Ficção e documentário, dois
filmes são exemplos de como o cinema impediu que a destruição de Canudos
significasse esquecimento
*Sérgio Armando Diniz Guerra
Cadáveres expostos nas ruínas de Canudos (foto: Flávio de Barros) |
Quando as tropas militares
dispararam os últimos tiros contra o arraial liderado por Antônio Conselheiro,
Canudos estava arrasado. Mas simbolicamente tudo continuou bem vivo: décadas
depois daquele sangrento episódio, o beato e seu povo permaneceram ressoando na
memória e nos estudos de muita gente. São incontáveis as obras que surgiram
sobre o tema. Entre elas estão dois filmes que merecem ser vistos e discutidos
por conterem elementos fundamentais para um melhor entendimento daquele
universo de confronto: Guerra de Canudos, de Sérgio Resende, e Paixão e Guerra
no Sertão de Canudos, de Antônio Olavo.
Ambas as produções nasceram
quase um século após a queda do vilarejo baiano. E trazem, cada uma, suas
próprias técnicas narrativas, suas visões de mundo, seus objetivos, interesses
e compromissos. Enquanto o filme de Resende, lançado em 1997, é um longa de
ficção, Olavo reconstrói a história por meio de um documentário que veio a
público em 1993.
Em Guerra de Canudos, o diretor
aproveita a vida de seus personagens para contar o drama que também ficou
imortalizado em Os Sertões (1902), clássico da literatura nacional produzido
por Euclides da Cunha. Ao longo do filme, trechos bastante conhecidos do livro
são citados, além de outros documentos do escritor, como a famosa “Caderneta de
Campo” – com breves observações e ricas reproduções de fragmentos – e até um
“ABC”, integralmente copiado.
Levar para os cinemas a história
de Canudos não saiu barato. Para que a produção milionária pudesse se tornar
realidade, Sérgio Resende contou com fortes apoios financeiros, que vieram de
patrocínios dos órgãos públicos e de empresas privadas. O resultado foi uma
belíssima reconstrução daquela guerra, que contou com a contratação de
renomados técnicos – havia, inclusive, um profissional de Hollywood – e
artistas famosos do cinema, do teatro e da televisão nacional.
Uma cidade cenográfica foi
erguida na região, conferindo ao longa um elevado nível de fidedignidade
técnica e profissional. Assim como na vida real, terminou absolutamente
destruída após a Guerra. Além dos atores famosos, como José Wilker, Marieta
Severo e Cláudia Abreu, centenas de artistas locais foram escalados para
interpretar os habitantes da cidade. Do início ao fim, reviveram a violenta
intervenção do Exército nacional, apoiado por inúmeros batalhões de polícias
militares de vários estados brasileiros. Quase cem anos depois da guerra, as
câmeras lideradas por Sérgio Resende filmavam a reconstituição de uma vila que
foi bombardeada, queimada, conquistada palmo a palmo e por fim devastada, para
que sua imagem fosse definitivamente apagada de nossa história.
Isso, porém, não aconteceu, como
pode ser visto em Paixão e Guerra nos Sertões de Canudos. No documentário,
Antônio Olavo se baseia em depoimentos de vários estudiosos, além de
conhecedores da vida e da obra de Antônio Conselheiro. Ele também entrevista
populares, descendentes e familiares do beato, confrontando opiniões e
aproveitando as posições contrárias para discutir os vários temas que escolheu,
em rigorosa cronologia.
Para reconstruir a vida e os
caminhos do líder religioso, Olavo mergulhou fundo: refez o percurso do
Peregrino, viajando e filmando com sua equipe por mais de 2.400 quilômetros.
Cruzou o interior dos sertões do Nordeste, foi até Salvador e Rio de Janeiro, recolhendo
palavras, memórias e imagens de pesquisadores, acadêmicos, intelectuais, além
de palácios e museus, todos rigorosamente autênticos para compor o seu roteiro.
Sem os recursos dos grandes
patrocinadores, muito menos a garantia de exibição em uma extensa cadeia
nacional de telecomunicações – o que lhe garantiria público e recursos – o
diretor teve de contar com o voluntariado de amigos e apaixonados por aquela
história. A equipe não só deixou de receber, como financiou suas próprias
despesas, e alguns chegaram a dar contribuições para que o trabalho se
realizasse, de maneira quase inteiramente artesanal. Prova de que, mesmo
arrasado, o arraial de Canudos continua de pé na memória de muita gente.
*Sérgio Armando Diniz Guerra é
professor aposentado de história da Rede Estadual de Educação da Bahia e da
Universidade do Estado da Bahia. (Artigo publicado originalmente na Revista de
História da Biblioteca Nacional -
dezembro de 2014)