Francisco J C Dantas (em pé) e Rubens Figueiredo no debate sobre imaginação engajada na Flip. |
A camisa branca e impecável de Francisco J. C. Dantas, que reluzia no centro do palco, tem explicação. E foi por aí que ele começou. Entre os vários agradecimentos e homenagens que fez ao microfone, deteve-se no elogio à camareira da sua pousada, em Paraty, que se prontificara engomar a camisa que ao sair de Sergipe ele havia socado na mala e ao retirá-la, aqui, parecia ter saído de dentro de uma garrafa. E por falar em camareira, e lembrou de outra, em um hotel de Passo Fundo, durante um evento literário, que a cada noite lhe deixava chocolatinhos sob o travesseiro.
Aí está Dantas, 70 anos, com forte sotaque nordestino, que começou falando dessas coisas prosaicas para divertir e amaciar a plateia. Só mais tarde, quando todo mundo já riu e aplaudiu sua deliciosa prosa de boteco, é que ele passou ao tema espinhoso desse começo de tarde: A Imaginação Engajada. O crítico literário João Cezar de Castro Rocha, mediador da sessão, tinha a seu lado, além de Dantas, o tradutor e também escritor Rubens Figueiredo, cuja figura esguia, quando vista de longe lembra a do próprio Drummond, como se o homenageado desta Flip houvesse decidido subir ao palco no último dia.
Entre os dois convidados à Mesa 16 – que além da atividade literária são também professores – foi Figueiredo quem falou de forma mais clara e direta sobre a necessidade do envolvimento do escritor com os problemas da coletividade. “Tendemos a encarar as desigualdades sociais como fatos naturais”, criticou. “Olhamos para um ônibus cheio de gente, no final da tarde, como se aquilo fosse uma árvore.” O exemplo escolhido não é casual. O último livro de Figueiredo,Passageiro do Fim do Dia, vencedor em 2011 dos prêmios Portugal Telecom e São Paulo de Literatura, é todo ambientado no interior de um veículo de transporte público. O protagonista é um rapaz que ao final do expediente da sexta-feira tem que pegar um ônibus lotado para visitar a namorada, que mora em um local muito mais pobre que o dele, onde os códigos são outros. “Os abismos sociais nos impedem de entender as coisas mais elementares do dia a dia”, afirma o escritor carioca. “É como se fosse uma outra civilização.Você vê mas não entende.”
“Vivemos cercados de iniquidade social”, admitiu admite Dantas. “E isso me toca”. Porém, entre os vários autores que citou durante o debate, sua admiração foi mais explícita e fervorosa em relação a Guimarães Rosa, que à sua época enfrentou o desdém dos defensores de uma literatura de viés político. “Esse autor, sozinho, se impôs”, elogiou Dantas. “Rosa libertou a todos nós de escrever segundo as regras do partido. Ele veio para levar a literatura para um outro espaço.”
O autor sergipano, que se tornou conhecido sobretudo pelos romances Coivara da Memória e Os Desvalidos, preocupou-se em fazer a distinção entre o devaneio e a imaginação. O primeiro, para ele, é uma operação mais livre da mente e que, no limite, poderia chegar próximo à loucura. Já a imaginação, segundo Dantas, teria um caráter disciplinador, que permite ao escritor trabalhar de forma eficiente com o material recolhido. E, nesse caso, a idade e a vivência são capazes de afiar as ferramentas necessárias para o artesanato literário. “Para Hemingway”, recordou Dantas, “quanto mais você vive, mais condições adquire para imaginar bem”
Mesa dos tímidos Figueiredo e Dantas rende momentos saborosos
da Folha de São Paulo
