A meca dos historiadores
brasileiros é um edifício moderno que abriga, desde 1990, o arquivo da Torre do
Tombo, em Lisboa. Nos seus 140 quilômetros de prateleiras há documentos que
recuam até o ano 882.
Texto Maria da Paz Trefaut – da
revista PLANETA – edição 472
A nova sede da Torre do Tombo, na Cidade Universitária de Lisboa. No detalhe, duas das gárgulas criadas pelo escultor José Manuel Aurélio, que sobressaem da fachada. |
Em um prédio modernista de
formas retilíneas, na Cidade Universitária de Lisboa, Portugal preserva parte
expressiva da sua história, do Brasil e de suas ex-colônias. Ali funciona a
Torre do Tombo, onde estão guardados os originais de documentos preciosos como
a carta de Pero Vaz de Caminha sobre o “achamento” do Brasil e o Tratado de Tordesilhas,
celebrado em 1494 entre portugueses e espanhóis.
Com uma área de 54.900 metros
quadrados, o espaço reúne três áreas: arquivo e investigação, eventos culturais
e setor administrativo. Milhares de volumes se espalham por quatro pisos com
capacidade para 140 quilômetros de prateleiras. Aí estão mil coleções
documentais de origem pública e privada e 50 coleções de documentos relevantes
para o estudo da história comum dos países colonizados por Portugal: Brasil,
Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste
e as possessões de Macau (China), Goa, Damão, Diu e Cochim (Índia).
O edifício foi aberto ao
público em 1990, pondo fim a séculos de romaria do arquivo por sedes
improvisadas – mas não se parece em nada com uma torre. A Torre do Tombo
original ruiu no terremoto que destruiu Lisboa parcialmente, em novembro de
1755. Parte da documentação foi recolhida dos escombros e guardada num barraco
de madeira, construído por ordem do Marquês de Pombal. Mas só em 1901 o acesso
público aos documentos começou a ser liberado a pesquisadores.
Algumas peças de extremo valor,
como a carta escrita por Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Cabral, em
1500, ao rei Dom Manuel I, não estão disponíveis para conferência. O arquivo
não é um local de turismo, mas de pesquisa acadêmica e profissional. O
documento escrito por Caminha está no cofre-forte e não vai para a sala de
leitura, mas já foi digitalizado. Só aparece em exposições especiais, como a
que comemorou os 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, em abril de
2000. “É uma peça que sai daqui sempre cercada de muito cuidado, pois precisa
de controle constante de umidade e temperatura”, explica o diretor-geral da Torre
do Tombo, Silvestre Lacerda.
Peregrinação histórica
Muitos historiadores
brasileiros frequentaram a antiga sede do Arquivo Nacional, antes da sua
transferência para o prédio novo. De 1861 até 1990, os arquivos funcionaram
numa ala do Mosteiro de São Bento, no bairro da Estrela, em um anexo da
Assembleia da República, o Parlamento português. Ali fizeram pesquisas autores
antigos e modernos como Capistrano de Abreu, Fernando Novais, Evaldo Cabral de
Mello, Carlos Guilherme Mota, Luiz Felipe de Alencastro e muitos outros.
As antigas salas de pesquisa da Torre, no Mosteiro de São Bento. |
O jornalista Alberto Dines
conheceu as duas sedes, a antiga e a nova. Entre 1988 e 1989 passou um ano indo
ao mosteiro todos os dias, pesquisando para o livro Vínculos do Fogo – Antônio
José da Silva, o Judeu, e Outras Histórias da Inquisição em Portugal e no
Brasil, editado em ambos os países. O personagem em questão foi uma das mais
famosas vítimas da Inquisição portuguesa, e a Torre do Tombo guardava um
material inestimável sobre ele. “As condições de trabalho eram precariíssimas.
Havia apenas 12 mesas e era preciso chegar muito cedo ao arquivo para reservar
uma pesquisa”, relembra.
No fim dos anos 1980 os
documentos ainda não estavam digitalizados. “Era preciso pedir os antigos
‘ficheiros’ (pastas) e romper a barreira da compreensão entre portugueses e
brasileiros para encontrar o que se queria. Aí, quando você abria, os bichinhos
do papel vinham junto”, conta Dines. “Mas havia um grande prazer no manuseio
físico, em pôr as mãos no documento.” O jornalista vasculhou 300 processos
inquisitoriais em busca frenética, com pequenos intervalos para almoço, na
lanchonete da Torre, onde o cardápio não ia além de sanduíches “de péssima
qualidade”.
A historiadora Lilia Schwarcz pesquisou no arquivo em 2001. |
Quando o arquivo foi
transferido para o prédio moderno, na Cidade Universitária, a situação mudou do
dia para a noite. “Em 1991, passamos a ter condições de primeiríssimo mundo.
Mas ainda sinto saudade do antigo, onde, literalmente, botava a mão na poeira
da história. Foram alguns dos anos mais felizes de minha vida, nos quais
vivenciei um prazer intelectual imenso”, rememora Dines.
