Landisvalth Lima
O alicerce básico deste ensaio é o artigo Ètica e ontologia em Lukács e o complexo
social da educação, assinado por Mônica Mota Tassigny e publicado na
Revista Brasileira de Educação, nº 25. Lá, a autora mostra as nuances da
natureza da relação do processo educacional do homem com a realidade material e
social, tendo como norteadores as ideias do pensador húngaro. Aqui, pretende-se
ampliar o debate chamando para o centro das discussões dois contos de Machado
de Assis: O espelho e Teoria do Medalhão, ambos integrantes da
coletânea Papéis avulsos, publicada
inicialmente em 1882.
Citando Lukács, Mônica afirma que o filósofo
vê a história da humanidade focada na tensão entre dois polos: o gênero humano
e as ações dos indivíduos. No primeiro caso há dois formatos reveladores do ser:
o em-si – que pode ser confundido com
uma espécie de negação do eu, recolhimento do ego - e o para-si – tradução do pensar no ser como produto de transformação e
libertação. O nível de conflito do gênero humano com as ações dos indivíduos
determinará o nível da nossa práxis social. Mais claramente, é o que mostrará
se agiremos como produto da História ou como agente dela, como ser alienado às
imposições do capitalismo ou como ser impulsionador de liberdade e de
autonomia.
Machado de Assis |
Chega a ser um sacrilégio a não adoção da
obra de Machado de Assis no meio acadêmico como forma de dissecar o mundo
complexo da alma humana, inclusive como forma de fazer entender as teorias
filosóficas. É verdade que seus livros são muito bem divulgados e adotados nas
escolas de ensino médio, muito mais como leitura obrigatória da disciplina de
Língua Portuguesa do que como mecanismo de compreensão da História, da
Filosofia e da Sociologia. Aqui, como recurso argumentativo, vão os dois
preciosos contos. Primeiro, O espelho, um
esboço da alma humana.
Trata-se da história de Jacobina, um homem
que evitava expor as suas opiniões para seus amigos. Ele não queria discutir ou
debater. Polemizar era um ato que entendia como uma perda de tempo. Mas a
narrativa se inicia porque o protagonista havia sido obrigado a expressar sua
opinião sobre a existência da alma. Expõe, então, uma curiosa teoria sobre a
existência de duas almas. Uma fala de dentro para fora e a outra de fora para
dentro. Uma se impõe sobre a outra. Para provar sua teoria, conta uma história
passada em sua juventude, quando havia recebido o título de Alferes da Guarda
Nacional. Era apenas um título e uma farda, mas isso trouxe à personagem notoriedade
tamanha. Tanto que sua tia Marcolina pede para que ele passe uns dias em seu
sítio, só para ter a honra de receber em suas terras um parente Alferes e poder
exibi-lo. Ele é ovacionado o tempo todo.
Antes de se retirar para uma viagem urgente
em cuidado de uma filha, Marcolina deixa no quarto do Alferes Jacobina um
espelho, o móvel melhor da casa. Era uma homenagem. Com a partida da tia,
Jacobina fica só com os escravos, mas estes fogem no dia seguinte. O
protagonista entra em contato com a solidão, sem ninguém para elogiar seu cargo
e sua farda. Chega a uma crise tal que pensa em praticar suicídio. Seu único
momento de alívio era quando dormia e em seus sonhos via as pessoas elogiarem
sua farda. Certa hora, acidentalmente se olha no espelho e percebe a sua imagem
muito difusa, pouco nítida. Supera, no entanto, o desespero e tem uma ideia
salvadora: veste a farda e se coloca diante do espelho. Espantosamente, sua
imagem está nítida. Passa, então, a dedicar uma determinada hora do dia para
olhar-se no espelho e admirar a sua vestimenta, o que lhe garante a
sobrevivência sem solidão no final do período de 14 dias em que ficou sozinho.
— O
alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas
equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma
parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes
o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a
cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me
falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que
entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado.
Custa-lhes acreditar, não?
