Em Aracaju, um cinquentão
decadente espera chegar o dia de seu casamento com a prima rica e dez anos mais
nova.
Daniel
Lopes – do portal AMÁLGAMA (http://www.amalgama.blog.br)
Caderno de ruminações é o 5º romance de Francisco J. C. Dantas |
“Era mesmo uma fraqueza danada
andar manietado pelo desejo feito um pai de chiqueiro, ou um quadrúpede
selvagem”, pensa o doutor Rochinha por meio do narrador. “Afinal, era um homem
ou era um bicho?”.
A situação é mais antiga do que
andar pra frente. A fêmea se achega jogando charme. O macho se acha o tal por
ser alvo do charme, e resolve partir pra cima da fêmea e se divertir bastante
no processo, talvez até fazê-la de otária. Após o ato consumado, a fêmea se
afasta na medida certa para encucar o macho. O macho se vê perdidamente
enlaçado, e se revela o idiota que foi desde o início. No caso do doutor
Rochinha, o atordoamento pós-coito é de tal magnitude que, para tentar um pouco
de paz e reflexão, ele toma a decisão de sair da sua Aracaju e passar uns dias
em Salvador.
Não vai aí uma maliciosa crítica
ao macho. A idiotia o acompanha desde tempos imemoriáveis, a ponto de estar
incorporada à sua natureza. O observador pode até mesmo dedicar-lhe uma boa
dose de simpatia, se não de identificação; com certeza algo mais que
condescendência.
E há muito humor nessa idiotia,
não devemos esquecer. Fiquei extremamente satisfeito ao ver que no romance de
Francisco Dantas, em meio a angústias e delírios de seu protagonista, o que
acaba ressaindo mesmo é a comicidade da coisa. Para começo de conversa,
Rochinha podia ser um cardiologista. Ele podia ser um pediatra, um geriatra, um
ortopedista. Podia ser um psicólogo ou um psiquiatra. Mas não. Ele é um
proctologista. Rochinha está sempre avoado ou de mal humor em seu consultório.
O leitor pode imaginar que haveria bastante drama em um pediatra fulo da vida.
Mas um proctologista fulo ou displicente é um teatro à parte. Também não sei se
o nome da fêmea que o arrebatou, com as quatro primeiras letras que tem, é mera
obra do acaso.
Rochinha é um cinquentão e está
apaixonado pela prima Analice, dez e poucos anos mais nova. Estão de casamento
marcado para uma sexta-feira. Caderno de ruminações é dividido em quatro
partes, cada uma delas cobrindo um dia da semana a partir de terça. À medida em
que o casório se aproxima, Rochinha, sozinho no apartamento ou no consultório,
passa a limpo seu passado remoto e seu passado recente, quando se envolveu com
a prima. Analice é uma grã-fina, filha do proprietário de um grande grupo
empresarial, que inclui uma construtora com negócios no Sergipe e em outros
estados. Rochinha está em plena decadência profissional. Ela tem seus próprios
interesses para casar com o primo comparavelmente pobre, inexperiente com as
mulheres e de corpo mirrado. Ele quer se casar porque está apaixonado, e treme
com os pensamentos em que volta a possuir a prima.
Antes de Analice, Rochinha não
amara ninguém – “nos momentos mais exigentes, o corpo se extravasara em três ou
quatro mulheres fáceis e pagas que possuíra como alívio e paliativo”. De origem
humilde, dedicou-se com tenacidade aos estudos desde os tempos de educação
primária, com sobra para mais nada. Foi aprovado em medicina. Na faculdade sua
falta de tato com o sexo oposto era sobejamente conhecida, a ponto dos colegas
apelidarem-no de “arame liso” – aquele que cerca, mas não fura. Seu “sangue
sequioso, o espírito obcecado e a floração da vitalidade corporal” só vieram
dar as caras agora, aos 50, diante da tentadora prima loira, de olhos azuis e
pernas incríveis.
É claro que eu não vou cortar o
barato contando os detalhes do momento em que o primo transa com a prima pela
primeira vez – e bem pode ter sido a primeira e última. Importa saber que,
depois, veio a piração. A paixão naturalmente faz o sujeito perder de vista o
longo em proveito do curtíssimo prazo. Pois sabemos que a paixão de Rochinha
está elevada ao cubo porque ele persiste tomado pela prima mesmo enquanto a
julga uma “sádica”, entre outras coisas, e acredita que, no final das contas,
tudo vai dar errado. É a supremacia da carne.
Mas pode dar certo, ainda assim?
