Nos 38 poemas, a escritora flerta
com a metafísica ao mesmo tempo em que aposta na grandeza das pequenas coisas
Ubiratan Brasil – de O Estado de
S. Paulo
Adélia Prado (foto: Tiago Queiroz) |
A poesia, para Ferreira Gullar,
nasce de um espanto. Já para Adélia Prado, ela vem da “terceira margem da
alma”. Ambos concordam, porém, que os momentos inspirados vêm subitamente, sem
controle, reservando ao poeta a função de instrumento para decodificá-los em
versos. Por isso é irregular o período que separa cada novo livro de poesia.
Adélia, por exemplo, não publicava nada havia três anos, quando saiu A Duração
do Dia. O jejum termina na quinta-feira, quando chega às livrarias Miserere
(editora Record).
São 38 poemas, em que a maior
poeta brasileira viva (ao lado de Gullar e Manoel de Barros – sem que o autor
da reportagem se zangue, este blog acrescenta Maria Lúcia Dal Farra) tanto
flerta com a metafísica como se atém aos detalhes do cotidiano, mas, acima de
tudo, aposta na grandeza das pequenas coisas. E, como não poderia ser
diferente, sua poesia estabelece um diálogo com Deus, uma ponte com a
transcendência e uma crença na perenidade da carne e na eternidade da alma.
Por que os poemas de Miserere são mais escuros que seus habituais? O
título do livro foi definido por conta disso?
Primeiro porque os olhos se
turvam na velhice e a privação de regalias da juventude trazem consigo, de
maneira não idealizada, as realidades do sofrimento e da morte. Abrir os olhos
dói: morrer de tuberculose, que eu achava o máximo na maioria dos poetas que
admirava na escola e de muitos santos que me encantavam com seus martírios, é
de fato coisa tenebrosa e dificílima. Hoje, quando digo ‘miserere nobis’ (tem
piedade de nós), sei um pouquinho mais do que estou falando. Assusta descobrir
nossa orfandade original. Mas nada se apresenta sem remédio por causa da fé e
da poesia, que considero uma forma estupenda de fé e esperança. O título Miserere
foi escolhido porque me parece o que mais revela o espírito do livro.
A senhora faz duas citações de Marie Noël, poeta francesa que viveu a
separação entre a fé e o desespero, e cuja obra culminou com um grito blasfemo,
mas particularmente comovente. O que lhe atrai na poesia de Noël?
Exatamente o que você citou. Seu
sofrimento me deixa perplexa e eu não conheço sua poesia – certamente o que lhe
permitiu viver. Sabe onde encontro sua obra? Só conheço Notas Íntimas, que me
impressionou muitíssimo e onde me reconheci de corpo inteiro em alguns
aspectos. Ler esse livro bastou-me como ingresso em sua tribo.
O mundo atual, perturbado pelo terrorismo e pela guerra, ainda é
propício à poesia?
Não apenas propício à poesia, mas
faminto dela.
A senhora já teve alguma experiência mística por meio da arte?
Como diz Guimarães Rosa, não sei
de nada, mas desconfio de muita coisa. Mística – a experiência – é dom de Deus
que Ele dá a quem quer. Estou na categoria dos seguidores. Ele me protege,
tenho medo de certas dores.
A senhora acredita que sua poesia perderia o sentido sem a religião? A
poesia é mais oração ou mais comunhão? Acredita que pode haver um poeta ateu?
Certamente escreveria outro tipo
de poesia, mas não deixaria de escrevê-la. No texto de um poeta ateu, o
substrato de sua poesia é o mesmo no de um poeta crente. Porque o fenômeno
poético é religioso em sua natureza. A poesia, independentemente da crença ou
não crença do poeta, nos liga a um centro de significação e sentido, assim como
o faz a fé religiosa. Por isso é que a poesia é tão consoladora, dá tanta
alegria. Minha formação é religiosa, confesso o que creio e é impossível que
nossas profundas convicções desapareçam quando escrevemos. Seria
esquizofrênico. Mística e poesia são braços do mesmo rio. Deus me deu o
segundo, mas a fonte é a mesma, o Espírito Divino. A despeito de si mesmo, o
poeta ateu entrega o ouro em sua poesia. É simples, rigorosamente ninguém é o
criador da Beleza (poesia). Ela vem, eu diria como Guimarães Rosa, da terceira
margem da alma. O poeta é só o “cavalo do Santo”, queira ou não. Às vezes,
somos tentados a desistir quando descobrimos que ela, a poesia, é muito melhor
que seu autor. É a tentação do orgulho. Que Deus nos livre dela.
É curioso como a realidade também parece exercer forte influência em
seus versos – lembro-me de O Ditador na Prisão, que nasceu a partir de sua
preocupação do destino do ex-presidente iraquiano Saddam Hussein, e agora em
Lápide para Steve Jobs. A força da poesia está em oferecer um conforto moral?
A poesia oferece a realidade e
sua beleza. Esta é sua força, seu conforto, sua alegria.
“Graças a Deus sou medrosa, / o instinto da sobrevivência / me torna a
língua gentil” são alguns versos de Branca de Neve. Até que ponto isso se
aplica à sua poesia?
A poesia não é nem pode ser uma
“língua gentil”. Tem que ser sempre uma língua bela. No poema citado, Língua
Gentil refere-se ao poeta e a seus medos e não à poesia propriamente. Língua
Gentil, no caso do poema, é a língua que o poeta diz usar para não estumar as
feras, para que elas não o devorem. De novo, não no poema, mas na vida, para
lidar com os monstros interiores.
Quando a realidade cotidiana se mostra como maravilhamento e quando não
passa de mera realidade?
Quando olho pedra e vejo pedra
mesmo, só estou vendo a aparência. Quando a pedra me põe confusa de
estranhamento e beleza, eu a estou vendo em sua realidade que nunca é apenas
física. A aparência diz pouco. Só a poesia mostra o real.