Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou
mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um
romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O
Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago
Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois
documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br. Veja o artigo
publicado nesta segunda-feira (16).
A volta do Brasil Grande que pensa pequeno
Ao contar o passado, pela epopeia dos Irmãos Villas Bôas, o
filme “Xingu” ilumina o presente. E coloca a plateia diante de uma questão
atual e incômoda: omissão também é protagonismo
ELIANE BRUM – da revista ÉPOCA.
Xingu, o filme de Cao Hamburger, conta a saga dos três
irmãos Villas Bôas em seu confronto com o Brasil que não sabia que era Brasil.
Nos anos 1940, Orlando (Felipe Camargo), 27 anos, Cláudio (João Miguel), 25, e
Leonardo (Caio Blat), 23, mentiram que eram analfabetos sem profissão para se
alistar na Expedição Roncador-Xingu, que desbravaria o centro do país. O que
acontece a partir do momento em que três jovens de classe média partem em busca
de aventura e encontram de forma brutal não só uma outra civilização, mas
também a si mesmos, é História. E, infelizmente, uma história que vai sendo
esquecida. Mas, ao iluminar o passado, Xingu, o filme, ilumina Xingu, a vida. E
o ilumina para além do Parque Nacional do Xingu, o grande feito dos Irmãos
Villas Bôas, consumado em 1961. Ilumina com verdades suficientes para
questionar a plateia em outras verdades: por que permitimos, pela omissão da
maioria, que a faraônica obra de Belo Monte – aqui, agora – destrua uma das
maiores riquezas culturais e biológicas do planeta? Por que, em um governo dito
popular, se reedita o autoritarismo para impor um elefante branco da
democracia, com a nossa cumplicidade? A plateia que assiste ao filme precisa
responder, ao deixar a sala de cinema, a uma pergunta bem incômoda: por que, na
vida, não consegue deixar de ser plateia.
O filme termina
quando a Transamazônica começa a ser construída. Naquele momento, com uma
imprensa censurada pela ditadura e um país dominado pelo ufanismo do “Brasil
ame-o ou deixe-o”, do “Integrar para não Entregar”, do “Terra Sem Homens para
Homens Sem Terra” talvez só Orlando e Cláudio Villas Bôas – além do governo
militar e de seus apoiadores – eram capazes de compreender o que aconteceria
quando a estrada rasgasse a selva e literalmente a encharcasse de sangue. Hoje,
não. Nenhum de nós tem a desculpa de não saber o que já aconteceu. Nenhum de
nós tem a desculpa de ignorar a destruição da floresta e a matança de gente,
bicho, planta e cultura consumada no Brasil Grande da ditadura militar. Nenhum
de nós tem a desculpa de ignorar a ocupação incompetente e a trilha de mortes
que só faz aumentar. Não há desculpa para a ignorância do passado. E penso que
não há desculpa para a omissão no presente, diante do futuro.
Quando a Transamazônica se desenhava na tela, era Belo Monte
que estava bem ali. Assisti ao filme enxergando o presente, e não apenas o
passado – e por isso saí do cinema devastada. Vi o passado enxergando o
presente porque o passado tornou-se, de novo, presente. E é com esse presente
que temos o desafio de lidar. Quando a Transamazônica foi imposta pela ditadura
militar, boa parte dos vivos de hoje nem sequer tinha nascido ou ainda era
criança, como eu. Agora, não. Estamos todos aqui.
Conhecer a Amazônia exige um movimento – e um desejo maior.
Assistir ao filme é muito fácil. Se puderem, assistam ao Xingu e, na última
cena, uma das mais belas do nosso cinema, se enfiem na pele de um dos Irmãos
Villas Bôas e percebam que, querendo ou não, é diante desse olhar que nós todos
estamos – agora.