Quem sabe? O futuro pertence ao futuro. Mas Analice tem para si o seguinte
juízo de Rochinha: “um pusilânime encapado de moralista”. E, em quatrocentas
páginas, Rochinha só traça uma única e mísera resolução para o pós-casamento:
“no criado-mudo de Analice, já decidiu, não vai deixar faltar tranquilizantes”.
Façam suas apostas.
Rochinha começou a vida duas
vezes – primeiro, vencendo as adversidades da infância e juventude até se
formar em medicina; depois, driblando dificuldades na carreira, conseguindo
fazer seu nome e se firmar em Aracaju. Quando Caderno de ruminações inicia, ele
está tentando se erguer pela terceira vez. Recentemente, foi alvo de rasteiras
após presidir uma investigação em um hospital público que descobriu desvios de
conduta. Também recentemente, e mais sério, ele levou bolo de dois sócios aos
quais se ligara para tocar uma clínica privada, que lhe deixaram na pindaíba e
contra os quais nutre desejos homicidas. Mancomunado com esses dois sócios está
Eloíno, irmão de Analice, primo e nêmesis de Rochinha.
O passado, que o protagonista
pensara ter enterrado para nunca mais olhar, agora lhe volta nesses dias
decisivos para seu futuro:
Com a ruína de seu projeto
profissional, a infância tem retornado e lhe chega por caminhos insidiosos
ocupando, na calada do tempo, os espaços vazios. E ele, que na mocidade fora
tão refratário aos sentimentos, acolhe essa vinda como se recuperasse alguma
coisa vaporosa e intangível, mas de valor inestimável.
Rochinha fora criado por pai e
mãe durante poucos anos. Logo, a mãe o abandona e ao pai, partindo para o Rio
de Janeiro. E ele fica só com o pai, seu Aristeu, na casa da infância, interior
de Sergipe. A boataria sobre a mãe, mulher esbelta, e sobre as razões de sua
debandada corre solta, e atinge continuamente Rochinha. O pai fica
completamente entregue, sentado no sofá da sala e ruminando a falta de sentido
do mundo à sua volta. Ríspido e muito religioso, porém, faz questão de que
Rochinha tenha uma educação padrão, com catecismo e tudo. Os coleguinhas de
ensino religioso, a exemplo de uma sua professora, não deixam passar a chance
de fazer referência, na frente do menino, ao passado supostamente indecoroso da
mãe.
Quando o filho já estava mais
avançado no colégio, Aristeu se muda com ele para a capital Aracaju. Lá, o
adulto envelhecido pela dureza da vida vira pequeno comerciante, enquanto o
jovem, ainda uma criança na falta de tato com o que a vida tem de melhor,
estuda de forma compenetrada – “Desgostoso com o ambiente que o cerca,
persevera no estudo com a mesma gana que um condenado perpétuo investe numa
fuga suicida, como se, fora daí, fosse um menino perdido.”
Francisco J. C. Dantas (Foto: Walter Craveiro) |
Num vislumbre do que a vida pode
oferecer de diferente em matéria de estudo e também comportamental, Rochinha
preferiria ter sido matriculado no colégio liberal Atheneu. Mas não tem
conversa. O pai o matricula no católico São Joaquim. Pior: como não tem
dinheiro para a mensalidade completa, Aristeu promete aos padres que o filho
estaria à disposição para realizar tarefas de manutenção. Quando vê que não,
Rochinha está espanando santos. Seu período nessa instituição não foi
invejável. Ele ficou enterrado em meio a adultos que, para lembrar o finado
Hitchens, “a impossíveis certezas de retidão aliam tédio e uniformidade”. A
vulgaridade de um padre-mestre ao sermonar sobre a desgraça da masturbação! –
“O sexo, seu Benildo, é uma pistola dada por Deus para a perpetuação da espécie.”
Não sei se Caderno de ruminações
teria ficado mais interessante narrado em primeira pessoa. Chutaria que sim. Às
vésperas do casamento, Rochinha repisa seu passado distante, mas por meio do
narrador. E o narrador, aqui, é oni-tudo. Seu nível de consciência é abissal.
Ele tem consciência até das atmosferas de dois livros anteriores de Francisco
Dantas – algo que não temos a oportunidade de ver todos os dias. Não há espaço
para certas nuances – imprecisões, preconceitos, parcialidades, dúvidas – que
se mostrariam ao leitor no caso de um narrador em primeira pessoa olhando o passado
com o filtro do presente.
