Alceu Valença, o homem que vive
três anos em um, estreia como cineasta e se torna uma usina de shows aos 66
anos
JULIO MARIA - O Estado de S.Paulo
Alceu Valença |
Abençoado o repórter que consegue
fazer três perguntas a Alceu Valença. Como se o mundo fosse acabar ali mesmo,
ele toma para si as funções de entrevistado e entrevistador assim que apanha o
telefone e sai atropelando a própria ordem narrativa que tenta construir. Cinco
ou seis minutos se passam com Alceu respondendo as próprias questões até que
ele respira, diz um "tá me ouvindo, meu velho?", ganha confiança ao
saber que sim e recoloca o indicador no gatilho. Alceu, 66 anos, vive presente,
passado e futuro ao mesmo tempo. Com cinco safenas caprichosas que deixaram o
seu coração igualzinho Recife, "cheio de pontes", parece ser levado
por cada uma delas a um destino diferente.
É um giro e tanto o que lhe
aguarda nos próximos dias: hoje chega a Rio Negrinho, Santa Catarina, para
participar de um festival de rock que o tem como atração principal. "Mas
você faz um rock que não é rock!", disse a ele um confuso jornalista
norte-americano depois de vê-lo em um show no Carnegie Hall, em Nova York, nos
anos 80. Depois, sobe para Sobral, no Ceará, pronto para outro formato de show,
mais centrado em frevos e em Luiz Gonzaga. "Mas sua banda, Alceu, é uma
banda de pife elétrico!", disse a ele Gonzagão, aperreado com o que
ouvira, antes de fazerem juntos a canção Plano Piloto. O músico segue então
para o Sesc Pompeia, São Paulo, para tocar dias 4, 5 e 6 de janeiro seu modelo
acústico, com a acordeonista Lucy Alves e o guitarrista e parceiro de anos
Paulo Rafael, que neste projeto sustenta as harmonias dos clássicos de Alceu
com viola e violão. Quatro dias depois e o novo destino será os palcos de
Lisboa e Paris para uma temporada que desengaveta mais memórias.
Cena de A Luneta do Tempo |
Estava Alceu em 1979 prestes a se
apresentar no New Folk Festival, na Suíça, quando um repórter o abordou no
camarim. "O que você acha de cantar antes da Joan Baez?" Alceu olhou
o rapaz de alto a baixo e devolveu: "Mas rapaz, por que você não pergunta
a ela o que acha de se apresentar depois do Alceu Valença, do Brasil?"
O gás de Alceu não arrefece com
sua volta. É para este ano que ele promete a estreia de A Luneta do Tempo, seu
primeiro filme, do qual assina roteiro e direção. Suas ideias começaram há dez
anos, quando lhe vieram os esboços da trama de amor que se passa no cangaço de
violeiros e artistas circenses, inspirada em rimas de cordel e linguagem de
repentistas. Conta a história de Rodrigo, um diretor de cinema, que volta a São
Bento do Una (terra do próprio músico) para filmar a saga de Lampião, Maria
Bonita, Severo Brilhante e seu bando contra Antero Tenente e seus soldados.
Irandhir Santos aparece como Lampião, Hermila Guedes é Maria Bonita e Ceceu
Valença, filho de Alceu, vive o mulherengo e canastrão Nagib Mazola.
A mão de Alceu está na trilha
sonora e em um texto que poderia sempre ser música. Sem saber que está no
purgatório com Maria Bonita, Lampião se enfeza com a mulher que tenta
convencê-lo de que ambos estão mortos. Magoada, ela se refugia em uma pedra
alta e fica por lá, contemplando um fim de tarde inebriante com toda a sua
tristeza. Lampião chega por trás e começa a cortejá-la: "Se o tempo
tivesse a medida pequena de um dia de feira e tu não fosse a minha vida, eu
cometia uma besteira. Voava daqui do lajedo nas asas leves do vento, matava
cabo e sargento e virava o mundo todo do avesso. Mas confesso o meu segredo, do
fundo do meu sentimento: sem você, morro de medo. Não te esqueço um só
momento." Maria Bonita fica desconcertada. "Tu és o rei da poesia,
Lampião." E ele devolve: "Ah Maria, deixe de besteira."
Alceu Valença em ação no set de filmagens |
"Quero colocar o filme
primeiro nos circuitos internacionais para depois trazê-lo ao Brasil, ainda em
2013", diz o músico. O longa, uma ficção, ganha tons biográficos quando
reconduz o artista às origens de São Bento do Una. Pois foi lá que seu pai
sentiu com agulhadas no peito que o moleque tinha mesmo um pé no palco.
"Música era uma coisa proibida lá em casa. Meu pai não quis me dar nem um
violão, queria que eu estudasse outra coisa."
Apesar de ter Jackson do Pandeiro
e Luiz Gonzaga subindo suas veias lado a lado com os genes do rock and roll setentista
e de frevos, maracatus, choros e da música árabe que historicamente usa o baião
como seu melhor hospedeiro no Brasil, Alceu diz ser um homem sem ídolos,
inspirado por uma conversa de corredor que teve com Hermeto Pascoal. "Mas
Hermeto, quem você ouve para se inspirar?" "Eu não ouço nada."
"Por que não?" "Para não me influenciar."
Quando fica indignado, seus
disparos atingem o programa The Voice, da Globo. "O Brasil precisa tomar
vergonha na cara. Enquanto nossa taxa de desemprego é inferior à dos Estados
Unidos e nossa economia se fortalece, as pessoas continuam indo para a
televisão cantar soul music, fazer cópia de norte-americano. E eu te pergunto:
Você acha que um dia vamos fazer soul music melhor do que os americanos?".
O circuito que o Nordeste criou para alimentar seu show biz lhe dá vergonha.
"Os donos das rádios são os mesmos donos das bandas de forró. Criam uma
rede fechada para se apresentar e dizem fazer o que o povo gosta. E como é que
o povo vai gostar de outra coisa?" Uma hora e trinta e cinco minutos
depois, o repórter consegue fazer a quarta pergunta: "Você pode me mandar
o roteiro do seu filme?" E Alceu, o homem que quer viver três anos em um,
responde: "Não rapaz, escreve aí que eu dito. Assim a gente continua conversando."