O encontro entre dois escritores tímidos e um tanto quanto desajeitados no palco rendeu um dos momentos mais saborosos da décima edição da Flip. A palestra "A Imaginação Engajada" reuniu nesta manhã o sergipano Francisco Dantas e o carioca Rubens Figueiredo. Premiados e consagrados pela crítica, ambos começaram a apresentação bastante encabulados. Dantas, 72, que lançou recentemente o romance "Caderno de Ruminações", começou elogiando sua editora, a Alfaguara", por ter "apostado em mim, um escritor já velho e pouco promissor" Depois agradeceu à Flip, aos hotéis e aos restaurantes de Paraty a atenção dispensada aos autores. "Esta camisa que tô usando, trouxe socada na mala. Chegou aqui como se tivesse saído socada de dentro de uma garrafa. Pedi para passarem no hotel e no mesmo dia ela já estava no cabide", disse, sob aplausos do público. Dantas então relembrou que, durante sua participação na Jornada Literária de Passo Fundo (RS), todos os dias uma camareira colocava um chocolate debaixo de seu travesseiro."Quando fui embora, os funcionários me deram uma caixa de chocolate", relembrou ele, comovido. Completou ainda sua fala inicial se dizendo "muito agradecido de estar perto de nomes mais meritórios que o meu", em referência a Figueiredo e ao mediador do debate, João Cezar de Castro Rocha, e se desculpando pelo jeito tímido e caipira. "Estou um pouco desconfortável. Nunca me acostumei com o microfone, a língua trava, fico sem jeito. Gostaria de dizer que nem sempre a entrevista é um critério seguro que corresponde às qualidades do livro do escritor. Trabalhando em silêncio, é natural que o autor não tenha traquejo de ator." Depois perguntou ao mediador: " Tenho tempo de voltar ao tema da palestra?". Tinha ainda cinco minutos. "Vou entrar no tema propriamente dito, mas antes queria ler uma coisa", afirmou, provocando gargalhadas na plateia. Leu então um trecho de "O Som e a Fúria", do americano William Faulkner, que Dantas disse poder servir de epígrafe para seu livro. Após a leitura, foi interrompido pela mediador. "Se o senhor não se importar, vamos passar a palavra ao Rubens e depois voltamos ao senhor." "Não, pode deixar ele falando", brincou Rubens Figueiredo, até então calado.
Ao comentar a vida e obra do autor, antes que ele iniciasse sua fala, o mediador citou que Figueiredo era autor de inúmeros romances. "São só cinco romances, não são inumeros não", contestou. Coçando o rosto e olhando muitas vezes para o chão, ele entrou no tema da palestra (as relações entre a literatura e a realidade social) ao comentar a construção de seu mais recente livro, "Passageiro do Fim do Dia". Ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura, o romance narra o trajeto do protagonista, de ônibus, para visitar a namorada numa área pobre Rio. A inspiração veio da própria experiência do autor, professor de um colégio da periferia da cidade. "Por 35 anos, pegava dois ônibus para ir pro colégio e dois para voltar. Embora eu vivesse a experiência de fazer o percurso, de encontrar as pessoas, compartilhar as experiências, percebi que havia uma barreira entre os alunos e eu. Não era uma questão de sensibilidade, lucidez ou inteligência. É uma bareira que vem de fora, criada por um regime social. São mecanismos que produzem uma justificação para aquela situação. Justificação que não é lógica, discursiva. Passei a ver a literatura como uma possibilidade de conhecer nossa experiência imediata." "Bom, acho que já falei muito", concluiu.
Ao retomar a palavra, desta vez já comentando o tema proposto pela mesa, Dantas comentou que a palavra "engajamento" tornou-se pejorativa na literatura por estar associada a romances maniqueístas. "A gente vive num contexto de muitas iniquidades sociais, isso me incomoda. Não vivo num limbo, vivo na sociedade, escrevo para mudar as coisas que existem." Depois disso, o mediador disse que passaria novamente a palavra a Figueiredo. "De novo?", brincou ele. "Como sabia que você falaria isso", completou Castro Rocha, "vou ler o início do seu romance e fazer uma pergunta. Posso?". "Ué, o que posso fazer?", conformou-se Figueiredo. Castro Rocha também pretendia ler trecho do novo romance de Dantas, mas o escritor sergipano achou melhor não. Informado então de que ainda restavam dez minutos de debate, Dantas assustou-se. "Dez minutos?" Virando-se para Figueiredo, disparou: "Você ainda não falou nada". "Eu estou tentando...", gracejou Castro Rocha. A última pergunta da plateia, dirigida a Figueiredo, tratava da relação entre a docência e a literatura. "Sempre considerei dar aula mais importante do que meu trabalho de escritor. Meu trabalho de professor contribui muito para minha literatura", concluiu.