No entanto, à medida que a
terça-feira vira quarta, a quarta vira quinta, e a quinta vira sexta, a
narrativa, recapitulando agora as últimas semanas de Rochinha, fica mais
interessante. Até devido ao fato dos últimos acontecimentos terem precipitado o
casamento e estarem marcados de ambiguidades, trapalhadas e absurdos que
desafiam o narrador mais intrometido. Narrador, Rochinha e leitor ficam
perdidos, no bom sentido, em meio à comédia do homem – digo, do homem-homem.
Diante de prima e futura esposa,
o juízo do personagem é capaz de mudar cento e oitenta graus em questão de
minutos. Como quando pega Analice para passear, encanta-se com a figura
angélica no banco do carona com os cabelos ao vento, e, quando já estão em seu
destino, passa a vê-la como uma “sacana traidora”. Às vezes essa mudança de
opinião tem ligação com o aparecimento de algum dado concreto, mas na maioria
das vezes parece não passar de paranoia.
O proctologista decadente vê o
resto da sociedade de cima para baixo, como uma escrava do Estado. Mas às vezes
se descuida, tropeça e se vê junto aos outros mortais. Ele mesmo, anos atrás,
ao voltar de um curso em São Paulo, foi pedir emprego a um antigo colega de
faculdade, à época secretário de Saúde. O jovem Rochinha era um homem
profundamente cínico. Sua opinião sobre a solidariedade? – “senão uma tolice,
uma ilusão alimentada pelos bestas e pelos frágeis.” O amor? – “teoricamente,
um sentimento patético e ridículo, inerente aos homens fracos, às mulheres
impressionáveis.” Essa história também é mais velha do que andar pra frente. O
jovem com a pior opinião do mundo que vira um adulto feito sob medida para
reforçar suas convicções dos verdes anos.
Foi muito prazeroso ler um
romance brasileiro contemporâneo de quatrocentas páginas super bem feito, em
meio aos breves romances a que andamos habituados (alguns até bem feitos, mas
mesmo assim). Se você ler as obras anteriores do sergipano Francisco Dantas (e
você devia ler), verá que essa calma e habilidade ao contar uma estória é traço
marcante desse autor que começou a publicar apenas aos 50 anos de idade. Também
foi um prazer topar com palavras que nunca mais tinha lido, postas no papel
adequadamente, sem esnobismo – varancadas, convolado, debique, esbodegado
(melhor: esguedelhado), babujar, verrumar, capitosa, esgrouvinha…
Caderno de ruminações, de Francisco
J. C. Dantas
Alfaguara, 2012, 408 páginas
Leia um trecho da obra:
E é assim que mal-humorada, sem
motivo justificável, Analice apronta mais uma que doutor Rochinha é obrigado a
engolir. Tem nada não, ele se diz resignado, exercitando a paciência. No próximo encontro vai pôr as cartas na mesa
de qualquer jeito. Vai provar-lhe que não é um pretendente interesseiro. Não
era a primeira vez que se prometia esclarecer-lhe os termos do casamento. Mas
fraquejara. E tome-lhe adiamento. Agora, porém, chegara ao limite.
Analice sempre fizera
prevalecer a sua ascendência, inclusive tomando a frente das iniciativas que
concerniam aos dois. De tal forma que o amedrontava: nas conversas telefônicas,
ela queria e não queria o casamento. E o pior é que não esbarrava por aí. Quase
sempre insatisfeita, ela exigia muito mais. Abusava. Mal ele ousava ponderar ou
rebater-lhe algum ponto de vista—e olhe que educadamente!—recebia de volta uma
pedrada. Reconhecia, com tristeza, que aquela graça tão feminina, aquela calma
aparente do primeiro encontro, a concordância plena e maquinal, se mostravam
agora, apenas uma moldura, uma fachada que protegia a sua fúria, pronta a
saltar à baila, mal ele a contrariasse.
Na qualidade de homem, urgia tomar alguma
providência. Precisava lançar mão de algum recurso para reverter o foco do
mundo. Devia apresentar-se mais decidido, ter uma postura mais firme, arrematar
as discussões com palavras inabaláveis. Manifestar-se mais enérgico, embora assim em termos, sem nenhuma apelação.
E sabe Deus quanto tentara! Mas sempre teve pela frente uma mulher
entrincheirada numa cerca viva de sisal, exercendo uma resistência inabalável,
em que valiam todas as armas, inclusive gritos histéricos que nada tinham de
saudáveis…"
(Caderno de ruminações - Francisco J. C. Dantas).