Matheus Pichonelli – da revista Carta Capital
O jornalista e escritor Dênis de Moraes, que relança a obra “O Velho Graça”, a biografia de Graciliano Ramos. Foto: Boitempo Editorial |
A prisão sem acusação formal em
meio à caça às bruxas promovida pelo governo Vargas, em 1936, é só o ponto mais
conhecido de uma história trágica. Para o biógrafo Dênis de Moraes, professor
da Universidade Federal Fluminense, nenhum grande autor brasileiro enfrentou
tantos infortúnios como Graciliano Ramos, alagoano de Quebrangulo (AL) nascido
a 27 de outubro de 1892 que, apesar do reconhecimento, morreu em dificuldades
financeiras sem sequer imaginar que um dia sua obra se tornaria referência para
qualquer autor de qualquer período da história literária nacional.
O livro ”O Velho Graça” (Boitempo
Editorial) será relançado em 27 de novembro, na Livraria da Travessa (Leblon).
No local, haverá um debate entre Dênis de Moraes, Felipe Pena e José Paulo
Netto, seguido de sessão de autógrafos com o autor.
Confira abaixo os principais
trechos da entrevista.
CartaCapital: A primeira edição
de O Velho Graça” é de 1992. O que mudou na história de Graciliano Ramos nesses
20 anos?
Dênis de Moraes: O livro teve
quatro edições e estava esgotado havia mais ou menos dez anos. Estava
praticamente confinado nas bibliotecas. Para essa nova edição houve novidades
localizadas, como a narração de um encontro que ele teve com o Getúlio Vargas,
inédito, e uma carta escrita para o ditador que jamais foi entregue. Um dos
acréscimos também foi o resgate das poucas entrevistas boas que ele deu a jornalistas.
Cito quatro grandes jornalistas que conseguiram com muita habilidade, paciência
e tolerância convencê-lo a dar entrevistas mais interessantes sobre a vida, a
obra e a trajetória. São eles: Francisco de Assis Barbosa, Joel Silveira,
Newton Rodrigues e Homero Senna. Tentei resgatar o que esses grandes
jornalistas conseguiram arrancar daquele nordestino fechado, retraído e
desconfiado.
CC: Não era uma contradição
alguém que trabalhou como jornalista durante tantos anos ser tão avesso a
jornalistas?
DM: Não deixa de ser
contraditório. Ele trabalhou no Correio da Manhã nos anos 1910, depois virou
colaborador fixo da imprensa alagoana. Na cadeia, ele se tornou colaborador
assíduo dos cadernos literários do Rio de Janeiro, e terminou a vida como
jornalista do Correio da Manhã, como o principal redator. Mas, quando procurado
para dar entrevistas, ele sempre repetia que não tinha nada a dizer. Era um
argumento recorrente. Esses jornalistas que citei, com uma grande capacidade
persuasiva, conseguiram driblar essa resistência. O Newton Rodrigues consegue
tirar do Graciliano, por exemplo, uma análise sobre os romances sociais, o
papel do escritor na sociedade, a relação entre cultura e política. Joel
Silveira o leva a abordar as reminiscências da vida no Nordeste. Com o Homero
Senna é interessante: o Graciliano não queria fazer a entrevista e é demovido.
Eles marcam um encontro e ficam andando e conversando pelo centro do Rio. De
vez em quando o Graciliano entrava no bar e tomava uma cachaça. E assim Homero Senna
conseguiu tirar dele algumas coisas sobre a vida literária, a política do seu
tempo. O Francisco de Assis Barbosa, biógrafo de Lima Barreto, também arrancou
informações importantes sobre a relação da literatura com a sociedade e
política.
CC: Esse mesmo Graciliano
retraído é autor de confidências em livros de memórias, muitas delas amargas,
como “Infância” e “Memórias do Cárcere”, em que expõe de maneira clara seu
circulo restrito de intimidades. Como encontrar o personagem entre a amargura
exposta e essa intimidade restrita?
