Uma releitura de seus contos e um
ensaio psicanalítico serão lançados no país
ANTONIO GONÇALVES FILHO – de O
ESTADO DE SÃO PAULO
Clarice Lispector em seu apartamento em 1961 |
A crescente onda de traduções dos
livros de Clarice Lispector (1920-1977) nos EUA, tema da matéria de capa da
Bookforum deste mês, vem acompanhada no Brasil de novas abordagens da obra da
escritora. É o que atestam dois lançamentos simultâneos: Extratextos 1 -
reunião de 12 contos inspirados por seus personagens e encomendados a um grupo
de ficcionistas - e No Limiar do Silêncio e da Letra, ensaio de Maria Lucia
Homem sobre a questão da autoria em Clarice Lispector com base em três livros
dela: Água Viva (1973), A Hora da Estrela (1977) e Um Sopro de Vida (1978). No
primeiro dos lançamentos, Extratextos 1, estão reunidos escritores brasileiros
e estrangeiros, entre eles o crítico literário Silviano Santiago, colunista do
Sabático (leia trecho de seu conto no link acima). Essa experiência de
reescritura é analisada pela ensaísta Olga de Sá em texto publicado abaixo,
enquanto o processo construtivo da literatura clariciana e seu diálogo com o
leitor - convocado a dividir a autoria dos textos - é o tema do artigo de
Alcides Villaça, da USP, que está nos links acima.
Ao confundir as funções de autor,
personagem e leitor em alguns de seus livros, Clarice fez a este último um
convite ao abandono da razão. Para a crítica literária Rachel Kushner, que
assina o ensaio da Bookforum, isso explicaria a empatia dos americanos com seus
textos carregados de filosofia - que, contrariando Wittgenstein, ousam dizer
aquilo que é impossível ser dito. Ela suspeita que a razão de Clarice ter
inspirado verdadeira devoção entre seus leitores resida na segurança de terem
um guia - sincero, honesto, ainda que inseguro - à frente do texto. "Os
leitores sentem que ela está falando com eles sobre a mais básica e ao mesmo
tempo mais complexa experiência humana: a estranheza diante do que significa
estar vivo."
A psicanalista Maria Lucia Homem,
que dedicou cinco anos à elaboração de No Limiar do Silêncio e da Letra, diz a
esse respeito que Clarice "tenta construir outro estatuto para a linguagem
verbal", aproximando a escrita de uma "névoa", de uma
"fotografia muda", além de estabelecer diálogos intertextuais com
outros autores (Shakespeare, Dostoievski) para traduzir a tragédia existencial
do homem, "submetido às mazelas do destino e das condições que o
cercam". Autor, leitor e texto, segundo a psicanalista, formam uma tríade
inseparável. Clarice, observa ela, tematiza o tema da autoria como
representante da modernidade literária, em que questiona a posição do narrador
e ultrapassa os limites formais, afirmando que sua linhagem é a de Proust,
James Joyce e Virginia Woolf.
A autora do artigo da Bookforum
vai além, comparando-a a Kafka, uma vez que ambos elegem um simples inseto para
conferir ao homem o ingresso numa dimensão metafísica, surreal. Graças à barata
de A Paixão Segundo G.H. (1964), a burguesa do livro experimenta, comenta ela,
o gosto da transubstanciação católica. É a sua hóstia em seu incipiente
processo de transformação espiritual, conclui Kushner. Outra referência citada
por ela é Ingeborg Bachmann (1926-1973), poeta austríaca que morreu em
consequência de queimaduras provocadas por um incêndio em seu quarto, causado
por um cigarro (Clarice passou exatamente pelo mesmo drama, mas escapou).
No entanto, Kushner discorda que
a modernidade de Clarice deva algo ao "stream-of-consciousness"
(fluxo de consciência) de Joyce ou Virginia. Em termos de correntes literárias
vanguardistas e de suas relações com os contemporâneos, ela não seria, acredita
a crítica, "conscientemente experimental". Se tanto, Kushner vê maior
afinidade com os artistas neoconcretos - Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia
Pape -, identificando em Água Viva uma tentativa de traduzir em palavras a
ordem geométrica dominante nas obras neoconcretas. O que não pode ser dito
talvez possa, afinal, ser mostrado, conforme sua lógica. A ideia que Clarice
tinha de Natal, argumenta Kushner, era a de uma árvore decorada com formas
geométricas irregulares em preto e cinza, como num metaesquesma de Oiticica.