O conto revela a visão de mundo de Machado de
Assis parelha à de Lukács. A alma externa, que fala de fora para dentro, é o status
social, o prestígio, o glamour e impõe domínio sobre o eu do ser. Anula o livre
arbítrio e joga o ego ao lixo, gerando servilismo e práticas sociais
alienadoras. Ou seja, o ser aceita o que está posto e vira vassalo do status
quo. Em troca, a alma fica sendo massageada. É o gênero humano em-si lukacseano. Ou seja, o ser vira
produto da história e de suas vontades determinadas pelo meio social.
O outro conto é o diálogo Teoria do Medalhão.
O enredo revela um pai em conversa com seu filho, que faria 22 anos no dia seguinte e,
consequentemente adquiriria sua plena independência. Após o jantar, respondendo
pergunta do filho sobre qual profissão seguir, aconselha que seu pupilo cultive
o ofício de medalhão. O que era então ser medalhão? Moderar os impulsos da
mocidade e saber que, aos quarenta e cinco anos, seria a idade em que o
medalhão normalmente se manifesta. Alguns um pouco mais velhos, outros, ainda
mais jovens, sendo estes últimos verdadeiros prodígios. Outra era abster-se de
ter ideias. Com a idade pode ser que elas viessem, mas deve preveni-las fazendo
atividades que não permitam seu surgimento: jogar bilhar, ter retóricas,
passear na rua – desde que seja acompanhado, para que a solidão não dê margem
às ideias - ir a uma livraria, mas para contar uma piada, um caso, um
assassinato, e não para outro fim, pois a solidão não convém ao fim do ofício.
Com isso, em até dois anos pode reduzir-se bastante o intelecto.
O filho reclama que não pode enfeitar muito aquilo que fala ou escreve,
ao que o pai diz que pode empregar figuras, sempre a carregar citações,
máximas, discursos prontos, até mesmo frases feitas, procurando poupar
problemas e discussões. Mas convém saber das descobertas e interesses das
ciências do momento com o tempo, pois seus significados e terminologia, sendo
aprendidos sem a interferência de professores e mestres, não oferecem o perigo
de formular ideias. Também é mencionado pelo pai ainda os benefícios da
publicidade. Em vez de escrever um tratado sobre os carneiros, é melhor
servi-lo num jantar aos amigos e revelar o evento aos quatro cantos. Deve-se também fazer festas, ter figuras da
imprensa nelas para que se torne público seu acontecimento. Com o tempo, por
tornar-se conhecido, passará a ser chamado para festas como figura
indispensável.
Pode-se virar político também, usar a tribuna para chamar à atenção
pública, mas sem adotar ideia de partido nenhum, muito menos ideias novas. O filho indaga se não deve ter nenhuma
imaginação ou filosofia. O pai responde que não, mas deve falar sobre "filosofia
da história", mas sem sabê-la, devendo fugir de tudo que leve à reflexão. Vendo
que já é meia noite, o pai pede ao filho que vá dormir e pense bem no que foi
conversado. Ou seja, o pai ensinou ao filho como manipular o jogo da
convivência social em benefício próprio.
O medalhão é o profissional oportunista.
— Nem eu te digo
outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência,
trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não
penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás,
crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então
poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento
indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de
farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar
pesadão e cru de substantivos desadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas
orações opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos
cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal,
porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O
substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.
Observe-se que em Teoria do
Medalhão há um ser que tem consciência de que pode manipular vícios e
comportamentos sociais em benefício próprio. Não se trata de um ser preocupado
com o status, mas com a manipulação deste status para um dia usufruir dele. É a
alma que fala de dentro para fora, que tem consciência do seu posicionamento
social e que se vê como agente da História. Malgrado o uso deste poder da alma
para um certame estritamente individualista, não deixa de ser o gênero humano
do para-si de Lukács. Aqui o exterior
não anula o interior. O ego não se submete, não se anula. Adapta-se para
transformar em seu benefício, como poderia fazer isso em benefício do conjunto
da sociedade.
