Felicidades e tristezas em Orfeu
Negro
Com trilha sonora de Tom Jobim e
roteiro baseado em peça de Vinicius de Moraes, filme de 1959 conta a história
de um casal que se apaixona em uma favela do Rio de Janeiro, durante o carnaval. Assista ao filme completo no final da reportagem.
Ronaldo Pelli – da Revista de
História
É bastante representativo que a
música mais conhecida fora da peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes,
seja a que canta “tristeza não tem fim / felicidade sim”. Em todas as suas
estrofes, a canção mostra como a felicidade é efêmera: gota de orvalho numa
pétala de flor, pluma que o vento vai levando pelo ar. Curiosamente a música se
chama "Felicidade" (Vinicius tem uma outra chamada
"Tristeza", aquela em que se pede para ela ir embora), e é
representativa porque resumiria o caráter da tragédia, que virou filme pelas
mãos do francês Marcel Camus (sem parentesco aparente com o outro Camus, o
Albert), com a trilha sonora assinada por Tom Jobim. Mas será que toda tragédia
mostra que a tristeza não tem fim, apenas, no caso, a felicidade?
O filme de Camus, Orfeu negro, é
falado em português e situado no morro da Babilônia, como se fosse uma espécie
de Olimpo carioca, com o Pão de Açúcar de um lado, a praia do Leme do outro.
Vinicius percebe isso e escreve na introdução da peça: “O morro, a cavaleiro da
cidade, cujas luzes brilham ao longe”. Ele traz o mito trácio de Orfeu para a
realidade dos negros e das favelas do Rio de Janeiro no fim da década de 1950,
com direito a samba, carnaval e sensualidade. Novamente para comprovar isso, na
introdução da peça, Vinicius sugere que “todas as personagens da tragédia devem
ser normalmente representadas por atores da raça negra, não importando isto em
que não possa ser, eventualmente, encenada com atores brancos”. Ou seja, não
era uma cota, mas uma indicação de como o seu autor, o branco mais preto do
Brasil, ficaria satisfeito. E, comprovando o nosso racismo velado, foi apenas
na primeira montagem da peça, em 25 de setembro de 1956, com quase meio século
de existência, que o Theatro Municipal recebeu um ator negro em seu palco. No
caso, um elenco inteiro.
Para perceber a importância do
herói Orfeu para a mitologia dos trácios – um povo que ficava exatamente na
ligação entre o que hoje chamaríamos de Grécia, Bulgária e Turquia –, Voltaire,
em seu Dicionário filosófico, o compara a Abraão, entre judeus, cristão e
muçulmanos, a “Tot entre os egípcios, o primeiro Zoroastro na Pérsia, Hércules
na Grécia” e “Odin nas nações setentrionais”. Sua história, diferente de outros
mitos, não tem uma versão “oficial”, não aparecendo em Homero ou Hesíodo, por
exemplo, mas já era conhecido no tempo de Ibicus (c. 530 a.C. ) e Pindar (522 –
442 a.C.), que o chamava de “pais das canções”. Em algumas fontes, se diz que
Orfeu seria filho de Apolo e da musa Calíope (como a própria peça de Vinicius,
que coloca como sua mãe Clio, a musa da História), em outras, esse parentesco
não é citado. Há muitas referências a Dionísio, inclusive chegando a dizer que
ele seria a hipóstase do deus grego, ou seja, sua realidade concreta, sua
substância, sua “encarnação”. De qualquer forma, é curiosa a ligação com esses
dois deuses (Apolo e Dionísio), principalmente após Nietzsche, em O nascimento
da tragédia, os ter colocado em posições quase antagônicas, de um lado o belo,
o perfeito, a verdade, a razão, do outro o instinto de força, de luta, de
desequilíbrio. No meio, entre os dois, a música. É aí que Orfeu, o herói, se
situa. É o ponto de convergência entre Apolo e Dionísio.
Morto por mulheres
Se não temos a certeza do texto
oficial, podemos perceber que em todas as versões que se contam sobre o mito,
há uma coincidência: Eurídice. É por ela que Orfeu se encanta, se apaixona, e é
por ela que ele vai até o Hades, o reino dos mortos. Os dois estão juntos
quando Eurídice foge da perseguição do pastor Aristeu, e, na fuga, pisa em uma
serpente que a pica, e a mata.
