O escritor italiano diz que a
internet é perigosa para o ignorante e útil para o sábio porque ela não filtra
o conhecimento e congestiona a memória do usuário.
LUÍS ANTÔNIO GIRON, de MILÃO,
entrevista para a Revista ÉPOCA o pensador e romancista italiano Umberto Eco, que completa 80 anos nesta semana. Seu livro mais conhecido no Brasil é “O nome da
Rosa”, romance que virou filme. Ele está escrevendo sua autobiografia
intelectual.
O escritor e semiólogo Umberto
Eco vive com sua mulher em um apartamento duplo no segundo e terceiro andar de
um prédio antigo, de frente para o palácio Sforzesco, o mais vistoso ponto
turístico de Milão. É como se Alice Munro morasse defronte à Canadian Tower em
Toronto, Hakuri Murakami instalasse sua casa no sopé do monte Fuji, ou então
Paulo Coelho mantivesse uma mansão na Urca, à sombra do Pão de Açúcar.
"Acordo todo dia com a Renascença", diz Eco, referindo-se à enorme
fortificação do século XV. O castelo deve também abrir os portões pela manhã
com uma sensação parecida, pois diante dele vive o intelectual e o romancista
mais famoso da Itália.
Um dos andares da residência de
Eco é dedicado ao escritório e à biblioteca. São quatro salas repletas de
livros, divididas por temas e por autores em ordem alfabética. A sala em que
trabalha abriga aquilo que ele chama de "ala das ciências banidas",
como ocultismo, sociedades secretas, mesmerismo, esoterismo, magia e bruxaria.
Ali, em um cômodo pequeno, estão as fontes principais dos romances de sucesso
de Eco: O nome da rosa (1980), O pêndulo de Foucault (1988), A ilha do dia
anterior (1994), Baudolino (2000), A misteriosa chama da rainha Loana (2004) e
O cemitério de Praga. Publicado em 2010 e lançado com sucesso no Brasil em
2011, o livro provocou polêmica por tratar de forma humorística de um assunto
sério: o surgimento do antissemitismo na Europa. Por motivos diversos,
protestaram a igreja católica e o rabino de Roma: aquela porque Eco satirizava
os jesuítas ("são maçons de saia", diz o personagem principal, o
odioso tabelião Simone Simonini), este porque as teorias conspiratórias forjadas
no século XIX - como o Protocolo dos sábios do Sião - poderiam gerar uma onda
de ódio aos judeus. Desde o início da carreira, em 1962, como autor do ensaio
estético Obra aberta, Eco gosta de provocar esse tipo de reação. Mesmo aos 80
anos, que completa em 5 de janeiro, parece não perder o gosto pelo barulho. De
muito bom humor, ele conversou com Época durante duas horas sobre a idade, o
gênero que inventou - o suspense erudito -, a decadência europeia e seu assunto
mais constante nos últimos anos: a morte do livro. É de pasmar, mas o maior
inimigo da leitura pelo computador está revendo suas posições - e até gostando
de ler livros... pelo iPad que comprou durante sua última turnê americana.
ÉPOCA - Como o senhor se sente,
completando 80 anos?
Umberto Eco - Bem mais velho!
(Risos.) Vamos nos tornando importantes com a idade, mas não me sinto
importante nem velho. Não posso reclamar de rotina. Minha vida é agitada. Ainda
mantenho uma cátedra no Departamento de Semiótica e Comunicação da Universidade
de Bolonha e continuo orientando doutorandos e pós-doutorandos. Dou muita
palestra pelo mundo afora. E tenho feito turnês de lançamento de O cemitério de
Praga. Acabo de voltar de uma megaexcursão pelos Estados Unidos. Ela quase me
custou o braço. Estou com tendinite de tanto dar autógrafos em livros.
ÉPOCA - O senhor tem sido um
dos mais ferrenhos defensores do livro em papel. Sua tese é de que o livro não
vai acabar. Mesmo assim, estamos assistindo à popularização dos leitores
digitais e tablets. O livro em papel ainda tem sentido?
Eco - Sou colecionador de
livros. Defendi a sobrevivência do livro ao lado de Jean-Claude Carrière no
volume Não contem com o fim do livro. Fizemos isso por motivos estéticos e
gnoseológicos (relativo ao conhecimento). O livro ainda é o meio ideal para
aprender. Não precisa de eletricidade, e você pode riscar à vontade. Achávamos
impossível ler textos no monitor do computador. Mas isso faz dois anos. Em
minha viagem pelos Estados Unidos, precisava carregar 20 livros comigo, e meu
braço não me ajudava. Por isso, resolvi comprar um iPad. Foi útil na questão do
transporte dos volumes. Comecei a ler no aparelho e não achei tão mau. Aliás,
achei ótimo. E passei a ler no iPad, você acredita? Pois é. Mesmo assim, acho
que os tablets e e-books servem como auxiliares de leitura. São mais para
entretenimento que para estudo. Gosto de riscar, anotar e interferir nas
páginas de um livro. Isso ainda não é possível fazer num tablet.
