O Exército quase deixou de
existir em Canudos, uma das campanhas mais sangrentas já travadas pelo Brasil,
e contra brasileiros
*Sandro Teixeira Moita
Infantaria do Exército atacando Canudos (foto: Flávio de Barros) |
A ferocidade das batalhas foi a
marca da Campanha de Canudos. E o Exército não estava preparado para a
magnitude da tarefa. As tropas ainda sofriam com os efeitos das recentes
Revolta da Armada (1893-1894) e Revolução Federalista (1893-1895), que
consumiram muito da sua capacidade. O inimigo da vez era um religioso cheio de
seguidores no interior baiano.
O fenômeno Antônio Conselheiro
era acompanhado de perto pelos líderes políticos locais. Sua capacidade de
arrastar multidões foi rapidamente identificada como uma forma de obter
trabalhadores e votos. Os oponentes do governador da Bahia, Luiz Vianna,
interpretaram sua falta de reação diante das andanças do Conselheiro como uma
estratégia: sua intenção seria tê-lo como aliado nas eleições de dezembro de
1896. Para pressionar o governador, boatos foram espalhados por todo o
interior, chegando rapidamente à capital, Salvador, dando conta de que
Conselheiro planejava tomar cidades vizinhas.
Colocado em xeque, Vianna pediu
ao governo federal homens do Exército, pois em governos anteriores, chefiados
por rivais de Vianna, a Polícia Militar do estado já tinha travado várias ações
infrutíferas contra os seguidores de Conselheiro A primeira expedição contra
Canudos foi comandada pelo tenente Manoel da Silva Pires Ferreira, à frente de
três oficiais e 104 soldados. A tropa seguiu de trem até Juazeiro e de lá
marchou até Uauá, onde esperou pelo ataque dos homens do Conselheiro. A vila
foi esvaziada pela população em pânico, e os sertanejos não demoraram a chegar:
na alvorada de 21 de novembro de 1896, vieram armados com facões, lanças e
armas velhas. Eram cerca de 500 homens contra os 104 de Pires Ferreira. A luta
durou quatro horas, até que os seguidores do beato se retiraram, batidos pela defesa
obstinada dos soldados.
Em relatório, o tenente Pires
Ferreira listou uma série de empecilhos internos que teve de enfrentar: fuzis
que esquentavam demais, fardas que se transformavam em farrapos e calçados que
rapidamente desapareciam, deixando os soldados descalços nas longas marchas
pelo sertão. Registrou também que tinham de dormir ao relento, pois não haviam
sido fornecidas tendas. Seus alertas, no entanto, foram postos de lado pelas
expedições seguintes, que acabaram enfrentando os mesmos problemas.
A segunda expedição foi
preparada sob o comando do major Febrônio de Brito. Como reforço, foram
convocados homens das unidades do Exército de Salvador, Aracaju e Maceió, além
de 250 membros da Polícia Militar. Entre os armamentos, chegaram metralhadoras
e dois canhões Krupp de 75 mm. Mas dificuldades logísticas afetaram os planos:
com meios de transporte limitados, Febrônio deixou pelo caminho suprimentos que
acabaram fazendo falta. Além dos jagunços, do ambiente hostil e do sol
escaldante, havia agora um novo inimigo: a fome. Os sertanejos atacaram os
soldados quando eles cruzavam a estrada do Cambaio, um dos montes que
circundavam Canudos. Uma dura batalha se seguiu. O saldo de baixas militares
foi de quatro mortos e 23 feridos, contra 115 dos conselheiristas. O monte foi
conquistado, mas os soldados estavam exaustos e a comida tinha acabado. Mesmo
assim a tropa foi em frente e, no dia seguinte, marchou na direção de Canudos.
O povoado era, de certa forma,
imponente: mais de 5 mil casas em um terreno que parecia inconquistável. Os
sertanejos não esperaram a aproximação dos soldados: tinham cercado a tropa de
Febrônio durante a noite, e avançaram sobre os militares por todas as direções.
O que era para ser ataque virou defesa, e cenas dramáticas se seguiram com
sangrentas lutas corpo a corpo. Cada vez mais adeptos de Conselheiro chegavam.
O major relatou ter sido atacado por mais de 4 mil inimigos. Dois dias de fome
cobraram seu preço: só restava a retirada, e os militares a fizeram, com saldo
de 10 mortos e 70 feridos. Entre os defensores de Canudos foram 300 mortos. A
notícia da derrota foi pessimamente recebida no Rio de Janeiro. E o coronel
Antônio Moreira César, que acabara de retornar de Santa Catarina após reprimir
duramente os federalistas, foi convocado para liderar uma nova expedição. Rumou
para a Bahia com batalhões de infantaria apoiados por cavalaria e artilharia.
