Um conto de Landisvalth Lima
Logo após o casamento de Mariposa com Ratinho, o desejo do casal era logo ter um filho. Não demorou muito. Nasceu um menino de grandes bochechas e cara redonda. Na brincadeira, o pai colocou-lhe o apelido de Bundão. Antes de ser um palavrão e reflexo da cara enorme, Bundão passou a ser uma forma de carinho dos pais. Só não foi registrado com esse nome porque o Cartório de Registros não aceitou. Como poderia alguém ser chamado de Bundão Dado A. Silva. E este A era de Aniceto. O pai não gostava. Era herança do nome do avô. Onde já se viu alguém colocar como sobrenome Aniceto?
Fato é que Bundão era filho de Ratinho, na verdade Cosmenildo Dado Aniceto Silva, e de dona Mariposa, de nome real Cornélia Onorina Silva. O pai de Bundão tinha o nome de roedor porque nunca fez negócio sem deixar de tirar uma lasquinha. Adorava coisas dos outros e era fanático por queijo. Era sovina e detestava pobre. Seus amigos eram todos ricos e gostava de frequentar casamentos e batizados para não perder uma boquinha. Mariposa levou esta alcunha porque foi flagrada roubando a bolsa de uma senhora numa festa de casamento. Quando a vítima percebeu que era Cornélia a ladra, gritou. Desesperada, Mariposa jogou a sacola na luz da sala e saiu correndo. No outro dia era o comentário na cidade de Canaã e o apelido caiu como uma luva. Além disso, Mariposa alegou que sofria de uma séria doença: cleptomania!
Um dia, um deputado fez uma proposta a Ratinho para ser o prefeito de Canaã. Eram dois milhões para ganhar as eleições. Em troca, apoiaria os nomes que ele indicasse, inclusive para os cargos da cidade, e teria vasto controle sobre a administração. Ratinho aceitou e venceu as eleições. Durante todo o período do mandato, exerceu com afinco as funções inerentes ao seu nome: desvios de verbas, aditivos fraudulentos, achatamento de salários dos servidores, notas fiscais frias... Nunca se havia roubado tanto na história administrativa da pacata e ordeira Canaã. Todos, no entanto, sabiam: Ratinho era o maior ladrão de todos.
Enquanto isso, Mariposa desfilava com carro novo, joias e penduricalhos, e pousava de Rainha de Canaã. Mandava e desmandava. Era dona de todas as suas vontades e o povo tinha que fazer reverência a ela. Lamber os seus pés ornados de apetrechos indianos. Não se importava com ruas sem calçar, esgotos a céu aberto, escolas abandonadas, salários baixos dos servidores, ruas sujas e cheias de lixo. Canaã virou um inferno. Além disso, era Secretária de Assistência Social, sem assistir ninguém nem fazer nada de social. Era o seu cofre de arrecadação.
E o Bundão? Ah! Este estava num paraíso. Virou peão de vaquejada. Pegava dinheiro do pai e da mãe para aplicar em cavalos de raça. Gostava de aparecer no Canal do Boi comprando gado Nelore e vibrava quando era anunciado o comprador: Bundão de Canaã arrematou! Vendido para a Bahia! A esta altura já estava para lá de bêbado. Não bebia água, matava a sede com uísque e bradava em alto e bom som: “Aqui bebo à custa dos otários de Canaã!”. A fama de beberrão logo tomou conta. Pior é que era valentão e cheio de razão. Ninguém podia dizer a ele que se contivesse, já que era filho de políticos etc, etc. Bundão respondia com um “Vá te arrombar, porra! Você sabe quem eu sou? Sou filho do prefeito, porra!”. E assim caminhava Canaã com um prefeito corrupto, uma primeira dama perdulária e vaidosa e um filho beberrão e cheio de razão.
De olho na reeleição, Ratinho mandou calçar uma rua, pintou um meio-fio aqui, limpou uma rua ali, começou a aparecer mais, a tratar melhor os amigos, a frequentar casa de pobre, casamento, batizados.... Tudo em nome de um novo mandato. Resolveu então fazer uma festa de arromba para melhorar sua imagem e desviar mais algumas verbas. O problema é que só havia um policial na cidade e o prefeito teve que solicitar uma quantidade maior para dar segurança ao evento. O Governo do Estado da Bahia mandou 25 homens bem armados e equipados e quatro viaturas. Os baderneiros não teriam chance.
No segundo dia de festa, tudo estava calmo. Até que Bundão resolveu fazer das suas. Pegou seu carro possante, equipou-o com o melhor uísque e foi para um bairro residencial. Pela madrugada deixou o som na maior altura e viajava no álcool. Até que uma senhora idosa resolveu pedir a alguém para desligar o som que ela precisava dormir. Estava velha, alquebrada e não conseguia cair no sono com um barulho daqueles. “Mas é o filho do prefeito. Ele não vai parar tão cedo.”. De fato, Bundão não estava nem aí, nem lá, nem em lugar algum. Até que uma senhora foi até o local da festa da cidade e solicitou a presença de um policial para socorrer a idosa. Quando os policias chegaram, viram logo o filho do prefeito em profundo estado de alegria.
- De quem é este carro? Perguntou um Sargento PM.
Bundão, com ar superior:
- É meu. Algum problema, Policial?
- Baixe o som, pegue o seu carro e vá para um lugar adequado. Aqui é um bairro residencial e as pessoas precisam dormir.
Bundão não se deu por vencido.
- Ah! Qual é? Não posso me divertir?
O policial já se preparava para agir, mas voltou a insistir:
- O Senhor ouviu o que eu disse?
- Ah! Mas....
Mal começou a frase já recebia um tapa de mão aberta ao pé do ouvido:
- Baixe o som! Pegue os documentos do veículo!
Bundão não se deu por vencido:
- Você sabe com quem está falando?
Um segundo tapa falou mais lucidamente e não precisou mais o policial dizer nada. Bundão obedeceu sofregamente. Foi liberado e correu para contar ao pai. Ratinho e Mariposa ficaram irados e saíram por aí a tirar fotos para identificar o policial agressor.
- Vamos levá-lo aos tribunais. Vou pedir ao deputado que acabe com a vida deste soldadinho de meia tigela! Dizia Ratinho irritado.
A notícia correu logo e a festa terminou sem mais uma briga. Os policias eram sérios. Se repreenderam até o filho do prefeito, era melhor brincar para não ir para as grades. Foram os dias de festa mais calmos e tranquilos de Canaã. O Ratinho chegou a falar com o comandante e pedir a cabeça do Sargento numa bandeja. Ouviu, entretanto, a resposta de que ali se tratava de uma equipe.
- O senhor vai ter que cortar todas as nossas cabeças.
Enquanto isso Bundão dormia com dois belos hematomas nas suas duas avantajadas bochechas.
(Do livro: Contos levemente amaros. Inédito)