Para historiador, o principal
ônus da era Chávez foi o ódio dos microfones do poder contra os que divergiam
desse mesmo poder
Enrique Krauze – artigo publicado
em O ESTADO DE SÃO PAULO
Chávez magnetiza a massa na Plaza Caracas em fevereiro de 1998: legado polêmico. (Foto: Jorge Santo/AP) |
Ele tinha uma concepção polarizada
do mundo. Via o mundo dividido entre amigos e inimigos, entre chavistas e
pitiyanquis (simpatizantes dos americanos), entre patriotas e traidores.
Descobri sua vocação social em livros e ensaios. Mas uma coisa é a vocação
social, outra a forma na qual essa vocação é praticada. Obcecado por uma
admiração anacrônica pelo modelo cubano, Hugo Chávez tumultuou as instituições
públicas venezuelanas, corrompeu a companhia estatal Petróleos de Venezuela SA
e foi protagonista do que poderá se revelar o maior desperdício de riquezas
públicas de toda a história latino-americana. Mas embora os seus erros
econômicos sejam de tão grande magnitude, empalidecem diante das chagas
políticas e morais que infligiu ao país.
Chávez não só concentrou o poder:
ele confundiu, ou melhor, fundiu sua biografia pessoal com a história
venezuelana. Nenhuma democracia prospera onde um homem supostamente
"necessário", único e providencial reivindica a propriedade privada
dos recursos públicos, das instituições públicas, do discurso público, da
verdade pública. O povo que tolera ou aplaude essa delegação absoluta de poder
numa só pessoa abdica de sua liberdade e condena a si mesmo à adolescência
cívica, pois essa delegação supõe a renúncia à responsabilidade sobre seu
destino.
O principal prejuízo é a
discórdia no interior da família venezuelana. Nada me entristeceu mais nas
visitas a Caracas (nem sequer a escalada da criminalidade ou a visível
deterioração da cidade) do que o ódio dos microfones do poder contra o amplo
setor da população que divergia desse poder. O ódio dos discursos, dos
cartazes, dos punhos fechados, dos arrogantes porta-vozes do regime em
programas de rádio e TV, das redes sociais infestadas de insultos, mentiras,
teorias conspiratórias, desqualificações, preconceitos. O ódio do fanatismo
ideológico e do rancor social. O ódio surdo à razão e impermeável à tolerância.
Essa é a chaga histórica que o chavismo deixa. Quanto tempo levará para sanar?
E poderá sanar? É um milagre que a Venezuela não tenha desembocado na violência
partidária e política.
Há algumas semanas, com o
agravamento da doença de Chávez, antecipei sua imediata santificação, como
ocorreu com Evita Perón na, mas, dada a tradição caudilhista da Venezuela, a sacralização
de sua figura será mais profunda e permanente. Hugo Chávez conseguiu a
imortalidade com que sempre sonhou. Na alma de muitos dos seus compatriotas (e
de não poucos simpatizantes na América Latina), ele compartilhará das glórias
do Libertador. Até o comandante Fidel Castro poderia sentir-se relegado, vítima
de um suave, porém implacável parricídio.
O que acontecerá agora, depois de
sua morte? Tudo pode ocorrer, até a divisão interna do chavismo em uma ala
ideológica e uma militar ou a vitória da oposição. Contudo, é provável que o
sentimento de pesar, somado à gratidão que um amplo setor da população sente
por Chávez, facilitem o triunfo de um candidato oficial nas eventuais eleições.
Para isso contribuirão os órgãos eleitorais, fiscais, judiciais e - em parte -
os legislativos, que continuarão nas mãos do chavismo. Seu retrato, sua cadeira
vazia, sua imagem retransmitida interminavelmente acompanharão por algum tempo
o novo presidente. Mas todo sofrimento tem um fim. E, neste momento, chavistas não
chavistas deverão enfrentar a gravíssima realidade econômica.
