Dawn) já estava lá. Tinha acabado de chegar ao morro da Babilônia, vinda do Nordeste, fugindo de um homem, fazendo as vezes do pastor Aristeu, que ela diz que lhe quer mal. Chega no início do carnaval e vai ficar na casa da alegre Serafina (Léa Garcia), que vai proteger o casal e criar situações para que Mira não perceba a aproximação dos dois. A partir daí, a história segue até o seu esperado fim.
O que Vinicius de Moraes (e depois Camus) fez com Orfeu foi seguir uma tradição da modernidade, a mesma que o irlandês James Joyce já tinha seguido ao visitar a Odisseia em seu clássico Ulysses. Eles trazem o mito grego para os dias de então, mostrando como eles são eternos, e adaptar determinadas passagens para cenários e situações da cidade em questão. Joyce com Dublin, Vinicius com o Rio, mas o Rio mais pobre que há. Além disso, Joyce também usou da linguagem que era mais cara aos anglo-saxões, a literatura, enquanto Vinicius quis misturar palavra, som e gestos no teatro, mostrando o caráter menos letrado do nosso povo, mas não menor em nenhum aspecto, por conta disso.
Na ida ao reino dos mortos, por exemplo, Camus teve a brilhante ideia de adaptar um dos principais símbolos que há no Brasil de ligação entre os vivos e os não-vivos. Após a morte de Eurídice, Orfeu fica vagando pela cidade cheia por causa do carnaval. Em seguida, é levado por um faxineiro que se apieda de seu desespero para um terreiro de uma religião afrodescente, onde acompanha um ritual de evocação de espíritos. O seu acompanhante sugere que ele cante, para chamar Eurídice de volta, e Orfeu obedece. O clima da cena aumenta, com som de atabaques crescendo de volume, várias mulheres vestidas de branco andando em círculos, como se quisessem entrar em transe, até que uma delas recebe um santo. Orfeu fica assustado, mas continua cantando, até que se ouve uma voz, a voz de Eurídice, vinda de trás de Orfeu. Ele fica ainda mais surpreso, não esperava conseguir encontrá-la. Eurídice diz que eles poderiam conversar, mas que nunca mais se veriam. Ele jamais poderia se virar para vê-la. Se fizesse isso, ela desapareceria para sempre. Desesperado e sem aguentar ficar longe da mulher que ama, Orfeu se vira e vê não Eurídice, mas uma mulher mais velha, que não tinha aparecido até então, e que logo depois, sai do transe. O espírito de Eurídice já tinha ido embora.
Ao voltar para o morro, depois de já ter encontrado, ao menos, o corpo de Eurídice, Orfeu, carregando o cadáver nos braços, é recebido por uma ensandecida Mira, que havia descoberto que estava sendo enganada. Ela ataca Orfeu que morre, ao cair de uma ribanceira, junto com Eurídice. O herói, na morte, se une à sua amada.
Além da felicidade
A história de Orfeu, como a grande maioria das tragédias gregas, mostra que não podemos escapar do nosso destino último, que é a morte.  Mas mostra também que até lá, até o suspiro final, podemos navegar nessas águas nem sempre calmas da maneira como conseguirmos. Nem sempre os ventos são a favor, mas podemos nos adaptar para tirar o melhor proveito disso. O que Vinicius e Camus fazem, com essa adaptação do mito trágico, é jogar luz ao caráter melancólico, além do galhofento, da cultura nacional. Mostram que, além da felicidade, também é do nosso caráter, até por sermos humanos, a tristeza. Não dá para escapar dela. Essa afirmação pode parecer até estranha num momento como os tempos presentes, em que se busca o prazer de maneira desesperadora, como se viver sem prazer já fosse um sofrimento em si. Mas tristeza e felicidade são, de uma maneira misteriosa, interligadas. Assim como Apolo e Dionísio.