Mesa dos tímidos Figueiredo e Dantas rende momentos saborosos
da Folha de São Paulo
O encontro entre dois escritores tímidos e um tanto quanto desajeitados no palco rendeu um dos momentos mais saborosos da décima edição da Flip. A palestra "A Imaginação Engajada" reuniu nesta manhã o sergipano Francisco Dantas e o carioca Rubens Figueiredo. Premiados e consagrados pela crítica, ambos começaram a apresentação bastante encabulados. Dantas, 72, que lançou recentemente o romance "Caderno de Ruminações", começou elogiando sua editora, a Alfaguara", por ter "apostado em mim, um escritor já velho e pouco promissor" Depois agradeceu à Flip, aos hotéis e aos restaurantes de Paraty a atenção dispensada aos autores. "Esta camisa que tô usando, trouxe socada na mala. Chegou aqui como se tivesse saído socada de dentro de uma garrafa. Pedi para passarem no hotel e no mesmo dia ela já estava no cabide", disse, sob aplausos do público. Dantas então relembrou que, durante sua participação na Jornada Literária de Passo Fundo (RS), todos os dias uma camareira colocava um chocolate debaixo de seu travesseiro."Quando fui embora, os funcionários me deram uma caixa de chocolate", relembrou ele, comovido. Completou ainda sua fala inicial se dizendo "muito agradecido de estar perto de nomes mais meritórios que o meu", em referência a Figueiredo e ao mediador do debate, João Cezar de Castro Rocha, e se desculpando pelo jeito tímido e caipira. "Estou um pouco desconfortável. Nunca me acostumei com o microfone, a língua trava, fico sem jeito. Gostaria de dizer que nem sempre a entrevista é um critério seguro que corresponde às qualidades do livro do escritor. Trabalhando em silêncio, é natural que o autor não tenha traquejo de ator." Depois perguntou ao mediador: " Tenho tempo de voltar ao tema da palestra?". Tinha ainda cinco minutos. "Vou entrar no tema propriamente dito, mas antes queria ler uma coisa", afirmou, provocando gargalhadas na plateia. Leu então um trecho de "O Som e a Fúria", do americano William Faulkner, que Dantas disse poder servir de epígrafe para seu livro. Após a leitura, foi interrompido pela mediador. "Se o senhor não se importar, vamos passar a palavra ao Rubens e depois voltamos ao senhor." "Não, pode deixar ele falando", brincou Rubens Figueiredo, até então calado.
Ao comentar a vida e obra do autor, antes que ele iniciasse sua fala, o mediador citou que Figueiredo era autor de inúmeros romances. "São só cinco romances, não são inumeros não", contestou. Coçando o rosto e olhando muitas vezes para o chão, ele entrou no tema da palestra (as relações entre a literatura e a realidade social) ao comentar a construção de seu mais recente livro, "Passageiro do Fim do Dia". Ganhador do Prêmio São Paulo de Literatura, o romance narra o trajeto do protagonista, de ônibus, para visitar a namorada numa área pobre Rio. A inspiração veio da própria experiência do autor, professor de um colégio da periferia da cidade. "Por 35 anos, pegava dois ônibus para ir pro colégio e dois para voltar. Embora eu vivesse a experiência de fazer o percurso, de encontrar as pessoas, compartilhar as experiências, percebi que havia uma barreira entre os alunos e eu. Não era uma questão de sensibilidade, lucidez ou inteligência. É uma bareira que vem de fora, criada por um regime social. São mecanismos que produzem uma justificação para aquela situação. Justificação que não é lógica, discursiva. Passei a ver a literatura como uma possibilidade de conhecer nossa experiência imediata." "Bom, acho que já falei muito", concluiu.
Ao retomar a palavra, desta vez já comentando o tema proposto pela mesa, Dantas comentou que a palavra "engajamento" tornou-se pejorativa na literatura por estar associada a romances maniqueístas. "A gente vive num contexto de muitas iniquidades sociais, isso me incomoda. Não vivo num limbo, vivo na sociedade, escrevo para mudar as coisas que existem." Depois disso, o mediador disse que passaria novamente a palavra a Figueiredo. "De novo?", brincou ele. "Como sabia que você falaria isso", completou Castro Rocha, "vou ler o início do seu romance e fazer uma pergunta. Posso?". "Ué, o que posso fazer?", conformou-se Figueiredo. Castro Rocha também pretendia ler trecho do novo romance de Dantas, mas o escritor sergipano achou melhor não. Informado então de que ainda restavam dez minutos de debate, Dantas assustou-se. "Dez minutos?" Virando-se para Figueiredo, disparou: "Você ainda não falou nada". "Eu estou tentando...", gracejou Castro Rocha. A última pergunta da plateia, dirigida a Figueiredo, tratava da relação entre a docência e a literatura. "Sempre considerei dar aula mais importante do que meu trabalho de escritor. Meu trabalho de professor contribui muito para minha literatura", concluiu.