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domingo, 5 de agosto de 2012

Ensaio: A práxis social e a ética aparente na educação


                       Landisvalth Lima
O alicerce básico deste ensaio é o artigo Ètica e ontologia em Lukács e o complexo social da educação, assinado por Mônica Mota Tassigny e publicado na Revista Brasileira de Educação, nº 25. Lá, a autora mostra as nuances da natureza da relação do processo educacional do homem com a realidade material e social, tendo como norteadores as ideias do pensador húngaro. Aqui, pretende-se ampliar o debate chamando para o centro das discussões dois contos de Machado de Assis: O espelho e Teoria do Medalhão, ambos integrantes da coletânea Papéis avulsos, publicada inicialmente em 1882.
Citando Lukács, Mônica afirma que o filósofo vê a história da humanidade focada na tensão entre dois polos: o gênero humano e as ações dos indivíduos. No primeiro caso há dois formatos reveladores do ser: o em-si – que pode ser confundido com uma espécie de negação do eu, recolhimento do ego - e o para-si – tradução do pensar no ser como produto de transformação e libertação. O nível de conflito do gênero humano com as ações dos indivíduos determinará o nível da nossa práxis social. Mais claramente, é o que mostrará se agiremos como produto da História ou como agente dela, como ser alienado às imposições do capitalismo ou como ser impulsionador de liberdade e de autonomia.
Machado de Assis
Chega a ser um sacrilégio a não adoção da obra de Machado de Assis no meio acadêmico como forma de dissecar o mundo complexo da alma humana, inclusive como forma de fazer entender as teorias filosóficas. É verdade que seus livros são muito bem divulgados e adotados nas escolas de ensino médio, muito mais como leitura obrigatória da disciplina de Língua Portuguesa do que como mecanismo de compreensão da História, da Filosofia e da Sociologia. Aqui, como recurso argumentativo, vão os dois preciosos contos. Primeiro, O espelho, um esboço da alma humana.
Trata-se da história de Jacobina, um homem que evitava expor as suas opiniões para seus amigos. Ele não queria discutir ou debater. Polemizar era um ato que entendia como uma perda de tempo. Mas a narrativa se inicia porque o protagonista havia sido obrigado a expressar sua opinião sobre a existência da alma. Expõe, então, uma curiosa teoria sobre a existência de duas almas. Uma fala de dentro para fora e a outra de fora para dentro. Uma se impõe sobre a outra. Para provar sua teoria, conta uma história passada em sua juventude, quando havia recebido o título de Alferes da Guarda Nacional. Era apenas um título e uma farda, mas isso trouxe à personagem notoriedade tamanha. Tanto que sua tia Marcolina pede para que ele passe uns dias em seu sítio, só para ter a honra de receber em suas terras um parente Alferes e poder exibi-lo. Ele é ovacionado o tempo todo.
Antes de se retirar para uma viagem urgente em cuidado de uma filha, Marcolina deixa no quarto do Alferes Jacobina um espelho, o móvel melhor da casa. Era uma homenagem. Com a partida da tia, Jacobina fica só com os escravos, mas estes fogem no dia seguinte. O protagonista entra em contato com a solidão, sem ninguém para elogiar seu cargo e sua farda. Chega a uma crise tal que pensa em praticar suicídio. Seu único momento de alívio era quando dormia e em seus sonhos via as pessoas elogiarem sua farda. Certa hora, acidentalmente se olha no espelho e percebe a sua imagem muito difusa, pouco nítida. Supera, no entanto, o desespero e tem uma ideia salvadora: veste a farda e se coloca diante do espelho. Espantosamente, sua imagem está nítida. Passa, então, a dedicar uma determinada hora do dia para olhar-se no espelho e admirar a sua vestimenta, o que lhe garante a sobrevivência sem solidão no final do período de 14 dias em que ficou sozinho.

                                    — O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não?