Acho que este é o mérito dos grandes filmes: não permitir
que nos instalemos no conforto eterno da poltrona de cinema. Tornar impossível
o pensamento comodista de que aquilo não nos diz respeito – seja porque já
aconteceu, seja porque é a dor de um outro muito diferente. Ou ainda porque não
nos convém – e nos acreditamos a salvo. E aqui não se trata da arte
utilitarista ou engajada, mas do fato de que os bons filmes, assim como a boa
literatura, nos confrontam com pessoas complexas num mundo complexo – e não
meros heróis em um mundo plano. Como quando Cláudio Villas Bôas diz, ao
perceber que, salvando, ele também destrói: “Somos o veneno e o antídoto”. Ou:
“Há uma coisa deles que morre pra sempre assim que a gente encosta”.
É por acolher o conflito que os bons filmes, mesmo que nos
contem de mundos e de gentes distantes, ecoam na vida de todos nós. Pescam
nossos demônios internos e os fazem dançar diante dos nossos olhos. Os bons
filmes, como os bons livros, nos transtornam por dentro, mesmo que ninguém
fique sabendo porque só a nós diz respeito; e nos transtornam de dentro para
fora, como neste caso, ao percebermos que a omissão também é um tipo de
protagonismo. Os bons filmes são como os bons governos: acolhem o conflito e
dialogam com o contraditório. Os maus filmes são como os maus governos: calam
os conflitos e chamam o contraditório de “fantasia”. Xingu é um bom filme.
Os realizadores de Xingu já tinham deixado explícita a
intenção de, ao contar a epopeia histórica dos Irmãos Villas Bôas, criar uma
oportunidade para pensar sobre os dilemas do Brasil atual. “Se o filme
conseguir trazer a história desses caras para uma discussão do futuro e do
presente seria muito legal. Apesar de ser um filme de época, é muito
contemporâneo. Uma das coisas que me encantaram nessa história foi essa
possibilidade de discutir coisas contemporâneas contando uma história do século
passado”, disse à imprensa Cao Hamburger, o diretor, durante o lançamento do
filme. E, em outro momento: “A ideia é que a gente repense a maneira como
somos. O que é o progresso hoje? Que crescimento a gente quer?”.
Também os atores, ao viverem o Xingu para encenar o Xingu,
confrontaram-se com os conflitos vividos por seus personagens – mas também os
incorporaram como cidadãos diante da experiência para além da filmagem. “Os
Villas Bôas fizeram uma previsão: que o encontro (entre brancos e índios) era
inevitável e a civilização ia chegar à fronteira do rio. E eles chamavam isso
de ‘abraço da morte’. De avião a gente vê claramente a devastação ao redor.
Então esse ‘abraço da morte’ chegou”, contou Caio Blat. “Não teve um dia de
filmagem que não vimos fumaça de queimada. Até o set queimou, a equipe toda
ajudou a apagar o fogo. E isso acontece sempre: aconteceu quando filmamos,
aconteceu no ano passado, vai acontecer este ano de novo”, afirmou Felipe
Camargo. “A ecologia não pode mais ser vista como uma coisa bonitinha, ‘vamos
preservar a natureza’. Não: vamos preservar a nossa vida.”
Ao refletir sobre a experiência de filmar Xingu no Xingu,
Cao Hamburger declarou: “Considero que essa cultura e essa filosofia de vida
deles não estão paradas no tempo, elas estão em desenvolvimento, como a nossa.
O que está me interessando muito é o que nós podemos aprender com essa cultura.
O Brasil tem um tesouro que faz questão de esconder e desprezar, e está
perdendo a oportunidade de absorver e aprender com eles. A cultura deles é
muito rica, muito sofisticada, e o Brasil tem muito a ganhar”.