ÉPOCA - Apesar dessas
melhorias, o senhor ainda vê a internet como um perigo para o saber?
Eco - A internet não seleciona
a informação. Há de tudo por lá. A Wikipédia presta um desserviço ao
internauta. Outro dia publicaram fofocas a meu respeito, e tive de intervir e
corrigir os erros e absurdos. A internet ainda é um mundo selvagem e perigoso.
Tudo surge lá sem hierarquia. A imensa quantidade de coisas que circula é pior
que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia.
Informação demais faz mal. Quando não lembramos o que aprendemos, ficamos
parecidos com animais. Conhecer é cortar, é selecionar. Vamos tomar como
exemplo o ditador e líder romano Júlio César e como os historiadores antigos
trataram dele. Todos dizem que foi importante porque alterou a história. Os
cronistas romanos só citam sua mulher, Calpúrnia, porque esteve ao lado de
César. Nada se sabe sobre a viuvez de Calpúrnia. Se costurou, dedicou-se à
educação ou seja lá o que for. Hoje, na internet, Júlio César e Calpúrnia têm a
mesma importância. Ora, isso não é conhecimento.
ÉPOCA - Mas o conhecimento está
se tornando cada vez mais acessível via computadores e internet. O senhor não
acha que o acesso a bancos de dados de universidades e instituições confiáveis
estão alterando nossa noção de cultura?
Eco - Sim, é verdade. Se você
sabe quais os sites e bancos de dados são confiáveis, você tem acesso ao
conhecimento. Mas veja bem: você e eu somos ricos de conhecimento. Podemos
aproveitar melhor a internet do que aquele pobre senhor que está comprando
salame na feira aí em frente. Nesse sentido, a televisão era útil para o
ignorante, porque selecionava a informação de que ele poderia precisar, ainda
que informação idiota. A internet é perigosa para o ignorante porque não filtra
nada para ele. Ela só é boa para quem já conhece – e sabe onde está o conhecimento.
A longo prazo, o resultado pedagógico será dramático. Veremos multidões de
ignorantes usando a internet para as mais variadas bobagens: jogos, bate-papos
e busca de notícias irrelevantes.
ÉPOCA - Há uma solução para o
problema do excesso de informação?
Eco - Seria preciso criar uma
teoria da filtragem. Uma disciplina prática, baseada na experimentação
cotidiana com a internet. Fica aí uma sugestão para as universidades: elaborar
uma teoria e uma ferramenta de filtragem que funcionem para o bem do
conhecimento. Conhecer é filtrar.
ÉPOCA - O senhor já está
pensando em um novo romance depois de O cemitério de Praga?
Eco - Vamos com calma. Mal
publiquei um e você já quer outro. Estou sem tempo para ficção no momento. Na
verdade, vou me ocupar agora de minha autobiografia intelectual. Fui convidado
por uma instituição americana, Library of Living Philosophers, para elaborar
meu percurso filosófico. Fiquei contente com o convite, porque passo a fazer
parte de um projeto que inclui John Dewey, Jean-Paul Sartre e Richard Rorty -
embora eu não seja filósofo. Desde 1939, o instituto convida um pensador vivo
para narrar seu percurso intelectual em um livro. O volume traz então ensaios
de vários especialistas sobre os diversos aspectos da obra do convidado. No
final, o convidado responde às dúvidas e críticas levantadas. O desafio é
sistematizar de uma forma lógica tudo o que já fiz...
ÉPOCA - Como lidar com tamanha
variedade de caminhos?
Eco - Estou começando com meu
interesse constante desde o começo da carreira pela Idade Média e pelos
romances de Alessandro Manzoni. Depois vieram a Semiótica, a teoria da
comunicação, a filosofia da linguagem. E há o lado banido, o da teoria
ocultista, que sempre me fascinou. Tanto que tenho uma biblioteca só do
assunto. Adoro a questão do falso. E foi recolhendo montes de teorias
esquisitas que cheguei à ideia de escrever O cemitério de Praga.
ÉPOCA - Entre essas teorias,
destaca-se a mais célebre das falsificações, O protocolo dos sábios de Sião.
Por que o senhor se debruçou sobre um documento tão revoltante para fazer
ficção?
