Na defesa de interesses
políticos e disseminando preconceitos, imprensa ajudou a construir o massacre
anunciado em Canudos
*Dawid Danilo Bartelt
O cadáver de Antônio Conselheiro (foto: Flávio de Barros) |
“Há bons seis meses que por todo
o centro desta e da Província da Bahia, chegado, (diz elle,) do Ceará, infesta
um aventureiro santarrão que se apelida por Antonio dos Mares: o que, a vista
dos aparentes e mentirosos milagres que dizem ter ele feito, tem dado lugar a que
o povo o trate por S. Antonio dos Mares”. Publicada em novembro de 1874 em O
Rabudo, um pequeno semanal editado em Estância, no Sergipe, esta foi, ao que se
sabe, a primeira menção da imprensa brasileira a Antônio Conselheiro. Nos 23
anos seguintes, o personagem se tornaria a peça principal do grande
acontecimento “Canudos”, que foi também um evento midiático nacional.
“Opinião pública” era algo muito
limitado nos primeiros anos republicanos. Cerca de 85% da população eram de
analfabetos e a mídia se restringia basicamente a veículos impressos (as rádios
viriam a transmitir com regularidade no país apenas a partir de 1922). Isso
significa que os iletrados, os escravos e boa parte da população rural ficavam
à margem das notícias da imprensa, embora também incluídos na discussão pública
através da cultura oral.
Para o pequeno grupo de
indivíduos letrados existia uma grande variedade de jornais e revistas, de
diferentes orientações ideológicas. Desde 1894 nos jornais baianos, e de forma
rapidamente crescente nos jornais da capital nacional e de São Paulo, Canudos e
Conselheiro não apenas provocaram notícias nas páginas principais como viraram
título de colunas e motivo para versos de carnaval, sátiras e anúncios
comerciais – como o desta loja de calçados de Salvador, já em 1897: “Por
pessoas, recentemente chegadas de Canudos, ouvimos o seguinte: Que no último
ataque, um grupo de valentes soldados, depois de ter esgotado a munição,
lembrou-se de correr a pontapés os conselheiristas, confiados na resistência do
calçado que foi comprado na popular casa O Monumento. Que feliz ideia!”.
Num tempo em que fotografias
impressas em jornais eram raridade, o retrato desenhado do Conselheiro tinha
valor de mercado – a figura de barba longa, túnica, sandálias e bengala era
reconhecível mesmo sem o nome ao lado. Era já um signo, no sentido expresso por
um oficial do Exército, em 1896: “Antonio Maciel, Antonio Conselheiro e Bom
Jesus são três nomes distintos, mas, que um só deles basta para exprimir e
concretizar o inimigo do regime atual, o pregador contra os princípios sacrossantos
da lei, do trabalho e da moralidade”.
Mais do que uma “revolta” contra
a República, Canudos foi um acontecimento útil para dois diferentes conflitos
de poder nos tumultuados primeiros anos do regime. Com sua enorme capacidade de
atração popular, o tamanho do seu mercado e seu potencial bélico, o arraial do
Conselheiro desequilibrou os poderes políticos na Bahia, há tempos tensionados
pela disputa entre o governador Luís Vianna e o dono das terras daquela região,
José Gonçalves, aliado ao Barão de Geremoabo. Enquanto isso, na capital
nacional, Canudos virava fator decisivo para outra competição acirrada: a luta
entre os oligárquico-liberais, representando a elite cafeeira paulista, e os
“jacobinos”, influenciados pelo pensamento desenvolvimentista-ditadorial de
forte base militar. Vencer essa guerra era uma questão de sobrevivência
política para o governo do paulistano Prudente de Morais. Era por isso, e não
por constituir uma ameaça real à República, que o arraial tinha de ser
completamente aniquilado.
A função “crítica” da imprensa
se esgotava na defesa de posições partidárias dos proprietários, e não em prol
da defesa de princípios constitucionais ou democráticos. Em Salvador, com uma
população total de 200 mil habitantes (a grande maioria não alfabetizada),
circulavam cinco grandes jornais. O Diário da Bahia e o Estado da Bahia eram
gonçalvistas, enquanto o Correio de Notícias, o Jornal de Notícias e (com
restrições) o Diário de Notícias apoiavam o governador Vianna. Depois que os
seguidores do Conselheiro derrotaram as primeiras duas expedições de policiais
e soldados contra eles, os jornais da oposição se engajaram numa produção de
medo. Intensificaram a estratégia de criminalização aplicada desde 1893, ano da
fundação do arraial, desencadeando uma verdadeira campanha, com a publicação de
documentos – na sua grande maioria falsos – para “comprovar” repetidos ataques
de canudenses a fazendas da região. Levantavam a suspeita de que o governador
fazia de Conselheiro um aliado, usando-o para desestabilizar a região controlada
por seus adversários.