Fora do mundo
Já a historiadora Lilia Moritz
Schwarcz frequentou apenas as novas instalações na Cidade Universitária, entre
2000 e 2001, quando reunia material para escrever A Longa Viagem da Biblioteca
dos Reis, editado pela Companhia das Letras. Nos dias que passou no arquivo
guardou a imagem da Torre do Tombo como uma superbiblioteca que oferece ótimas
condições para pesquisa. “É muito silenciosa, as mesas são espaçosas e cada um
tem sua lâmpada. É o paraíso para qualquer pesquisador”, afirma.
Silvestre Lacerda Diretor Geral da Torre do Tombo |
Lilia estava mergulhada no
passado num dia marcante da história contemporânea: 11 de setembro de 2001.
“Estava absorta e, como todos, meio fora do mundo e sem comunicação. Nesse dia
descobri um documento importantíssimo para a minha pesquisa, algo que só um
historiador acha relevante. Supunha-se que a biblioteca real tinha vindo com
Dom João VI para o Brasil, em 1808, e, naquela tarde, descobri um documento que
provava que os caixotes tinham ficado no cais de Lisboa. A biblioteca chegou a
ser dada como perdida.”
Ao sair da Torre, onde ficara
todo o dia sem almoçar, especulando sobre o passado, Lilia percebeu várias
ligações do marido, Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, registradas
no seu celular. “Quando liguei de volta, a primeira pergunta dele foi: ‘Você
viu?’ Eu estava tão imbuída da descoberta que respondi: ‘É mesmo, os documentos
não partiram.’ Só diante da perplexidade dele fiquei sabendo do ataque às
Torres Gêmeas, em Nova York, que mobilizava o mundo.”
Capa do livro de bens do Mosteiro de Seiça. |
A história da Torre do Tombo
remonta ao século 13, mas só aparece documentada em 1378, ano em que o Arquivo
Real foi instalado numa das torres do Castelo de São Jorge – cujas ruínas ainda
são referência na paisagem lisboeta. Essa é a origem do nome Torre do Tombo.
Ali permaneceu até o terremoto de 1755. Na época, era chamada de “Torre das
Escrituras”, porque guardava as memórias dos reis e do reino. Esses documentos,
que fazem parte do Arquivo da Casa da Coroa, são classificados, hoje, pela
Unesco como parte do registro da “Memória do Mundo”.
Carta do rei Dom Afonso Henriques, de 1129, na qual surge a palavra “Portugal” |
Sucessivos reinados e governos
mudaram seguidamente a hospedagem do arquivo, que atravessou a história de
Portugal como uma das suas instituições mais antigas – são 600 anos de
existência. No reinado de Dom Manuel I, “o Venturoso”, foram elaboradas cópias
de diversos documentos de difícil leitura, que estavam em mau estado de
conservação. Com o tempo, papéis de instituições extintas foram incorporados ao
patrimônio da casa. No século 19, a documentação que provinha dos cartórios das
igrejas e das corporações religiosas também entrou na Torre.
Gênese da língua
Assim, a partir de 1862, o
arquivo passou a deter a documentação mais antiga de Portugal, originária do
século 9. Seus papéis testemunham vivências e acontecimentos anteriores à
fundação da nacionalidade portuguesa, muito valorizados pelos linguistas como
fonte de estudo das origens da língua portuguesa e da escrita visigótica,
utilizada na Península Ibérica do século 8 ao 13.
A Torre do Tombo guarda, por
exemplo, um ofício de 28 de julho de 1129 no qual se registra pela primeira vez
a palavra “Portugal”. Seu documento mais antigo é a carta de fundação da Igreja
de Lardosa, nas proximidades da cidade do Porto, datada de 27 de junho de 882.
É claro que muita coisa se perdeu, pois o acervo foi prejudicado não só pelo
grande terremoto, mas por diversos incêndios e, ainda, pela atabalhoada
transferência da família real para o Brasil, em 1808, fugindo dos exércitos de
Napoleão.
Ao longo do tempo, o arquivo
histórico esteve subordinado a diferentes ministérios e instituições e passou
por problemas de manutenção, sucessivas crises econômicas e falta quantitativa
e qualitativa de pessoal especializado. Só a partir dos anos 1960 os cuidados
com o acervo e os serviços prestados à sociedade ganharam relevância e
profissionalismo. Nessa época iniciaram-se a ampliação da microfilmagem de
fotografias e livros, as visitas organizadas de estudo e as exposições de
documentos raros.
Com a modernização, muitos
documentos em formato de livro, caderneta ou “ficheiro”, como dizem os
portugueses, vêm sendo digitalizados. Hoje, o catálogo da torre apresenta
contínuo crescimento e as ferramentas da internet foram agregadas de forma a
permitir o acesso a uma porcentagem cada vez maior da documentação. Já existem
muitos papéis importantes disponíveis para download. Para quem quiser dar uma
olhada, basta entrar no site www.antt.dgarq. gov.pt, acessar “Pesquisar na
Torre do Tombo”, depois a página “Fundos e Colecções” e boa viagem.