Certamente há momentos em que é complicado pensar que haverá outro carnaval, quando a quarta-feira de cinzas chega, como mostra uma das estrofes da música “Felicidade”, de Vinicius: “A felicidade do pobre parece / A grande ilusão do carnaval / A gente trabalha o ano inteiro/ Por um momento de sonho/ Pra fazer a fantasia / De rei ou de pirata ou jardineira/ Pra tudo se acabar na quarta-feira”. Falta um ano inteiro de tristezas, que parecem não ter fim.
Porém, é também certo que o próximo carnaval é mais aguardado e saboreado quanto mais cinzenta for a quarta-feira. É essa dualidade que faz com que ambos os lados tenham sabor. Se só tivermos contato com um deles, ele acaba se autodeprimindo, ficando sem forças, já que não haverá felicidade o suficiente para se manter para sempre alegre, ou para livrar de uma tristeza profunda. E basta-nos estar na vida para saber que ela sempre se movimenta. Como se a felicidade tivesse fim, sim, mas a tristeza também. Apenas não conseguimos enxergar esse fim, quando estavamos vivenciado um ou outro sentimento. Mas o simples fato de os sentimentos existirem, mostra essa dinâmica de um lado para o outro, como se fosse um pêndulo.
Apesar da grande tragédia, o fim do longa deixa uma pista para essa conclusão. Os dois meninos que acompanham Orfeu e Eurídice durante todo o filme, correm para tocar o violão de Orfeu e assim fazer o sol nascer – como o herói sempre fazia. O sol, de maneira completamente independente das nossas vidas, continua a se levantar. Mas nós podemos dar um sentido para ele – no caso, tocando a música que o fará despertar. Ao se levantar, o sol também nos mostra mais que uma indiferença para com todas as tragédias debaixo dele. Nos aponta uma proposta de vida: de que precisamos seguir, sempre. Mesmo nos momentos mais tristes.

Mais uma história debaixo d'água

Adeus, trem fantasma
Há cem anos era inaugurada, em Porto Velho (RO), a ferrovia Madeira-Mamoré, cuja implantação na Floresta Amazônica custou a vida de 6 mil trabalhadores, de trinta nacionalidades.
Texto e fotos: Heitor e Silvia Reali – da revista PLANETA
Um trecho de oito quilômetros entre Porto Velho e Santo Antônio será reativado
Duas monumentais obras da engenharia brasileira do século passado foram implantadas em Rondônia: a quilométrica linha telegráfica da Amazônia, levada a cabo pelo marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, e a ferrovia Madeira-Mamoré, aberta em plena floresta tropical, que completa 100 anos em agosto. Da primeira não resta um fio, mas a linha de comunicação que uniu Rondônia ao resto do Brasil não se desfez. A segunda está indo pelo mesmo caminho, sem ressalvas. Trabalhadores indianos ajudaram a construir a "Ferrovia do Diabo", junto com espanhóis, colombianos, panamenhos, poloneses e gregos.
Raramente um historiador lida com a história ao vivo, mas em Rondônia isso ainda é possível, pois o que sobrou da sucateada ferrovia ainda dá para ser vislumbrado. Muitos vestígios estão lá: locomotivas abandonadas, trilhos perdidos no mato, um museu em Porto Velho, outro em Guajará- Mirim, um cemitério abarrotado de cruzes, ruínas de estações fantasmas e pontes metálicas enferrujadas.
Parte desse legado está submergindo sob as águas represadas das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, como a ponte metálica Jaci-Paraná, com 84 metros de vão, um ícone da ferrovia. "Essa vai para baixo d'água", lamenta o historiador Aleksander Palitot, da Faculdade Porto, da Fundação Getúlio Vargas de Porto Velho. "Vários trechos da ferrovia foram inundados. Outra perda é a inundação do Marco Rondon, ou Marco Divisório, um obelisco centenário construído pela expedição Rondon, que implantou as linhas telegráficas em 1911, durante a demarcação dos Estados do Amazonas e de Mato Grosso", diz o historiador. Da memória apagada sobreviverão, além dos museus, pontes ferroviárias convertidas em rodoviárias, já usadas na rodovia Porto Velho-Guajará-Mirim.