A partir de março de 1897, no
entanto, os dois campos políticos baianos viram-se encurralados juntos por um
forte discurso vindo dos jornais do Rio e de São Paulo. As notícias da derrota
da terceira expedição e da morte de seu líder, o famoso “herói” coronel Moreira
César, causaram pânico nas capitais. No sul, os jornais reforçaram o discurso
da conspiração monarquista, já introduzido pela imprensa jacobina. Agora se via
toda a Bahia caracterizada como reduto monarquista – afinal, naquele estado não
houvera um movimento republicano antes de 1889 e os políticos do Império
transformaram-se em republicanos pelas circunstâncias nacionais. Mas a verdade
é que o movimento monarquista dos anos 1890 era insignificante fora do Rio e de
São Paulo. A acusação de “monarquismo” era parte do discurso dos bacharéis
liberais e dos jovens oficiais “jacobinos”, que visavam instalar uma ditadura
modernizadora e positivista no Brasil.
O Nordeste, região de primazia
econômica do primeiro ciclo colonial, e Salvador, capital da Colônia, estavam
em decadência econômica e política. E os discursos midiáticos sobre a guerra de
Canudos reforçaram a imagem da Bahia e do “Norte” (o termo Nordeste ainda se
usava pouco) enquanto espaços de coronelismo e violência bárbara (dos
“jagunços”), incapazes de se modernizarem: “Só se fala em Canudos hoje em dia,/
De norte a sul, pelo país inteiro.../ E o glorioso nome da Bahia/ Amarrado ao
de Antonio Conselheiro!”, rimava o Jornal de Notícias.
Os lugares do evento midiático
“Canudos” foram as capitais no litoral, mas a principal novidade da cobertura
da imprensa nacional estava no sertão. Inaugurava-se a figura do correspondente
de guerra, escrevendo reportagens “ao vivo” – que levavam de 10 a 30 dias para
serem publicadas, após passarem pela censura militar rigorosa, ser
transportadas a pé ou por jegue até Monte Santo e então transmitidas por
telégrafo a Salvador (ou de trem, pela estação ferroviária de Queimadas), de
onde enfim seguiam para o sul. Na época, ainda desconhecido do público fora do
seu estado natal, o engenheiro Euclides da Cunha se tornaria o mais famoso desses
correspondentes de guerra.
Quando Euclides chega a Canudos,
o discurso midiático, construído de forma intensiva, diária, ao longo de um
ano, já havia produzido seu efeito final, e mortal: o governo do presidente
Prudente de Morais decidira destruir Canudos a todo custo. Morreram milhares de
famílias sertanejas, numa das maiores chacinas da história brasileira. Mas os
relatos de Euclides e de seus colegas ao menos contribuíram para uma mudança na
percepção dos canudenses pela opinião pública. Enquanto durante a guerra foram
considerados “inimigos da nação”, depois de mortos foram simbolicamente
reincluídos. Os inimigos se tornam irmãos e são considerados vítimas por
muitos.
Já não foi a imprensa a
protagonista desta mudança de perspectiva. O debate se transferiu para tratados
científicos, como o de Nina Rodrigues em 1897, panfletos políticos, uma série
de crônicas publicadas em livro por oficiais e civis participantes da guerra e
livros romanceados, como Os Jagunços, de Afonso Arinos, e O Rei dos Jagunços,
de Manuel Benicio, correspondente do diário carioca Jornal de Commercio. Os
Sertões, de Euclides, foi publicado cinco anos depois do fecho da guerra.
Assim como Canudos propicia
debates até hoje, continua atual a discussão em torno do papel da mídia no
Brasil enquanto formadora de opiniões sobre como a “nação” deve tratar os que
se encontram nas suas periferias social, econômica e cultural.
*Dawid Danilo Bartelt é doutor
em História pela Universidade Livre de Berlim, diretor do escritório Brasil da
Fundação Heinrich Böll e autor de Sertão, República e Nação (EdUSP, 2009). (Artigo
publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional - dezembro de 2014)