Os indicadores de alarme são de
domínio público. O déficit fiscal corresponde a 20% do PIB, cerca de US$ 70
bilhões. O dólar, cotado a pouco mais de 6 bolívares, triplica no mercado
negro. A inflação vem sendo há anos, a mais elevada da região. A escassez
(decorrente do desmantelamento do parque industrial, do êxodo da classe média
profissional e da falta crônica de investimentos) virou quase uma tradição
venezuelana. Há uma aguda carestia de divisas. Como explicar que um país, que
na era de Chávez auferiu mais de US$ 800 bilhões em receitas petrolíferas,
apresente contas tão alarmantes?
Boa parte da explicação está no
petróleo. Em 1998, a Venezuela produzia 3,3 milhões de barris diários e exportava
(e cobrava) 2,7 milhões. Agora, a produção despencou para 2,4 milhões de barris
diários, pelos quais cobra apenas 900 mil (os que vende aos EUA, o império
odiado). O restante, que ele não cobra, divide-se assim: 800 mil vão para o
consumo interno, praticamente gratuito (e que gera um polpudo negócio de
exportação ilegal); 300 mil destinam-se a pagar créditos e produtos adquiridos
na China; 100 mil são gastos com a importação de gasolina; e 300 mil vão a
países do Caribe que pagam (quando pagam) com descontos e prazos enormes ou
simbolicamente, como Cuba, que "paga" seus 100 mil barris com o envio
de médicos, professores e policiais (e se beneficia do petróleo venezuelano a
ponto de reexportá-lo).
Um presidente chavista deverá
enfrentar essa realidade e encarar o público. Mas esse mandatário já não será
Chávez o hipnótico, Chávez o taumaturgo, o líder que explicava tudo,
justificava tudo, minimizava tudo. As pessoas culparão os chavistas por não
estarem à altura do seu legado. Dirão: "Chávez não teria permitido
isto", "Chávez teria resolvido isto". Chegado a este ponto, o
próprio regime chavista talvez se convencesse da necessidade de um diálogo de
conciliação que agora parece utópico. E aí se poderia abrir uma oportunidade
concreta para a oposição.
Depois dos longos anos de
inconsistências, omissões e erros, a oposição venezuelana mostrou-se unida,
escolheu um líder inteligente e determinado (Henrique Capriles) e teve bom
desempenho nas eleições: recebeu quase 7 milhões de votos. Durante a agonia de Chávez,
sem deixar de levantar a voz de protesto, mostrou uma notável prudência que
deve confirmar nestes dias de dor e de comoção. Se a oposição - que esperou
tanto - conservar a coesão e a presença de espírito, poderá avançar nas
eleições legislativas, regionais e presidenciais e recuperar as posições que
perdeu. Uma força latente também deverá despertar: os estudantes. Eles
exerceram papel fundamental no referendo de 2007 (que impediu a conversão
aberta da Venezuela ao modelo cubano) e talvez voltem a exercê-lo.
Acredito que, com a morte do
grande caudilho messiânico ("Redentor", como o chamou abertamente o
próprio Maduro), a Venezuela encontrará, cedo ou tarde, o caminho da concórdia:
se nos quinze anos de Chávez a violência verbal não transbordou para a
violência física, é razoável esperar que não explodirá agora. E a mudança
poderá ser contagiosa. Cuba, a Meca do redentorismo histórico, o único Estado
totalitário da América, poderá reformar-se como a Rússia e a China. Toda a
região poderá oscilar então entre regimes de esquerda social-democrática e
governos de economia mais aberta e liberal. E para que o trânsito seja menos
acidentado, os EUA também deveriam dar sinais inéditos de sensatez, cancelando
o embargo a Cuba e fechando a prisão de Guantánamo.
O século 19 latino-americano foi
o século do caudilhismo militarista. O século 20 sofreu o redentorismo
iluminado. Ambos os séculos padeceram com os homens "necessários".
Talvez no século 21 desponte um novo amanhecer, um amanhecer plenamente democrático.
/ TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA.
ENRIQUE KRAUZE, ESCRITOR E
HISTORIADOR MEXICANO, É AUTOR DE OS REDENTORES - IDEIAS E PODER NA AMÉRICA
LATINA (BENVIRÁ).