A expressão serena do morto intriga os cientistas até hoje. |
Texto e fotos de Johnny
Mazzilli – Revista PLANETA – edição 474
No ano 350 a.C., o homem de
Tollund foi enforcado e enterrado num pântano da Jutlândia, na Dinamarca. Em
1950, seu corpo foi encontrado incrivelmente preservado, graças ao solo ácido e
à falta de oxigênio da água. Depois de muito estudá-lo, cientistas, agindo como
detetives, fizeram descobertas intrigantes.
Os Homens de Tollund, de
Grauballe, de Barremose e de Raevemosen. Mulheres de Elling, de Haraldskær e de
Yde. Cada um desses corpos é um testemunho silencioso de histórias de vida e
morte intrigantes ainda não desvendadas. Dezenas de cientistas se debruçaram
sobre eles em busca de respostas que surgem precárias e fragmentadas, como
retalhos da colcha do passado. Mas, pouco a pouco, um vislumbre de como se
vivia e morria em tempos heroicos, na Dinamarca, aparece.
Nas planícies da Península da
Jutlândia abundam solos de turfa resultante da decomposição de musgo, junco e
arbustos, geralmente em áreas saturadas de água. Dois tipos de musgo, o
Sphagnum e o Hypnum, crescem em ecossistemas ácidos e encharcados, como os
pântanos. No passado, a turfa seca era usada como combustível. Cortada nos
pântanos, era queimada em lareiras e fogões, aquecendo as casas e cozinhando os
alimentos.
Em 6 de maio de 1950, os irmãos
agricultores Emil e Viggo Hojgard (pronuncia-se Rôigord), após semearem uma
lavoura, foram ao Pântano Bjaeldskov, localizado a 6 km da pequena cidade de
Silkeborg, para cortar turfa para suas casas. Ao cavar o terreno arenoso e
macio, a pá de Viggo bateu em algo duro. Removida a turfa, descobriu-se o corpo
de um homem estrangulado por uma corda, cuja preservação induziu os irmãos a
imaginar um assassinato recente. A polícia, entretanto, já tinha conhecimento
do aparecimento de vários corpos semelhantes na área, no passado, e levou um
arqueólogo ao local.
À direita, o cadáver nu, com gorro, corda no pescoço e cinto de couro. À esquerda, um pântano de turfa. |
Assim, foi descoberto o corpo
pré-histórico mais preservado que existe. Os exames da datação do carbono-14
revelaram que ele vivera por volta do ano 350 a.C. e morrera com
aproximadamente 40 anos, durante a Idade do Ferro das tribos celtas da Europa
Central. Tinha 1,61 metro de altura, cabelos ruivos e estava nu, apesar de
vestir um gorro e ter um cinto de couro de 77 centímetros de comprimento em
volta da cintura.
O homem de Tollund ganhou esse
nome em homenagem à vila onde os irmãos Hojgard viviam. Em torno de seu pescoço
havia um sulco profundo e uma corda de couro trançado – usada no enforcamento.
Na cabeça usava um gorro de couro de ovelha em ótimas condições, forrado de lã
no interior. A serenidade da face e o excepcional estado de conservação
tornaram-no uma celebridade instantânea no jet set dos corpos da turfa.
Sob o corpo havia uma fina
camada de musgo. Pela sua posição, concluiu-se que fora cuidadosamente
depositado na turfeira, há dois mil anos. A autópsia e os exames realizados no
Hospital Bispebjerg e no Museu Nacional da Dinamarca mostraram que a cabeça e
os órgãos internos encontravam-se intactos. O estômago e os intestinos
revelaram uma última refeição: sopa de legumes, com grãos de cevada, 30 tipos
de semente de espécies cultivadas e selvagens e várias ervas daninhas. A presença
do alimento no intestino grosso indica que foi consumido entre 12 e 24 horas
antes da morte. De posse da lista de ingredientes, os arqueólogos chegaram a
reproduzir a sopa, mas o gosto não agradou.
Em 1938, 12 anos antes, outro
corpo fora descoberto a apenas 80 metros de distância – a mulher de Elling. Sua
preservação, entretanto, resultara precária; apenas o cabelo e o penteado
estavam intactos. Assim como o homem de Tollund e quase todos os corpos
encontrados nas turfeiras, a mulher de Elling tinha cabelos avermelhados, não
por ser ruiva, mas porque a acidez do pântano descoloriu-os. Exames realizados
em 1976 revelaram que a moça tinha cerca de 25 anos e apresentava um sulco
visível ao redor do pescoço. Ao lado do corpo, havia uma corda curta de couro
trançado. Tal como o homem de Tollund, morrera por enforcamento.