DM: Esse lado do Graciliano,
avesso e desconfiado, é justamente uma preocupação que eu tive para clarear
mais e fazer uma reconstrução. Precisava mostrar um lado dele que aparecia de
uma forma tímida nesses livros. Quando fiz este trabalho, dei sorte porque, na
ocasião, encontrei ainda vivos vários contemporâneos e companheiros de geração,
como os jovens escritores que o procuravam e os jornalistas que trabalhavam com
ele. Vinte anos depois, hoje eles são muito poucos. Ele tinha uma família
grande, com quatro filhos do primeiro casamento e quatro do segundo, com a
Heloisa, que morreu faz alguns anos. Em 1992 (quando o livro foi lançado)
morreu o Ricardo Ramos. Ele tinha deixado um livro póstumo de memórias sobre o
pai. Uma das filhas, a Luisa, foi morar em Salvador, casada com um irmão de
Jorge Amado. Dos filhos da Maria Augusta, tenho a impressão de que não tem
ninguém mais vivo.
Graciliano e o filho Ricardo
Ramos. Foto:Acervo Graciliano Ramos/ Reprodução do livro “O velho Graça”
CC: Há no livro passagens em que
Graciliano soa como um personagem sem meias palavras, um tanto mal humorado,
como quando diz em carta que o filho mais novo era estúpido ou quando dá
broncas nos vícios identificados nos textos que analisava. Como quando diz que
o filho Ricardo cometia um “crime confesso de imprecisão” simplesmente por
escrever a palavra “algo”. Esse lado dele era uma descrição coerente neste círculo
de pessoas íntimas?
DM: Esse jeito do Graciliano,
muito categórico, aparecia nos depoimentos de quem tinha intimidade com ele, e
não eram muitas pessoas. Mas essas frases dele eram meias-verdades. Ele tinha
esse gosto de chocar o interlocutor, como quando dizia que o Machado de Assis,
que ele venerava, era “metido a inglês”. Isso causava estupefação.
CC: A Raquel de Queiróz chegou a
contar no livro que se impressionava com a capacidade que ele tinha de elogiar
e desdenhar em seguida exatamente o mesmo texto…
DM: No fundo ele era um
sentimental. Ele se defendia um pouco do mundo. Era um homem que tinha esse
lado visto como ríspido, rude, mas era uma pessoa solidária, fraterna,
generosa. O problema era você conseguir penetrar na intimidade dele e descobrir
esse lado desguarnecido, esse lado terno e acolhedor. O livro mostra como ele
era temido e ao mesmo tempo importante para os jovens. Quando eles descobrem
que aquela rudeza era só aparência, os jovens se encantam por ele. Graciliano
era acolhedor e solidário com esses jovens escritores que o procuraram. Ele
anotava, dava sugestões. No Correio da Manhã ele teve esse papel de orientador,
de guia, para os jornalistas. Mas não poupava ninguém quando achava que o texto
era ruim.
CC: No livro, fica clara também a
dificuldade de Graciliano em se apresentar como escritor quando jovem. A
passagem dele como prefeito de Palmeira dos Índios, quando produziu os famosos
relatórios que correram o Brasil e foi procurado pelo poeta Augusto Frederico
Schmidt, dono da editora Schmidt, pode ser considerada fundamental para a sua
descoberta como autor?
DM: Acho que foi fundamental.
Esses relatórios circulavam pela imprensa de Maceió e depois chegaram ao Rio de
Janeiro. Isso o publicizou. Porque,
imagina: havia um prefeito no Nordeste que escrevia relatórios de maneira
excêntrica até para os padrões de hoje. Essa passagem foi fundamental,
primeiro, porque sua gestão foi pautada pelos mais rígidos princípios de
honestidade e prioridade para as questões sociais. Ele não governou para os
coronéis. E foi importante também para a questão literária. Com certeza. Sem os
relatórios, o talento de Graciliano permaneceria confinado em Palmeira dos
Índios. Isso o favoreceu nesse sentido porque rompeu a barreira do isolamento
da província.
CC: Depois da prisão, em 1936,
ele se fixa no Rio de Janeiro e não volta mais para Alagoas. Por quê?
Graciliano e o filho Ricardo Ramos. Foto:Acervo Graciliano Ramos/ Reprodução do livro “O velho Graça” |
DM: Durante muitos anos ele tinha
muito ressentimento em relação a tudo o que havia sofrido, todas as
perseguições. Mas há passagens que mostram também como ele era nostálgico.