Além dos baianos, recebeu homens de outros estados do Nordeste, totalizando
1.281 combatentes.
Avançando rapidamente, Moreira
César contornou os montes abrindo caminho na caatinga repleta de espinhos sob
sol terrível. A tropa sofria com a falta de água e de alimentos. No dia 3 de
março de 1897, os soldados conseguiram entrar no povoado. Unidades inteiras
desapareceram entre as pequenas casas, e o coronel foi ferido duas vezes. A
tropa se retirou quando o dia terminava. A agonia de Moreira César acabou de
madrugada, quando faleceu. A notícia correu entre os soldados que, no início da
manhã, começaram a se retirar em direção a Monte Santo, num movimento que logo
virou fuga desorganizada. Os sertanejos se aproveitaram para executar os
feridos e os militares que conseguiram capturar, decapitando-os. As cabeças
foram colocadas nos caminhos para Canudos, como um aviso.
Derrota ainda maior, horror no
Rio de Janeiro. O presidente Prudente de Morais (1894-1898) retornou da licença
médica e se encarregou de mudar o ministro da Guerra, alçando ao cargo o
marechal Carlos Machado Bittencourt. Ele organizou uma nova expedição, cuidando
dessa vez de garantir o fluxo de suprimentos do Exército, uma das principais
razões para as derrotas anteriores. A quarta e última incursão a Canudos foi
liderada pelo general Artur Oscar, com duas colunas comandadas pelos generais
João da Silva Barbosa e Cláudio do Amaral Savaget. O plano era que cerca de 5
mil soldados envolvessem Canudos e esmagassem o reduto apoiados por artilharia,
em especial um canhão apelidado pelos jagunços de “Matadeira”.
O avanço da coluna de Savaget
foi cuidadoso, mas sem saber esse grupo avançou contra a principal rota usada
pelos sertanejos para levar boiadas e suprimentos para o arraial. Em 25 de
junho foram travados os primeiros combates, e dois dias depois a frente
principal, comandada por Barbosa e com o general Artur Oscar, tomou o Alto da
Favela. No dia 28, um ataque dos conselheiristas fez com que as colunas se
unissem, pois Barbosa tinha sido cercado. Sob ordens de Artur Oscar, mais de 1
milhão de balas foram disparadas contra os sertanejos naquele dia. O combate
resultou em mais de mil baixas à expedição. Oscar estava sem suprimentos e
dependia de comboios que nem sempre chegavam, pois os locais muitas vezes se
apoderavam deles.
Em 14 de julho a tropa conseguiu
estabelecer uma linha dentro do arraial. Mas não sem um altíssimo custo: 1.014
baixas, praticamente um a cada três homens. O número manchou a reputação de
Artur Oscar, especialmente pela perda de oficiais. Batalhões que antes eram
comandados por coronéis estavam agora sob as ordens de tenentes. A situação de
desmanche impossibilitou novos ataques.
O impasse permaneceu até que
novos reforços chegaram, no fim de agosto. No dia 1º de outubro teve início um
novo ataque. A resistência foi enérgica. Mesmo sob forte bombardeio, o arraial
não se rendia. Nos dois dias seguintes houve tréguas: cerca de 500 a mil
sertanejos se renderam, entre mulheres, idosos e crianças. As investidas,
porém, não cessaram: os jagunços eram desalojados com o uso de bombas de
querosene e dinamite. O fogo se espalhou rapidamente no povoado, gerando um
cenário de total destruição.
A batalha chegou ao fim no dia 5
de outubro. O número de mortos no arraial é desconhecido – a estimativa vai de
5.500 pessoas (segundo registro do tenente Macedo Soares) até 26 mil, cálculo
baseado na média de cinco pessoas para cada uma das 5.200 casas do povoado.
O Exército também foi
destroçado. Quase metade de seu efetivo tinha servido na campanha, que deixou 4
mil combatentes mortos no solo árido do sertão. O episódio foi marcante para a
instituição, que nas décadas seguintes reavaliou seu papel na política
brasileira. Desde então os militares buscaram incutir na sociedade a ideia de
um organismo que era forte e preparado para os desafios que surgissem. Capaz
também de driblar armadilhas que pudessem implodir suas estruturas, como
aconteceu em Canudos.
*Sandro Teixeira Moita é
professor de história militar na Divisão de Preparação e Seleção da Escola de
Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). (Artigo publicado originalmente na
Revista de História da Biblioteca Nacional
- dezembro de 2014)