Chegaram a pensar que o crime tinha sido recente |
As condições físico-químicas da
turfa preservam a pele e os órgãos internos graças à água altamente ácida, fria
e pobre em oxigênio, quase anaeróbica – hostil ao desenvolvimento de bactérias.
No entanto, os ossos resistem menos, pois a acidez dissolve o fosfato de cálcio
da estrutura. Ao longo dos séculos essas condições também enegreceram os
corpos. A prolongada imersão ainda eliminou a possibilidade de um exame de DNA.
Diversos estudos continuam sendo realizados nos corpos da turfa, mas nunca foi
feito um teste de DNA nos cadáveres que já foram descobertos na Irlanda, no
Reino Unido, na Holanda, na Alemanha e na Suécia.
Até 1965, nada menos do que 1,8
mil corpos já haviam sido descobertos em pântanos da Europa Setentrional. Na
época, muitos recursos de pesquisa de hoje estavam longe de existir. Parte dos
corpos era formada por apenas fragmentos, muitos dos quais, uma vez retirados
dos pântanos, rapidamente se deterioraram. Parte do material foi catalogada,
muita coisa se perdeu e poucos cadáveres – só os mais bem preservados – se
tornaram objetos de interesse e ganharam notoriedade.
Nos pântanos da Jutlândia, os
corpos mostram sinais de terem sido executados por enforcamento e depositados
na turfa, e sua datação é parecida. Os arqueólogos acreditam que se trata de
vítimas de sacrifícios humanos na época do paganismo germânico politeísta,
durante a Idade do Ferro, que durou de 500 a.C. até o ano 800 d.C. As turfeiras
eram lugares de contato e de sacrifício aos deuses.
Depois de executado, o homem de
Tollund não foi abandonado ao ar livre ou atirado em uma vala, tratamento dado
a criminosos e a inimigos, mas, sim, colocado no lugar onde foi enterrado,
junto com a corda arrumada em espiral. Os olhos e a boca foram cerrados como se
dormisse. A língua, entretanto, estava distendida – sinal de enforcamento.
Aparentemente, foi morto no fim do inverno ou no começo da primavera, sugerem
os ingredientes encontrados em seu estômago. Nessa época os sacrifícios eram
associados à deusa da primavera, Ostera, no paganismo germânico. Só os melhores
homens eram destinados aos deuses.
Anos de investigação permitiram aos cientistas reconstituir a história do homem de Tollund. |
Não há registros escritos desse
tempo. Mas quatro séculos depois, o escritor romano Cornélio Tácito coletou
relatos de mercadores que viajaram pelo norte e contaram que as tribos
escandinavas costumavam “enforcar em árvores traidores e renegados, que eram
afundados no pântano e cobertos de gravetos”. Outras, “como a tribo dos
semnonanos, do norte da Alemanha, sacrificavam homens aos deuses por
enforcamento”. Um bracelete de prata encontrado com o corpo do homem de Raevemosen
– o famoso Gundestrupkarret – retrata uma cena de sacrifício, ocorrida na mesma
época do homem de Tollund, em que uma vítima é jogada em um tonel. O gorro
pontudo de couro de ovelha parece ser o mesmo.
Após os exames, o homem de
Tollund, que ficara dois milênios imerso em ambiente anaeróbico, foi trazido a
um ambiente aeróbico povoado por bactérias e logo começou a se decompor. Como a
cabeça e os pés eram as partes mais preservadas, os cientistas decidiram se
concentrar na sua conservação. O restante do corpo foi desidratado e armazenado em uma câmara fria do Museu Nacional, em Copenhague. Uma réplica do corpo foi montada com as partes verdadeiras – a cabeça, a corda do enforcamento, o gorro e os pés – e pode ser vista no Museu de Silkeborg, na cidade homônima. Já o homem de Grauballe, outra celebridade oriunda dos pântanos bem preservada pela turfeira do norte da Jutlândia, teve sua garganta cortada no século 3 a.C. Ao contrário da serenidade facial do homem de Tollund, que parece dormir o sono tranquilo dos justos, um enorme talho na garganta e uma expressão atormentada na face parecem revelar a agonia de seus momentos finais. Sobre ele o poeta irlandês Seamus Heaney escreveu um poema que diz: “Como se tivesse sido derramado/ Em alcatrão ele jaz/ Em um travesseiro de turfa/ Parece chorar/ O rio negro de si próprio.”