O conto revela a visão de mundo de Machado de Assis parelha à de Lukács. A alma externa, que fala de fora para dentro, é o status social, o prestígio, o glamour e impõe domínio sobre o eu do ser. Anula o livre arbítrio e joga o ego ao lixo, gerando servilismo e práticas sociais alienadoras. Ou seja, o ser aceita o que está posto e vira vassalo do status quo. Em troca, a alma fica sendo massageada. É o gênero humano em-si lukacseano. Ou seja, o ser vira produto da história e de suas vontades determinadas pelo meio social.
O outro conto é o diálogo Teoria do Medalhão
O enredo revela um pai em conversa com seu filho, que faria 22 anos no dia seguinte e, consequentemente adquiriria sua plena independência. Após o jantar, respondendo pergunta do filho sobre qual profissão seguir, aconselha que seu pupilo cultive o ofício de medalhão. O que era então ser medalhão? Moderar os impulsos da mocidade e saber que, aos quarenta e cinco anos, seria a idade em que o medalhão normalmente se manifesta. Alguns um pouco mais velhos, outros, ainda mais jovens, sendo estes últimos verdadeiros prodígios. Outra era abster-se de ter ideias. Com a idade pode ser que elas viessem, mas deve preveni-las fazendo atividades que não permitam seu surgimento: jogar bilhar, ter retóricas, passear na rua – desde que seja acompanhado, para que a solidão não dê margem às ideias - ir a uma livraria, mas para contar uma piada, um caso, um assassinato, e não para outro fim, pois a solidão não convém ao fim do ofício. Com isso, em até dois anos pode reduzir-se bastante o intelecto.
O filho reclama que não pode enfeitar muito aquilo que fala ou escreve, ao que o pai diz que pode empregar figuras, sempre a carregar citações, máximas, discursos prontos, até mesmo frases feitas, procurando poupar problemas e discussões. Mas convém saber das descobertas e interesses das ciências do momento com o tempo, pois seus significados e terminologia, sendo aprendidos sem a interferência de professores e mestres, não oferecem o perigo de formular ideias. Também é mencionado pelo pai ainda os benefícios da publicidade. Em vez de escrever um tratado sobre os carneiros, é melhor servi-lo num jantar aos amigos e revelar o evento aos quatro cantos.  Deve-se também fazer festas, ter figuras da imprensa nelas para que se torne público seu acontecimento. Com o tempo, por tornar-se conhecido, passará a ser chamado para festas como figura indispensável.  
Pode-se virar político também, usar a tribuna para chamar à atenção pública, mas sem adotar ideia de partido nenhum, muito menos ideias novas.  O filho indaga se não deve ter nenhuma imaginação ou filosofia. O pai responde que não, mas deve falar sobre "filosofia da história", mas sem sabê-la, devendo fugir de tudo que leve à reflexão. Vendo que já é meia noite, o pai pede ao filho que vá dormir e pense bem no que foi conversado. Ou seja, o pai ensinou ao filho como manipular o jogo da convivência social em benefício próprio.  O medalhão é o profissional oportunista.

                             — Nem eu te digo outra coisa. É difícil, come tempo, muito tempo, leva anos, paciência, trabalho, e felizes os que chegam a entrar na terra prometida! Os que lá não penetram, engole-os a obscuridade. Mas os que triunfam! E tu triunfarás, crê-me. Verás cair as muralhas de Jericó ao som das trompas sagradas. Só então poderás dizer que estás fixado. Começa nesse dia a tua fase de ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo. Acabou-se a necessidade de farejar ocasiões, comissões, irmandades; elas virão ter contigo, com o seu ar pesadão e cru de substantivos desadjetivados, e tu serás o adjetivo dessas orações opacas, o odorífero das flores, o anilado dos céus, o prestimoso dos cidadãos, o noticioso e suculento dos relatórios. E ser isso é o principal, porque o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica. O substantivo é a realidade nua e crua, é o naturalismo do vocabulário.