Eco - Eu queria investigar como
os europeus civilizados se esforçaram em construir inimigos invisíveis no
século XIX. E o inimigo sempre figura como uma espécie de monstro: tem de ser
repugnante, feio e malcheiroso. De alguma forma, o que causa repulsa no inimigo
é algo que faz parte de nós. Foi essa ambivalência que persegui em O cemitério
de Praga. Nada mais exemplar que a elaboração das teorias antissemitas, que
viriam a desembocar no nazismo do século XX. Em pesquisas, em arquivos e na
internet, constatei que o antissemitismo tem origem religiosa, deriva para o
discurso de esquerda e, finalmente, dá uma guinada à direita para se tornar a
prioridade da ideologia nacional-socialista. Começou na Idade Média a partir de
uma visão cristã e religiosa. Os judeus eram estigmatizados como os assassinos
de Jesus. Essa visão chegou ao ápice com Lutero. Ele pregava que os judeus
fossem banidos. Os jesuítas também tiveram seu papel. No século XIX, os judeus,
aparentemente integrados à Europa, começaram a ser satanizados por sua riqueza.
A família de banqueiros Rotschild, estabelecida em Paris, virou um alvo do
rancor social e dos pregadores socialistas. Descobri os textos de Léo Taxil,
discípulo do socialista utópico Fourier. Ele inaugurou uma série de teorias
sobre a conspiração judaica e capitalista internacional que resultaria em Os
protocolos dos sábios do Sião, texto forjado em 1897 pela polícia secreta do
czar Nicolau II.
ÉPOCA - O senhor considera os
Procotolos uma das fontes do nazismo?
Eco - Sem dúvida. Adolf Hitler,
em sua autobiografia, Minha luta, dava como legítimo o texto dos Protocolos.
Hitler tomou como verdadeira uma falsificação das mais grosseiras, e essa
mentira constitui um dos fundamentos do nazismo. A raiz do antissemitismo vem
de muito antes, de uma construção do inimigo, que partiu de delírios e
paranoias.
ÉPOCA - O personagem de O
cemitério de Praga, Simone Simonini, parece concentrar todos os preconceitos e
delírios europeus do século XIX. Ele é ao mesmo tempo antissemita,
anticlerical, anticapitalicas e antissocialista. Como surgiu na sua mente
alguém tão abominável?
Eco - Os críticos disseram que
Simonini é o personagem mais horroroso da literatura de todos os tempos, e devo
concordar com eles. Ele também é muito divertido. Seus excessos estão ali para
provocar riso e revolta. No romance, Simonini é a única figura fictícia. Guarda
todos os preconceitos e fantasias sobre um inimigo que jamais conhece. E se
desdobra em várias personalidades: durante o dia, atua como tabelião
falsificador de documentos; à noite, traveste-se em falso padre jesuíta e sai
atrás de aventuras sinistras. Acaba virando joguete dos monarquistas, que se
opõem à unificação da Itália, e, por fim, dos russos. Imaginei Simonini como um
dos autores de Os protocolos dos sábios do Sião.
ÉPOCA - A falsificação sobre
falsificações permitida pela ficção tornou o livro controverso. Ele tem
provocado reações negativas. O senhor gosta de lidar com polêmicas?
Eco - A recepção tem sido
positiva. O livro tem feito sucesso sem precisar de polêmicas. Quando foi
lançado na Itália, ele gerou alguma discussão. O L'osservatore Romano, órgão
oficial do Vaticano, publicou um artigo condenando os ataques do livro aos
jesuítas. Não respondi, porque sou conhecido como um intelectual anticlerical -
e já havia discutido com a igreja católica no tempo de O nome da rosa, quando
me acusaram de atacar a igreja. O rabino de Roma leu O cemitério de Praga e
advertiu em um pronunciamento que as teorias contidas no livro poderiam se
tornar novamente populares a partir da obra. Respondi a ele que não havia esse
perigo. Ao contrário, se Simonini serve para alguma coisa, é para provocar
nossa indignação.
ÉPOCA - Além de falsário,
Simonini se revela um gourmet. Ao longo do livro, o senhor joga listas e listas
de receitas as mais extravagantes, que Simonini comenta com volúpia. O senhor
gosta de gastronomia?
Eco - Eu sou MacDonald's! Nunca
me incomodei com detalhes de comida. Pesquisei receitas antigas com um objetivo
preciso: causar repugnância no leitor. A gastronomia é um dado negativo na
composição do personagem. Quando Simonini discorre sobre pratos esquisitos, o
leitor deve sentir o estômago revirado.
