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sábado, 29 de dezembro de 2012

Alceu Valença estreia como cineasta


Alceu Valença, o homem que vive três anos em um, estreia como cineasta e se torna uma usina de shows aos 66 anos
JULIO MARIA - O Estado de S.Paulo
Alceu Valença
Abençoado o repórter que consegue fazer três perguntas a Alceu Valença. Como se o mundo fosse acabar ali mesmo, ele toma para si as funções de entrevistado e entrevistador assim que apanha o telefone e sai atropelando a própria ordem narrativa que tenta construir. Cinco ou seis minutos se passam com Alceu respondendo as próprias questões até que ele respira, diz um "tá me ouvindo, meu velho?", ganha confiança ao saber que sim e recoloca o indicador no gatilho. Alceu, 66 anos, vive presente, passado e futuro ao mesmo tempo. Com cinco safenas caprichosas que deixaram o seu coração igualzinho Recife, "cheio de pontes", parece ser levado por cada uma delas a um destino diferente.
É um giro e tanto o que lhe aguarda nos próximos dias: hoje chega a Rio Negrinho, Santa Catarina, para participar de um festival de rock que o tem como atração principal. "Mas você faz um rock que não é rock!", disse a ele um confuso jornalista norte-americano depois de vê-lo em um show no Carnegie Hall, em Nova York, nos anos 80. Depois, sobe para Sobral, no Ceará, pronto para outro formato de show, mais centrado em frevos e em Luiz Gonzaga. "Mas sua banda, Alceu, é uma banda de pife elétrico!", disse a ele Gonzagão, aperreado com o que ouvira, antes de fazerem juntos a canção Plano Piloto. O músico segue então para o Sesc Pompeia, São Paulo, para tocar dias 4, 5 e 6 de janeiro seu modelo acústico, com a acordeonista Lucy Alves e o guitarrista e parceiro de anos Paulo Rafael, que neste projeto sustenta as harmonias dos clássicos de Alceu com viola e violão. Quatro dias depois e o novo destino será os palcos de Lisboa e Paris para uma temporada que desengaveta mais memórias.
Cena de A Luneta do Tempo
Estava Alceu em 1979 prestes a se apresentar no New Folk Festival, na Suíça, quando um repórter o abordou no camarim. "O que você acha de cantar antes da Joan Baez?" Alceu olhou o rapaz de alto a baixo e devolveu: "Mas rapaz, por que você não pergunta a ela o que acha de se apresentar depois do Alceu Valença, do Brasil?"
O gás de Alceu não arrefece com sua volta. É para este ano que ele promete a estreia de A Luneta do Tempo, seu primeiro filme, do qual assina roteiro e direção. Suas ideias começaram há dez anos, quando lhe vieram os esboços da trama de amor que se passa no cangaço de violeiros e artistas circenses, inspirada em rimas de cordel e linguagem de repentistas. Conta a história de Rodrigo, um diretor de cinema, que volta a São Bento do Una (terra do próprio músico) para filmar a saga de Lampião, Maria Bonita, Severo Brilhante e seu bando contra Antero Tenente e seus soldados. Irandhir Santos aparece como Lampião, Hermila Guedes é Maria Bonita e Ceceu Valença, filho de Alceu, vive o mulherengo e canastrão Nagib Mazola.
A mão de Alceu está na trilha sonora e em um texto que poderia sempre ser música. Sem saber que está no purgatório com Maria Bonita, Lampião se enfeza com a mulher que tenta convencê-lo de que ambos estão mortos. Magoada, ela se refugia em uma pedra alta e fica por lá, contemplando um fim de tarde inebriante com toda a sua tristeza. Lampião chega por trás e começa a cortejá-la: "Se o tempo tivesse a medida pequena de um dia de feira e tu não fosse a minha vida, eu cometia uma besteira. Voava daqui do lajedo nas asas leves do vento, matava cabo e sargento e virava o mundo todo do avesso. Mas confesso o meu segredo, do fundo do meu sentimento: sem você, morro de medo. Não te esqueço um só momento." Maria Bonita fica desconcertada. "Tu és o rei da poesia, Lampião." E ele devolve: "Ah Maria, deixe de besteira."
Alceu Valença em ação no set de filmagens
"Quero colocar o filme primeiro nos circuitos internacionais para depois trazê-lo ao Brasil, ainda em 2013", diz o músico. O longa, uma ficção, ganha tons biográficos quando reconduz o artista às origens de São Bento do Una. Pois foi lá que seu pai sentiu com agulhadas no peito que o moleque tinha mesmo um pé no palco. "Música era uma coisa proibida lá em casa. Meu pai não quis me dar nem um violão, queria que eu estudasse outra coisa."
Apesar de ter Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga subindo suas veias lado a lado com os genes do rock and roll setentista e de frevos, maracatus, choros e da música árabe que historicamente usa o baião como seu melhor hospedeiro no Brasil, Alceu diz ser um homem sem ídolos, inspirado por uma conversa de corredor que teve com Hermeto Pascoal. "Mas Hermeto, quem você ouve para se inspirar?" "Eu não ouço nada." "Por que não?" "Para não me influenciar."
Quando fica indignado, seus disparos atingem o programa The Voice, da Globo. "O Brasil precisa tomar vergonha na cara. Enquanto nossa taxa de desemprego é inferior à dos Estados Unidos e nossa economia se fortalece, as pessoas continuam indo para a televisão cantar soul music, fazer cópia de norte-americano. E eu te pergunto: Você acha que um dia vamos fazer soul music melhor do que os americanos?". O circuito que o Nordeste criou para alimentar seu show biz lhe dá vergonha. "Os donos das rádios são os mesmos donos das bandas de forró. Criam uma rede fechada para se apresentar e dizem fazer o que o povo gosta. E como é que o povo vai gostar de outra coisa?" Uma hora e trinta e cinco minutos depois, o repórter consegue fazer a quarta pergunta: "Você pode me mandar o roteiro do seu filme?" E Alceu, o homem que quer viver três anos em um, responde: "Não rapaz, escreve aí que eu dito. Assim a gente continua conversando."