Quando ele volta da viagem para a União Soviética, dona Heloísa, a mulher dele,
pergunta onde ele gostaria de viver e ele diz: “Em Alagoas. É minha terra,
mesmo com todos os defeitos”. Ele dizia: “sou um sertanejo, não vou deixar de
ser, e é isso o que eu tenho”. Ou seja: ele nunca deixou de ter saudade.
CC: Graciliano ficou preso
durante quase um ano sem jamais ter contra ele uma acusação formal. Ele morreu
dizendo que foi perseguido por causa de sua atuação como Diretor de Instrução
Pública, espécie de Secretaria da Educação na época. Isso era suficiente para
tanta perseguição?
DM: Antes ele tinha sido prefeito
de Palmeira dos Índios e fez um governo revolucionário. Acabou com privilégio
dos coronéis, não perdoou nem o pai quando teve de multá-lo. A convite do
governador, se tornou presidente da Imprensa Oficial de Alagoas e a
reorganizou. Hoje a Imprensa Oficial leva o nome dele em homenagem. Na
Instrução Pública, fez uma administração absolutamente correta e empreendedora,
e isso fica claro na cena em que ele vai visitar um colégio em seu primeiro dia
de trabalho, na periferia de Maceió, chega lá e não vê aluno porque eles não
tinham roupas nem sapatos, não tinham comida. Ele manda comprar a merenda, vai
numa loja, sem dinheiro nem orçamento, compra os metros do tecido, corta
(porque ele trabalhava com comércio e sabia como cortar), e manda as
costureiras fazerem o uniforme para os alunos. E depois vai para a sapataria e
encomenda os pares de sapato, manda entregar ao colégio e o colégio reabre. Ele
aumentou as matrículas na rede estadual de ensino (em três anos de mandato, o
número saltou de 20 mil para 50 mil). Ele levava o governador para as escolas
não para levantar placas, mas para que ele visse a situação precária como quem
diz: “você precisa tomar providências”. Como prefeito, anos antes, ele se
dedicou tanto que seus negócios na cidade, onde ele trabalhava como
comerciante, foram à falência. Os encargos na prefeitura o consumiam. Isso
incomodou muita gente.
CC: Essa relação conturbada com o
local de origem respingou nos filhos do primeiro casamento, que ficaram em
Alagoas?
DM: As circunstâncias difíceis da
vida de Graciliano contribuíram para o período de afastamento da primeira
família. Dois filhos chegaram a se mudar para o Rio. Em outros momentos, dona
Heloísa, do segundo casamento, ficava com os filhos em Maceió porque não tinha
condições de viver no Rio. Ela representa o maior alicerce que Graciliano teve
para enfrentar as adversidades e infortúnios. E enfrentou tudo com enorme
bravura. Aliás, nenhum grande autor sofreu tantos infortúnios como o Graciliano
Ramos. Dona Heloísa foi fundamental para interceder por Graciliano (com a ajuda
do também escritor José Lins do Rego, amigo da família) e tirá-lo da prisão. Se
não eles o teriam matado. Ela foi uma das maiores brasileiras que já conheci na
vida, uma grande mulher, e é a ela que eu dedico esta edição do livro. A ela e
ao Carlos Nelson Coutinho (morto em setembro), autor do prefácio.
CC: Em todos esses momentos
delicados, Graciliano contou com a ajuda de amigos, mesmo sem jamais ter feito
qualquer pedido direto a eles.
DM: Essa solidariedade dos amigos
é uma constante na vida dele. No fim, já com câncer de pulmão, ele sofre uma
ameaça de despejo. E os amigos do Partido Comunista Brasileiro se mobilizam
para pagar o aluguel que ele devia. O que é dramático porque ele tinha três
empregos: como inspetor federal de ensino, à tarde, na pedreira do Correio da
Manhã à noite, e de manhã, quando escrevia os livros e as colaborações para ganhar
extras. Era um homem que trabalhava em três turnos e termina a vida com
dificuldades financeiras. Ele tinha muitos amigos influentes e ele não os
usava. Os amigos é que atuavam em solidariedade, em favor dele. Foi Carlos
Drummond de Andrade, por exemplo, quem conseguiu para ele uma nomeação como
inspetor de ensino. E ele não transformou o emprego público em bico. Nem tirou
vantagens. Batia sola de sapato pelos colégios do subúrbio do Rio para exercer
dignamente as suas funções de inspetor federal de ensino. Com 60 anos, cumpria
religiosamente o trabalho, e era admirado até mesmo pela direção do Mosteiro de
São Bento pela correção dele.