Observe-se que em Teoria do Medalhão há um ser que tem consciência de que pode manipular vícios e comportamentos sociais em benefício próprio. Não se trata de um ser preocupado com o status, mas com a manipulação deste status para um dia usufruir dele. É a alma que fala de dentro para fora, que tem consciência do seu posicionamento social e que se vê como agente da História. Malgrado o uso deste poder da alma para um certame estritamente individualista, não deixa de ser o gênero humano do para-si de Lukács. Aqui o exterior não anula o interior. O ego não se submete, não se anula. Adapta-se para transformar em seu benefício, como poderia fazer isso em benefício do conjunto da sociedade.
Podemos aplicar esta visão ontológica do ser de Lukács à prática do professor como profissional. Há dois caminhos da práxis do educador que não ferem nenhuma ética. Ser um Jacobina ou ser um Medalhão do bem. Para isso leva-se em consideração a educação como um processo ideológico de manutenção de um sistema ou da transformação dele. Não se trata de algo inerente ao ser biológico. Não é o instinto que nos garante a reprodução da espécie determinado pela força ou pelo medo. Trata-se de um processo, de uma autorregulamentação da práxis social e alicerce de sobrevivência de sistemas sociais. Ou seja, a sobrevivência dos regimes, socialismo e capitalismo por exemplo, mantidos por um status quo está siamesamente atrelada à evolução ou à decadência da educação.
E recai sobre o profissional ter esta consciência. Sua atitude ética ante o mundo em que vive passa pela adoção do em-si ou do para-si. Como pode um professor agir diante de uma educação que está revelando o seu país ou sua comunidade para o mundo? Como um professor na Coreia do Sul ou no Canadá deve agir, vendo seus alunos no topo da lista dos mais desenvolvidos? Aceitar o que está posto, conformar-se com o sucesso e cuidar para manter o que está dando certo. E aqui no nosso mundo Brasil? Como deveremos agir? Se adotarmos o comportamento aconselhado pelo pai do conto Teoria do Medalhão, conseguiremos facilmente passar pelos 30 anos de profissão, numa postura perfeitamente ética e irrepreensível. É a prática do para-si individualista.
Este professor medalhão tem consciência dos labirintos das estruturas sociais e as manipula para seu proveito. Fará vistas grossas à corrupção, ao mandonismo, aos projetos mirabolantes que não dão em nada, ao exercício de cargos inúteis, aos colegas que defendem a escola pública com unhas e dentes, mas seus filhos estão matriculados numa escola particular. Este é o profissional que adota a profissão como meio de ascensão social e não está nenhum pouco preocupado com o desempenho do todo, mas da parte – ele.
Precisamos de medalhões do bem. Um exército deles, na verdade. Não cabem aqui professores como os da Coreia e do Canadá. Só há duas formas de chegarmos ao topo: ou pela força econômica ou pela força da inteligência. Japão e Coreia do Sul chegaram pela inteligência. A China chega pela força da economia. Já temos força econômica. Resta-nos a inteligência. Por quê? Aqui a educação sempre foi mais discurso e menos prática. Aqui a educação é para beneficiar poucos. Os agentes educacionais não são medalhões do bem.
Tudo isto se se pensar na consolidação de um capitalismo mais humano, caso seja possível, ou, pelo menos, numa social democracia capitalista. E mesmo que caminhemos para um socialismo democrático, este só será mais justo se tivermos uma sociedade educada no sentido mais completo possível da palavra. Não se pode pensar hoje numa sociedade civil moderna, sob qualquer regime, onde os professores não ensinam, mas cumprem horário; os alunos não estudam, mas cumprem tarefas e o governo não administra, mas manipula orçamentos.
Mas o ato da prática do gênero humano do para-si é do indivíduo. É ele, o professor, que terá como meta o desejo de manipulação das peças do jogo social em benefício da melhoria da própria sociedade. Ele tem que trazer dentro dele esta coisa abstrata do ver o errado e não concordar, querer meter o bedelho para transformar. É o ser que não se distancia jamais da capacidade de se indignar. Esta predisposição para a rebeldia é fruto de uma boa educação. Não é na escola que ela nasce, mas é a escola que rega estas sementes já predispostas.
E quando se fala em rebeldia, vem logo a relação com os movimentos sociais, os sindicatos, os partidos da linha esquerdista. É claro que eles representam a luta pela correção das injustiças históricas, aqui no Brasil e em vários países, praticadas contra várias classes sociais, dentre elas a dos trabalhadores da educação. Mas não é só isso. Os médicos ganham um pouco mais que os professores, e a saúde é um caos. Os desembargadores ganham altos salários, e a Justiça é também um caos. O problema é muito mais complexo e passa pela questão cultural. Não é segredo que as distorções ocorridas nestas áreas têm grande contribuição do fracasso da escola pública brasileira, fruto de discursos históricos e práticas desastrosas.