ÉPOCA - Qual o sentido de
escrever romances hoje em dia? O que o atrai no gênero?
Eco - Faz todo o sentido
escrever ficção. Não vejo como fazer hoje narrativa experimental, como James
Joyce fez com Finnegan's Wake, para mim a fronteira final da experimentação.
Houve um recuo para a narrativa linear e clássica. Comecei a escrever ficção
nesse contexto de restauração da narratividade, chamado de pós-modernismo. Sou
considerado um autor pós-moderno, e concordo com isso. Vasculho as formas e
artifícios do romance tradicional. Só que procuro introduzir temas que possam
intrigar o leitor: a teoria da comédia perdida de Aristóteles em O nome da
rosa; as conspirações maçônicas em O pêndulo de Foucault; a imaginação medieval
em Baudolino; a memória e os quadrinhos em A misteriosa chama; a construção do
antissemitismo em O cemitério de Praga. O romance é a realização maior da
narratividade. E a narratividade conserva o mito arcaico, base de nossa
cultura. Contar uma história que emocione e transforme quem a absorve é algo
que se passa com a mãe e seu filho, o romancista e seu leitor, o cineasta e seu
espectador. A força da narrativa é mais efetiva do que qualquer tecnologia.
ÉPOCA - Philip Roth disse que a
literatura morreu. Qual a sua opinião sobre os apocalípticos que preveem a
morte da literatura?
Eco - Philip Roth é um grande
escritor. A contar com ele, a literatura não vai morrer tão cedo. Ele publica
um romance por ano, e sempre de boa qualidade. Não me parece que nem o romance
nem ele pretendem interromper a carreira (risos).
ÉPOCA - Mas por que hoje não
aparecem romancistas do porte de Liev Tolstói e Gustave Flaubert?
Eco - Talvez porque ainda não
os descobrimos. Nada acontece imediatamente na literatura. É preciso esperar um
pouco. Devem certamente existir Tolstóis e Flauberts por aí. E têm surgido
ótimos ficcionistas em toda parte.
ÉPOCA - Como o senhor analisa a
literatura contemporânea?
Eco - Há bons autores medianos
na Itália. Nada de genial, mas têm saído livros interessantes de autores
bastante promissores. Hoje existe o thriller italiano, com os romances de
suspense de Andrea Camilleri e seus discípulos. No entanto, um signo do abalo
econômico italiano é que é mais possível um romancista viver de sua obra
literária, como fazia (Alberto) Moravia. Hoje romance virou uma atividade
diletante. É diferente do que ocorre nos Estados Unidos, aindaum polo emissor
de ótima ficção e da profissionalização dos escritores. Além dos livros de Roth,
adorei ler Liberdade, de Jonathan Franzen, um romance de corte clássico e
repleto de referências culturais. A França, infelizmente, experimenta uma certa
decadência literária, e nada de bom apareceu nos últimos tempos. O mesmo parece
se passar com a América Latina. Já vão longe os tempos do realismo fantástico
de García Márquez e Jorge Luis Borges. Nada tem vindo de lá que me pareça digno
de nota.
ÉPOCA - E a literatura
brasileira? Que impressões o senhor tem do Brasil? O país lhe parece mais
interessante hoje do que há 30 anos?
Eco - O Brasil é um país
incrivelmente dinâmico. Visitei o Brasil há muito tempo, agora acompanho de
longe as notícias sobre o país. A primeira vez foi em 1966. Foi quando visitei
terreiros de umbanda e candomblé - e mais tarde usei essa experiência em um
capítulo de O pêndulo de Foucault para descrever um ritual de candomblé. Quando
voltei em 1978, tudo já havia mudado, as cidades já não pareciam as mesmas.
Imagino que hoje em dia o Brasil esteja completamente transformado. Não tenho
acompanhado nada do que se faz por lá em literatura. Eu era amigo do poeta
Haroldo de Campos, um grande erudito e tradutor. Gostaria de voltar, tenho
muitos convites, mas agora ando muito ocupado... comigo mesmo.
ÉPOCA - O senhor foi o criador
do suspense erudito. O modelo é ainda válido?
Eco - Em O nome da Rosa,
consegui juntar erudição e romance de suspense. Inventei o investigador-frade
William de Baskerville, baseado em Sherlock Holmes de Conan Dolyle, um
bibliotecário cego inspirado em Jorge Luis Borges, e fui muito criticado porque
Jorge de Burgos, o personagem, revela-se um vilão. De qualquer forma, o livro
foi um sucesso e ajudou a criar um tipo de literatura que vejo com bons olhos
Sim, há muita coisa boa sendo feita. Gosto de (Arturo) Pérez-Reverte, com seus
livros de fantasia que lembram os romances de aventura de Alexandre Dumas e
Emilio Salgari que eu lia quando menino.