CC: No fim da vida, já
debilitado, ele se mostra decepcionado como alguns amigos de partido, que o
pressionavam para transformar seus livros em panfletos políticos. Ao mesmo
tempo, se mostrou um militante fiel. É uma contradição?
DM: Foi nessa fase de
enfrentamento com o partido que dona Heloísa o convenceu a se tratar e se
recuperar dos problemas de alcoolismo. Ele gostava de cachaça. Quando bebia, se
soltava. Em Palmeira dos Índios, ia para uma sacristia, tomava uma cachaça e
escrevia. As amarguras e as contrariedades, no fim dos anos 40, o levaram a
beber um pouco mais do que devia. Mas ele se recuperou. E logo depois ficou
doente por causa do cigarro…Ele fumava quatro maços por dia, teve uma vida de
muito sofrimento e morreu cedo, aos 60 anos. No fim da vida, ele enfrentou o
dogmatismo dentro do partido com absoluta dignidade. Ele jamais permitiu
interferência do partido na sua obra. E ainda assim nunca falou mal do partido
fora do partido. Era um militante fiel. Ele recebeu várias visitas do Arruda
Câmara, deprimentes, para saber como andava o “Memórias do Cárcere”. Ele
tergiversava. E tratava as graves divergências que tinha com o stalinismo
cultural apenas em seu círculo de amigos. Ele não aceitava, por exemplo, o que
fazia o (Andrei( Zdanov (governador de Leningrado e encarregado de Stálin para
controlar a produção intelectual) na União Soviética. Graciliano chamava Zdanov
de “cavalo”. Porque era um cavalo mesmo. Só um sujeito irracional achava que,
em nome da União Soviética, poderia estabelecer uma política de censura e
patrulhamento da produção cultural. E Graciliano, com absoluta correção e
firmeza, não permitiu que a direção do partido interferisse na sua liberdade
como artista, como criador, e ao mesmo tempo não traiu o partido. Ele
enfrentava a tensão, o sofrimento, essas incompreensões, apenas no circulo de
seus amigos. Não cedeu. Não se deslumbrou com a durante a viagem para a URSS.
Chegou lá, faz perguntas insolentes, como quando questiona por que um grande
nome da literatura russa, o Tolstoi, não aparecia na galeria de grandes
escritores russos, o que ele considerava uma heresia. As convicções dele
estavam acima de qualquer imperativo ideológico ditado pela direção do partido
que ele aderiu em 1945. Graciliano prova que é possível resistir à opressão em
qualquer sentido.
CC: Ao mesmo tempo, Graciliano
era criticado por ter aceitado trabalhar em órgãos do Estado Novo mesmo após a
prisão. O encontro dele com Getúlio, inédito nesta edição, ajuda a afastar esta
visão sobre ele?
DM: É um episódio importante
porque quebra uma certa animosidade que o conservadorismo tinha para atacar o
Graciliano pelo fato de ele ter trabalhado na revista Cultura Política,
produzida pelo Estado Novo, depois de ter sido preso pelo Getúlio. O Graciliano,
já consagrado, não estende a mão para o presidente da República, que já tinha
mais de dez anos de poder, quando eles se encontram por acaso num passeio
noturno pela praia do Flamengo. Graciliano vê o presidente, recebe o
cumprimento e passa direto. Ele se nega a estender a mão. Esse relato me foi
feito pelo saudoso escritor e jornalista Antonio Carlos Villaça quando eu já
tinha publicado a primeira edição da biografia. É um episódio que jamais foi
desmentido. Se o Graciliano Ramos fosse um homem de certezas fúteis, ele teria
se aproveitado do encontro pra se aproximar de Getúlio. Mas passa direto. Esse episódio, como atesta Villaça, é prova
da dignidade e coerência dele.