O cineasta Fernando Meirelles, produtor do Xingu, foi
contundente em suas afirmações ao longo da série de entrevistas sobre o filme:
“O que eu acho que vale ressaltar do filme é como ele é atual. Vindo para cá,
eu li no jornal que o Megaron Txucarramãe, que era coordenador da Funai no
norte do Mato Grosso, tinha sido demitido porque tem uma posição contrária a
Belo Monte (outubro de 2011). É a história do filme, da Transamazônica, se
repetindo. O filme não poderia ser mais atual, nesse momento em que Belo Monte
e o Código Florestal são assuntos muito fortes”. E, mais tarde: “Eu,
pessoalmente, acho que Belo Monte é um dos maiores erros atuais. A gente está
construindo usinas basicamente para poder aumentar a produção de alumínio. Vai
comprometer toda aquela área pra produzir mais alumínio. É esse o progresso que
queremos?”.
Em outra manifestação, Fernando Meirelles foi ainda mais
direto: “A Transamazônica do filme é a Belo Monte de hoje. Aquele deputado de
terninho é a Kátia Abreu (senadora da bancada ruralista pelo PSD/TO). Isso está
muito claro”. No filme, há ainda um militar que é a cara desse governo no trato
de Belo Monte e das questões ambientais. Só não gritei – “Nossa, é a Dilma
Rousseff!” – porque faço uma campanha persistente pelo silêncio no cinema.
Quando Orlando Villas Bôas tenta explicar que a Transamazônica vai passar por
cima dos Kren Akarore, uma etnia isolada, o militar declara: “Limpe o caminho.
Mas tem que ser rápido”.
Há de se eliminar aquilo que “atravanca” o progresso ontem,
o desenvolvimento hoje – tirar da frente, custe o que custar. “Resolver”. E
rápido. Como a História mostrou, dos 600 Kren Akarore restaram 79 depois da
abertura da Transamazônica. Ou seja: o efeito da Transamazônica, apenas sobre uma
única etnia indígena, foi um genocídio de mais de 500 seres humanos. E a
Transamazônica até hoje é uma picada intrafegável boa parte do ano, apelidada
por onde passa de “Transamargura”. As obras de Belo Monte começaram – sem o
cumprimento das condicionantes ambientais – e o estrago já é visível.
Os índios recebem "o abraço da morte". |
Entre os desafios que um futuro biógrafo enfrentará ao
contar a vida e a obra de Dilma Rousseff está o seguinte paradoxo: como uma
mulher que entrou na clandestinidade, pegou em armas para lutar contra o
autoritarismo e pagou pela sua coerência o preço altíssimo de ter sido
torturada vira uma ministra, primeiro, uma presidente depois, que, em se
tratando de políticas para a Amazônia e o meio ambiente, incorpora – e o pior,
implanta – a mesma visão da ditadura militar que combateu. De novo, estamos de
volta ao Brasil Grande que pensa pequeno – mas em plena democracia e numa
imprensa sem censura oficial. Acho o paradoxo fascinante do ponto de vista
humano, mas um desastre para o país.
Talvez, hoje, a presidente Dilma Rousseff passasse um pito
na guerrilheira Dilma Rousseff: “Não há espaço para a fantasia”. E
imediatamente esquecesse que foi essa “fantasia” que tornou possível não só a
própria democracia, mas a ascensão de um operário à presidência do Brasil. E
também a tudo o que veio depois – inclusive ela. Foi essa mesma frase, em minha
opinião a mais infeliz de sua trajetória como presidente, possivelmente de sua
vida, que Dilma Rousseff declarou aos ambientalistas que combatem Belo Monte,
no início de abril, afirmando que não mudará sua política de “desenvolvimento”
para a Amazônia. O que nos faz concluir que, diante dos Irmãos Villas Bôas, os
indigenistas de ontem, Dilma Rousseff só poderia dizer o mesmo que diz para os
indigenistas de hoje: “Não há espaço para a fantasia”.
Cara presidente, se não existisse “fantasia” não existiria
humanidade – não existiria nem mesmo o conceito de nação. Como disse Fernando
Meirelles, no site da produtora O2 Filmes: “Sonhe um pouco, presidenta. Ou ao
menos escute o sonho dos que conseguem sonhar”.