Podemos aplicar esta visão ontológica do ser de Lukács à prática do
professor como profissional. Há dois caminhos da práxis do educador que não
ferem nenhuma ética. Ser um Jacobina ou ser um Medalhão do bem. Para isso
leva-se em consideração a educação como um processo ideológico de manutenção de
um sistema ou da transformação dele. Não se trata de algo inerente ao ser
biológico. Não é o instinto que nos garante a reprodução da espécie determinado
pela força ou pelo medo. Trata-se de um processo, de uma autorregulamentação da
práxis social e alicerce de sobrevivência de sistemas sociais. Ou seja, a
sobrevivência dos regimes, socialismo e capitalismo por exemplo, mantidos por
um status quo está siamesamente atrelada à evolução ou à decadência da
educação.
E recai sobre o profissional ter esta consciência. Sua atitude ética ante
o mundo em que vive passa pela adoção do em-si
ou do para-si. Como pode um professor
agir diante de uma educação que está revelando o seu país ou sua comunidade
para o mundo? Como um professor na Coreia do Sul ou no Canadá deve agir, vendo
seus alunos no topo da lista dos mais desenvolvidos? Aceitar o que está posto,
conformar-se com o sucesso e cuidar para manter o que está dando certo. E aqui
no nosso mundo Brasil? Como deveremos agir? Se adotarmos o comportamento
aconselhado pelo pai do conto Teoria do Medalhão, conseguiremos facilmente
passar pelos 30 anos de profissão, numa postura perfeitamente ética e irrepreensível.
É a prática do para-si
individualista.
Este professor medalhão tem consciência dos labirintos das estruturas
sociais e as manipula para seu proveito. Fará vistas grossas à corrupção, ao
mandonismo, aos projetos mirabolantes que não dão em nada, ao exercício de
cargos inúteis, aos colegas que defendem a escola pública com unhas e dentes,
mas seus filhos estão matriculados numa escola particular. Este é o
profissional que adota a profissão como meio de ascensão social e não está
nenhum pouco preocupado com o desempenho do todo, mas da parte – ele.
Precisamos de medalhões do bem. Um exército deles, na verdade. Não cabem
aqui professores como os da Coreia e do Canadá. Só há duas formas de chegarmos
ao topo: ou pela força econômica ou pela força da inteligência. Japão e Coreia
do Sul chegaram pela inteligência. A China chega pela força da economia. Já
temos força econômica. Resta-nos a inteligência. Por quê? Aqui a educação
sempre foi mais discurso e menos prática. Aqui a educação é para beneficiar
poucos. Os agentes educacionais não são medalhões do bem.
Tudo isto se se pensar na consolidação de um capitalismo mais humano,
caso seja possível, ou, pelo menos, numa social democracia capitalista. E mesmo
que caminhemos para um socialismo democrático, este só será mais justo se
tivermos uma sociedade educada no sentido mais completo possível da palavra.
Não se pode pensar hoje numa sociedade civil moderna, sob qualquer regime, onde
os professores não ensinam, mas cumprem horário; os alunos não estudam, mas
cumprem tarefas e o governo não administra, mas manipula orçamentos.
Mas o ato da prática do gênero humano do para-si é do indivíduo. É ele, o professor, que terá como meta o
desejo de manipulação das peças do jogo social em benefício da melhoria da
própria sociedade. Ele tem que trazer dentro dele esta coisa abstrata do ver o
errado e não concordar, querer meter o bedelho para transformar. É o ser que
não se distancia jamais da capacidade de se indignar. Esta predisposição para a
rebeldia é fruto de uma boa educação. Não é na escola que ela nasce, mas é a
escola que rega estas sementes já predispostas.
E quando se fala em rebeldia, vem logo a relação com os movimentos
sociais, os sindicatos, os partidos da linha esquerdista. É claro que eles
representam a luta pela correção das injustiças históricas, aqui no Brasil e em
vários países, praticadas contra várias classes sociais, dentre elas a dos
trabalhadores da educação. Mas não é só isso. Os médicos ganham um pouco mais
que os professores, e a saúde é um caos. Os desembargadores ganham altos
salários, e a Justiça é também um caos. O problema é muito mais complexo e
passa pela questão cultural. Não é segredo que as distorções ocorridas nestas
áreas têm grande contribuição do fracasso da escola pública brasileira, fruto
de discursos históricos e práticas desastrosas.