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segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Dossiê Canudos(5): Sobrevivência na tela

 Ficção e documentário, dois filmes são exemplos de como o cinema impediu que a destruição de Canudos significasse esquecimento
                       *Sérgio Armando Diniz Guerra   
Cadáveres expostos nas ruínas de Canudos (foto: Flávio de Barros)
Quando as tropas militares dispararam os últimos tiros contra o arraial liderado por Antônio Conselheiro, Canudos estava arrasado. Mas simbolicamente tudo continuou bem vivo: décadas depois daquele sangrento episódio, o beato e seu povo permaneceram ressoando na memória e nos estudos de muita gente. São incontáveis as obras que surgiram sobre o tema. Entre elas estão dois filmes que merecem ser vistos e discutidos por conterem elementos fundamentais para um melhor entendimento daquele universo de confronto: Guerra de Canudos, de Sérgio Resende, e Paixão e Guerra no Sertão de Canudos, de Antônio Olavo.
Ambas as produções nasceram quase um século após a queda do vilarejo baiano. E trazem, cada uma, suas próprias técnicas narrativas, suas visões de mundo, seus objetivos, interesses e compromissos. Enquanto o filme de Resende, lançado em 1997, é um longa de ficção, Olavo reconstrói a história por meio de um documentário que veio a público em 1993.
Em Guerra de Canudos, o diretor aproveita a vida de seus personagens para contar o drama que também ficou imortalizado em Os Sertões (1902), clássico da literatura nacional produzido por Euclides da Cunha. Ao longo do filme, trechos bastante conhecidos do livro são citados, além de outros documentos do escritor, como a famosa “Caderneta de Campo” – com breves observações e ricas reproduções de fragmentos – e até um “ABC”, integralmente copiado.
Levar para os cinemas a história de Canudos não saiu barato. Para que a produção milionária pudesse se tornar realidade, Sérgio Resende contou com fortes apoios financeiros, que vieram de patrocínios dos órgãos públicos e de empresas privadas. O resultado foi uma belíssima reconstrução daquela guerra, que contou com a contratação de renomados técnicos – havia, inclusive, um profissional de Hollywood – e artistas famosos do cinema, do teatro e da televisão nacional.
Uma cidade cenográfica foi erguida na região, conferindo ao longa um elevado nível de fidedignidade técnica e profissional. Assim como na vida real, terminou absolutamente destruída após a Guerra. Além dos atores famosos, como José Wilker, Marieta Severo e Cláudia Abreu, centenas de artistas locais foram escalados para interpretar os habitantes da cidade. Do início ao fim, reviveram a violenta intervenção do Exército nacional, apoiado por inúmeros batalhões de polícias militares de vários estados brasileiros. Quase cem anos depois da guerra, as câmeras lideradas por Sérgio Resende filmavam a reconstituição de uma vila que foi bombardeada, queimada, conquistada palmo a palmo e por fim devastada, para que sua imagem fosse definitivamente apagada de nossa história.
Isso, porém, não aconteceu, como pode ser visto em Paixão e Guerra nos Sertões de Canudos. No documentário, Antônio Olavo se baseia em depoimentos de vários estudiosos, além de conhecedores da vida e da obra de Antônio Conselheiro. Ele também entrevista populares, descendentes e familiares do beato, confrontando opiniões e aproveitando as posições contrárias para discutir os vários temas que escolheu, em rigorosa cronologia.
Para reconstruir a vida e os caminhos do líder religioso, Olavo mergulhou fundo: refez o percurso do Peregrino, viajando e filmando com sua equipe por mais de 2.400 quilômetros. Cruzou o interior dos sertões do Nordeste, foi até Salvador e Rio de Janeiro, recolhendo palavras, memórias e imagens de pesquisadores, acadêmicos, intelectuais, além de palácios e museus, todos rigorosamente autênticos para compor o seu roteiro.
Sem os recursos dos grandes patrocinadores, muito menos a garantia de exibição em uma extensa cadeia nacional de telecomunicações – o que lhe garantiria público e recursos – o diretor teve de contar com o voluntariado de amigos e apaixonados por aquela história. A equipe não só deixou de receber, como financiou suas próprias despesas, e alguns chegaram a dar contribuições para que o trabalho se realizasse, de maneira quase inteiramente artesanal. Prova de que, mesmo arrasado, o arraial de Canudos continua de pé na memória de muita gente.

*Sérgio Armando Diniz Guerra é professor aposentado de história da Rede Estadual de Educação da Bahia e da Universidade do Estado da Bahia. (Artigo publicado originalmente na Revista de História da Biblioteca Nacional  - dezembro de 2014)