Desesperado, Orfeu resolve usar a sua arte para trazê-la de volta à
vida. Desce ao submundo, e encontra Hades que fica sensibilizado com a sua
música, e com o seu sofrimento, e faz-lhe a proposta de trazer Eurídice ao
mundo debaixo do sol. Hades aceita mas impõe uma condição: desde que, na
trajetória, Orfeu não olhasse para sua amada. Mas o amor nem sempre é paciente.
O desespero, a ansiedade e a insegurança foram maiores e Orfeu, antes de chegar
de volta ao mundo dos vivos, se vira e a encara. Assim, desrespeitando a ordem
de Hades, a perde para sempre. De volta ao mundo dos vivos, Orfeu foi morto –
as assassinas variam, mas sempre mulheres – por aquelas que se sentiram
desdenhadas e invejavam o amor de Orfeu por Eurídice. “Mas as Musas, a quem o
músico tão fielmente servira, recolheram seus despojos e os sepultaram ao pé do
Olimpo. Sua cabeça e sua lira, que haviam sido atiradas ao rio, a correnteza
jogou-as na praia da Ilha de Lesbos, de onde foram piedosamente recolhidas e
guardadas ” – explica La leyenda dorada de los dioses y de los héroes, da
autoria do helenista Mario Meunier, citado na apresentação da peça de Vinicius.
O filme de Camus, que venceu a
Palma de Ouro do festival de Cannes, além de ganhar o Oscar de melhor filme
falado em língua estrangeira, segue esse mito. Orfeu (Breno Mello) é um
motorneiro e um grande músico, um dos principais componentes da fictícia escola
de samba do morro da Babilônia. Segundo a lenda em torno de si, é ele quem faz,
com o seu violão, o sol se levantar todos os dias de manhã. É um sujeito
alegre, simpático, por quem as mulheres do morro vivem suspirando, enquanto os
homens o consideram um grande camarada. Mais atirada que as demais, Mira
(Lourdes de Oliveira) consegue levá-lo a um cartório para que fiquem noivos.
Mas o homem que os atende, como um oráculo, já vaticina: Orfeu sempre ficou,
fica e ficará com Eurídice. E Eurídice (Marpessa Dawn) já estava lá. Tinha
acabado de chegar ao morro da Babilônia, vinda do Nordeste, fugindo de um
homem, fazendo as vezes do pastor Aristeu, que ela diz que lhe quer mal. Chega
no início do carnaval e vai ficar na casa da alegre Serafina (Léa Garcia), que
vai proteger o casal e criar situações para que Mira não perceba a aproximação
dos dois. A partir daí, a história segue até o seu esperado fim.
O que Vinicius de Moraes (e
depois Camus) fez com Orfeu foi seguir uma tradição da modernidade, a mesma que
o irlandês James Joyce já tinha seguido ao visitar a Odisseia em seu clássico
Ulysses. Eles trazem o mito grego para os dias de então, mostrando como eles
são eternos, e adaptar determinadas passagens para cenários e situações da
cidade em questão. Joyce com Dublin, Vinicius com o Rio, mas o Rio mais pobre
que há. Além disso, Joyce também usou da linguagem que era mais cara aos
anglo-saxões, a literatura, enquanto Vinicius quis misturar palavra, som e
gestos no teatro, mostrando o caráter menos letrado do nosso povo, mas não
menor em nenhum aspecto, por conta disso.