O descaso com a preservação do que resta da ferrovia histórica leva o arquiteto Luiz Leite de Oliveira, presidente da Associação de Amigos da Madeira-Mamoré, a denunciar "a degradação, o abandono e o completo desaparecimento que também ocultará o orgulho de termos construído uma obra considerada ciclópica na época".
Exagero? Nem tanto. Na ocasião, a construção da estrada foi comparada à abertura do Canal do Panamá. Personalidades como o presidente Theodore Roosevelt, dos Estados Unidos, o escritor Mário de Andrade e o médico e antropólogo Edgar Roquette-Pinto, pioneiro do rádio no Brasil, "vieram a Rondônia conhecer o resultado do desafio de construir uma ferrovia no coração da Floresta Amazônica", ressalta Palitot.
O apogeu da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM) foi sua inauguração festiva em 1º de agosto de 1912, em Porto Velho. Os 366 quilômetros da ferrovia cortavam a floresta unindo as recém-fundadas Porto Velho e Guajará-Mirim (na divisa com a Bolívia). Desde 1867, sonhava-se com a obra. Naquele ano o Brasil firmou com a Bolívia o Tratado da Amizade que permitia ao país andino a navegação pelos rios Beni, Guaporé, Mamoré e Madeira, para escoar produtos pelo Oceano Atlântico. Havia só um porém: faltava transpor um extenso trecho encachoeirado do Rio Madeira - o que só uma ferrovia conseguiria.
A ferrovia da selva
Desativada em 1957, boa parte dos 366 Km de trilhos da ferrovia Madeira-Mamoré, de Porto Velho a Guajará- Mirim, em Rondônia, vai ser inundada pela subida das águas dos reservatórios das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau.
A primeira concessão para a construção da estrada foi acertada em 1868 e entregue ao americano George Church, presidente da Madeira- Mamoré Railway Co. Em 1872, iniciaram- se as obras. Com problemas similares aos encontrados pelos engenheiros franceses na primeira fase da construção do Canal do Panamá - agravados pelas dificuldades de abrir caminho pela floresta e o exorbitante número de trabalhadores mortos por malária e febre amarela -, duas empresas contratadas para a execução da ferrovia foram à falência, deixando para trás, em 1879, sete quilômetros de trilhos colocados.
Em 1879, a Bolívia sofreu uma traumática perda de território na costa do Oceano Pacífico, conquistado militarmente pelo Chile durante a Guerra do Pacífico (1879-1883), travada também contra o Peru. Os bolivianos perderam a cidade de Antofagasta e se viram sem saída para o mar. A ferrovia Madeira-Mamoré e os rios amazônicos viraram a única alternativa para a exportação dos seus produtos, pelo porto de Belém, no Oceano Atlântico. Entretanto, nenhuma outra empresa de engenharia topou encarar o desafio e Church desistiu da empreitada.
Para piorar, as relações entre Brasil e Bolívia também se deterioraram. Na virada do século 20, a Amazônia ganhou prosperidade com o ciclo da borracha, graças à seringueira Hevea brasiliensis. Espalhadas pela floresta, as árvores produziam uma borracha de qualidade única, essencial para o transporte, a comunicação e a indústria da época, um pouco como o petróleo é hoje em dia. Até 1910 a borracha foi o segundo produto da exportação brasileira, perdendo apenas para o café. Em consequência, a região recebeu investimentos, conheceu um boom econômico, inaugurou o Teatro Amazonas, em Manaus, e os seringalistas que haviam invadido a floresta boliviana proclamaram a República do Acre, em 1889.