ÉPOCA - Lendo seus seguidores,
como Dan Brown, o senhor às vezes não se arrepende de ter criado o suspense
erudito?
Eco - Às vezes, sim! (risos) O
Dan Brown me irrita porque ele parece um personagem inventado por mim. Em vez
de ele compreender que as teorias conspiratórias são falsas, Brown as assume
como verdadeiras, ficando ao lado do personagem, sem questionar nada. É o que
ele faz em O Código Da Vinci. É o mesmo contexto de O pêndulo de Foucault. Mas
ele parece ter adotado a história para simplificá-la. Isso provoca ondas de
mistificação. Há leitores que acreditam em tudo o que Dan Brown escreve - e não
posso condená-los.
ÉPOCA - O que vem antes na sua
obra, a teoria ou a ficção?
Eco - Não há um caminho único.
Eu tanto posso escrever um romance a partir de uma pesquisa ou um ensaio que eu
tenha feito. Foi o caso de O pêndulo de Foucault, que nasceu de uma teoria.
Baudolino resultou de ideias que elaborei em torno da falsificação. Ou
vice-versa. Depois de escrever O cemitério de Praga, me veio a ideia de
elaborar uma teoria, que resultou no livro Costruire il Nemico (Construir o
Inimigo, lançado em maio de 2011). E nada impede que uma teoria nascida de uma
obra de ficção redunde em outra ficção.
ÉPOCA - Quando escreve, o
senhor tem um método ou uma superstição?
Eco - Não tenho nenhum método.
Não sou com Alberto Moravia, que acordava às 8h, trabalhava até o meio-dia, almoçava,
e depois voltava para a escrivaninha. Escrevo ficção sempre que me dá prazer,
sem observar horários e metodologias. Adoro escrever por escrever, em qualquer
meio, do lápis ao computador. Quando elaboro textos acadêmicos ou ensaio,
preciso me concentrar, mas não o faço por método.
ÉPOCA - Como o senhor analisa a
crise econômica italiana? Existe uma crise moral que acompanha o processo de
decadência cultural? A Itália vai acabar?
Eco - Não sou economista para
responder à pergunta. Não sei por que vocês jornalistas estão sempre fazendo
perguntas (risos). Talvez porque eu tenha sido um crítico do governo Silvio
Berlusconi nesses anos todos, nos meus artigos de jornal, não é mesmo? Bom, a
Itália vive uma crise econômica sem precedentes. Nos anos Berlusconi, desde
2001, os italianos viveram uma fantasia, que conduziu à decadência moral. Os
pais sonhavam com que as filhas frequentassem as orgias de Berlusconi para
assim se tornarem estrela da televisão. Isso tinha de parar, acho que agora
todos se deram conta dos excessos. A Itália continua a existir, apesar de
Berlusconi.
ÉPOCA - O senhor está confiante
com a junção Merkozy (Nicolas Sarkozy e Angela Merkel) e a ascensão dos
tecnocratas, como Mario Monti como primeiro ministro da Itália?
Eco - Se não há outra forma de
governar a zona do Euro, o que fazer? Merkel tem o encargo, mas também sofre
pressões em seu país, para que deixe de apoiar países em dificuldades. A
ascensão de Monti marca a chegada dos tecnocratas ao poder. E de fato é hora de
tomar medidas duras e impopulares que só tecnocratas como Monti, que não se
preocupa com eleição, podem tomar, como o corte nas aposentadorias e outros
privilégios.
ÉPOCA - O que o senhor faz no
tempo livre?
Eco - Coleciono livros e ouço
música pela internet. Tenho encontrado ótimas rádios virtuais. Estou encantado
com uma emissora que só transmite música coral. Eu toco flauta doce (mostra
cinco flautas de variados tamanhos), mas não tenho tido tempo para praticar.
Gosto de brincar com meus netos, uma menina e um menino.
ÉPOCA - Os 80 anos também são
uma ocasião para pensar na cidade natal. Como é sua ligação com Alessandria?
Eco - Não é difícil voltar para
lá, porque Alessandria fica a uns 100 quilômetros de Milão. Aliás foi um dos
motivos que escolhi morar por aqui: é perto de Bolonha e de Alessandria. Quando
volto, sou recebido como uma celebridade. Eu e o chapéu Borsalino, somos
produção de Alessandria! Reencontro velhos amigos no clube da cidade, sou
homenageado, bato muito papo. Não tenho mais parentes próximos. É sempre
emocionante.