Na ida ao reino dos mortos, por
exemplo, Camus teve a brilhante ideia de adaptar um dos principais símbolos que
há no Brasil de ligação entre os vivos e os não-vivos. Após a morte de
Eurídice, Orfeu fica vagando pela cidade cheia por causa do carnaval. Em
seguida, é levado por um faxineiro que se apieda de seu desespero para um
terreiro de uma religião afrodescente, onde acompanha um ritual de evocação de
espíritos. O seu acompanhante sugere que ele cante, para chamar Eurídice de
volta, e Orfeu obedece. O clima da cena aumenta, com som de atabaques crescendo
de volume, várias mulheres vestidas de branco andando em círculos, como se
quisessem entrar em transe, até que uma delas recebe um santo. Orfeu fica
assustado, mas continua cantando, até que se ouve uma voz, a voz de Eurídice,
vinda de trás de Orfeu. Ele fica ainda mais surpreso, não esperava conseguir
encontrá-la. Eurídice diz que eles poderiam conversar, mas que nunca mais se
veriam. Ele jamais poderia se virar para vê-la. Se fizesse isso, ela
desapareceria para sempre. Desesperado e sem aguentar ficar longe da mulher que
ama, Orfeu se vira e vê não Eurídice, mas uma mulher mais velha, que não tinha
aparecido até então, e que logo depois, sai do transe. O espírito de Eurídice
já tinha ido embora.
Ao voltar para o morro, depois de
já ter encontrado, ao menos, o corpo de Eurídice, Orfeu, carregando o cadáver
nos braços, é recebido por uma ensandecida Mira, que havia descoberto que
estava sendo enganada. Ela ataca Orfeu que morre, ao cair de uma ribanceira,
junto com Eurídice. O herói, na morte, se une à sua amada.
Além da felicidade
A história de Orfeu, como a
grande maioria das tragédias gregas, mostra que não podemos escapar do nosso
destino último, que é a morte. Mas
mostra também que até lá, até o suspiro final, podemos navegar nessas águas nem
sempre calmas da maneira como conseguirmos. Nem sempre os ventos são a favor,
mas podemos nos adaptar para tirar o melhor proveito disso. O que Vinicius e
Camus fazem, com essa adaptação do mito trágico, é jogar luz ao caráter melancólico,
além do galhofento, da cultura nacional. Mostram que, além da felicidade,
também é do nosso caráter, até por sermos humanos, a tristeza. Não dá para
escapar dela. Essa afirmação pode parecer até estranha num momento como os
tempos presentes, em que se busca o prazer de maneira desesperadora, como se
viver sem prazer já fosse um sofrimento em si. Mas tristeza e felicidade são,
de uma maneira misteriosa, interligadas. Assim como Apolo e Dionísio.
Certamente há momentos em que é
complicado pensar que haverá outro carnaval, quando a quarta-feira de cinzas
chega, como mostra uma das estrofes da música “Felicidade”, de Vinicius: “A
felicidade do pobre parece / A grande ilusão do carnaval / A gente trabalha o
ano inteiro/ Por um momento de sonho/ Pra fazer a fantasia / De rei ou de
pirata ou jardineira/ Pra tudo se acabar na quarta-feira”. Falta um ano inteiro
de tristezas, que parecem não ter fim.
Porém, é também certo que o
próximo carnaval é mais aguardado e saboreado quanto mais cinzenta for a
quarta-feira. É essa dualidade que faz com que ambos os lados tenham sabor. Se
só tivermos contato com um deles, ele acaba se autodeprimindo, ficando sem
forças, já que não haverá felicidade o suficiente para se manter para sempre
alegre, ou para livrar de uma tristeza profunda. E basta-nos estar na vida para
saber que ela sempre se movimenta. Como se a felicidade tivesse fim, sim, mas a
tristeza também. Apenas não conseguimos enxergar esse fim, quando estavamos
vivenciado um ou outro sentimento. Mas o simples fato de os sentimentos
existirem, mostra essa dinâmica de um lado para o outro, como se fosse um
pêndulo.
Apesar da grande tragédia, o fim
do longa deixa uma pista para essa conclusão. Os dois meninos que acompanham
Orfeu e Eurídice durante todo o filme, correm para tocar o violão de Orfeu e
assim fazer o sol nascer – como o herói sempre fazia. O sol, de maneira
completamente independente das nossas vidas, continua a se levantar. Mas nós
podemos dar um sentido para ele – no caso, tocando a música que o fará
despertar. Ao se levantar, o sol também nos mostra mais que uma indiferença
para com todas as tragédias debaixo dele. Nos aponta uma proposta de vida: de
que precisamos seguir, sempre. Mesmo nos momentos mais tristes.