Graças aos esforços do diplomata José da Silva Paranhos, o barão do Rio Branco, evitouse uma guerra com o país vizinho por meio do Tratado de Petrópolis, de 1903, pelo qual a Bolívia vendeu o Acre ao governo brasileiro. Pelo acordo, o Brasil se comprometeu a indenizar os bolivianos em dinheiro e a construir efetivamente a estrada de ferro. Em 1907 o governo federal assumiu a construção da ferrovia, entregando o empreendimento ao empresário norte-americano Percival Farquhar (1864- 1953). Foi a primeira grande obra da engenharia civil norte-americana fora dos EUA após o início da construção do Canal do Panamá (então em andamento). Quase 800 engenheiros e trabalhadores norte-americanos participaram da empreitada.
Farquhar, na verdade, estava mais interessado na borracha acreana do que nos produtos bolivianos. Segundo o jornalista Elio Gaspari, pesquisador do empreendimento, o norte-americano foi o maior empresário de serviços públicos da história nacional. "Ao câmbio de hoje, seus investimentos no país equivaleriam ao controle da Light, da Vivo, da Eletropaulo, da Acesita, dos metrôs do Rio e de São Paulo e ele ainda seria o principal acionista de nossos portos e ferrovias", diz Gaspari.
Sob suas ordens, o trajeto da ferrovia foi alterado, pântanos foram saneados, o médico e sanitarista Oswaldo Cruz foi enviado a Rondônia para dirigir as campanhas de saúde, construiu-se um hospital de referência em Porto Velho e a capital de Rondônia ganhou sistemas de água e esgoto.
Rastro de sofrimento
Depois de seis anos de construção, que empregaram 21 mil homens de 30 nacionalidades e percalços como desmoronamentos causados por chuvas e ataques de índios, a obra terminou em 1912. Seis mil trabalhadores perderam a vida na empreitada, a maioria vitimada pela malária e a febre amarela.
Uma vez implantada, a "Ferrovia do Diabo" tinha tudo para dar certo, pois a borracha seguia valorizada no mercado mundial. Mas veio outro imprevisto. No fim do século 19, o inglês Henry Wickham contrabandeara para a Inglaterra 70 mil sementes da seringueira, liberadas pela alfândega de Santarém como "espécies exóticas e delicadas para o Jardim Botânico de Londres". A hévea foi plantada na Indonésia e na Malásia e começou a produzir intensivamente em florestas cultivadas. Assim, em 1913, a ferrovia sofreu outro golpe: os plantadores asiáticos inundaram o mercado com uma borracha de boa qualidade a preços baixos. A biopirataria de Wickham arruinou a economia da borracha da Amazônia e deu à Inglaterra o monopólio global do produto até a Segunda Guerra Mundial, quando surgiu a borracha sintética.
Falida, a ferrovia se arrastou nas mãos da Madeira-Mamoré Company até 1934, quando a empresa rescindiu o contrato de arrendamento de 60 anos e a estrada voltou para as mãos do governo federal. Durante a Segunda Guerra Mundial a Madeira- Mamoré recuperou valor estratégico, recolhendo borracha para o esforço de guerra aliado. Até 1957, chegou a registrar tráfego de passageiros e cargas. Em 1966, entretanto, o governo federal determinou que fosse desativada e substituída por uma rodovia, para não configurar um rompimento do Acordo de Petrópolis. Tal rodovia é a união da BR-425 (Porto Velho-Guajará-Mirim) e da BR-364 (Porto Velho-Cuiabá). Em 1981, um pequeno trecho da ferrovia voltou a funcionar para fins turísticos, mas foi paralisado no ano 2000. 
Quarenta anos depois do último apito das marias-fumaças, uma pátina de esquecimento líquido cai sobre a estrada, inundada pelas águas do reservatório da hidrelétrica de Santo Antônio. Como compensação pelos impactos da obra, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional determinou a restauração da oficina da EFMM em Porto Velho (5,7 mil metros quadrados de área construída e galpões de 13 metros de altura), paga pelo consórcio Madeira Energia, responsável pela usina.