Foi a árvore que ela montou em Chevy Chase, Maryland, em 1950, ainda casada com
o diplomata Maury Gurgel Valente.
Por aquela época, Clarice
convivia com seus amigos mineiros - Fernando Sabino, Lúcio Cardoso, Otto Lara
Resende e Paulo Mendes Campos -, convivência essa que a associava
automaticamente ao gosto dos mineiros por discussões em torno das tradições
religiosas (especialmente a católica). Ela mesma era leitora de Imitação de
Cristo, obra devocional do padre alemão Tomás de Kempis, publicada no século
15, cita o também mineiro Silviano Santiago. Quase ninguém, na época, lembrava
de Clarice como uma escritora judia, nascida na Ucrânia. Santiago observa que
ela, acima de qualquer classificação, foi sucessivamente apropriada pelos
católicos nos anos 1950, depois por existencialistas nos anos 1960, pelas
feministas francesas nos anos 1970 (notadamente a argelina Hélène Cixous) e,
agora, pela intelectualidade americana, que a quer uma escritora encaixada na
tradição dos grandes escritores judeus, como Saul Bellow e Philip Roth.
Contribui para isso a biografia (Clarice), de Benjamin Moser, em que o
americano sugere ser o judaísmo um tema "disfarçado" em seus
escritos. Clarice, como Moser, não era religiosa. Ele garantiu mais de uma vez
que a presença judaica não contribuiu para seu interesse inicial pela autora.
A psicanalista Maria Lucia Homem
ressalta, com razão, que a associação de Clarice com a tradição judaica é
anterior a Moser. A escritora tentou "dar forma ao incomensurável",
diz. O silêncio, o impronunciável, aquilo que não pode ser escrito, toda essa
discussão filosófica judaica, de acordo com a autora, é retomada por Clarice
numa perspectiva moderna, cuja chave psicanalítica seria a "subjetividade
pautada pelo inconsciente". Clarice, conclui a psicanalista, buscava em
sua literatura algo além do texto, como já observara Benedito Nunes
(1929-2011), pioneiro no campo ensaístico sobre a escritora. Em O Drama da
Linguagem - Uma Leitura de Clarice Lispector (1989), o filósofo paraense faz uma
análise fenomenológica e existencialista de sua obra a partir das leituras de
Heidegger, Kierkegaard e Sartre (em particular, do conceito de náusea do
filósofo francês, angústia que arrebata o corpo).
Hoje, é a filosofia de Clarice
que se exporta. Entre os autores selecionados por Luis Maffei e Mayara R.
Guimarães no livro Extratextos 1 para "reescrever" Clarice Lispector
estão três portugueses (Pedro Eiras, Maria Teresa Horta, Hélia Correia), uma
uruguaia (Vera Giaconi) e uma cabo-verdiana (Vera Duarte). O angolano Pepetela
(O Planalto e a Estepe) foi consultado, disse que escreveria, mas acabou
desistindo. "É engraçado como os ficcionistas de outros países adotam
Clarice como uma escritora deles, como se houvesse uma linguagem neutra da qual
não se soubesse a origem", analisa Maffei, também um dos autores da
coletânea, que escolheu como personagem a senhora Jorge B. Xavier, de A Procura
de Uma Dignidade, conto de Onde Estivestes de Noite (1974). Em sua versão, a
senhora do título revisita o Maracanã em obras, imaginando entrar num show de
Roberto Carlos nos anos 1970.
Maffei traduziu o conto da
uruguaia Vera Giaconi, que vive em Buenos Aires, onde a obra de Clarice cresce.
Nos EUA, as novas traduções de seus livros, avalia a crítica da Bookforum, são
mais fiéis em preservar sua "rudeza intencional" e
"idiossincrasias". Cinco dos nove livros traduzidos recentemente
tiveram a supervisão de Benjamin Moser, frisa Rachel Kushner - e todas as
traduções são menos herméticas que as anteriores, garante ela, cujo conto
favorito de Clarice é um sobre a "luxúria" de tomar Ovomaltine, que
lhe provocava náusea. Mas Clarice suspeitava não ser culpa da bebida. "Sou
eu que não sou boa", concluiu.