O crescimento populacional nunca
foi tão desigual, e as discrepâncias entre os perfis demográficos de países,
grupos étnicos, religiosos e econômicos exercerão cada vez mais influência
sobre as disputas pelo poder
Cecília Araújo – de Veja.com
Caos no trânsito em Lagos - Nigéria. |
Em uma de suas assombrosas
previsões, o francês Alexis de Toqueville cravou em 1835 que Estados Unidos e
Rússia disputariam o futuro do planeta. A célebre passagem encerra o primeiro
volume de A Democracia na América: "Existem hoje, sobre a terra, dois
grandes povos que, tendo partido de pontos diferentes, parecem adiantar-se para
o mesmo fim: são os russos e os anglo-americanos (...) O americano tem por
principal meio de ação a liberdade; o russo, a servidão. (...) Cada um deles
parece convocado, por um desígnio secreto da providência, a deter nas mãos, um
dia, os destinos de metade do mundo".
Notas de rodapé mostram que o
historiador se valeu de numerosos dados demográficos para antever a polarização
que marcou o planeta no século XX: a população das grandes e pequenas cidades,
o número de trabalhadores rurais, a proporção de escravos, índios, imigrantes,
os grupos religiosos etc. Toqueville considerava que os americanos e os russos
estavam então em franco crescimento demográfico, vindo a ocupar "amplos
espaços vazios", ao contrário dos europeus, "que parecem ter chegado
mais ou menos aos limites traçados pela natureza".
A análise certeira de Toqueville
antecipa em quase dois séculos um campo hoje emergente das ciências sociais, a
demografia política. Seu objetivo é vencer o fosso que separa a ciência
política da montanha de dados populacionais, cujo tratamento matemático é cada
vez mais sofisticado. Quando bem-sucedido, o esforço permite traçar cenários
políticos com razoável grau de confiança. Que o digam os estrategistas de
campanha, sempre prontos a moldar o discurso dos candidatos em função de
eleitorados emergentes, como se vê tanto na disputa pela Casa Branca como na
corrida pela prefeitura de São Paulo.
Imigrantes chineses nos Estados Unidos |
Os recados da demografia já estão
no radar das campanhas mas ainda custam a chegar à gestão pública. "Não
conheço uma Secretaria de Educação no Brasil que tenha um especialista em
demografia, que saiba quantas crianças vão nascer nos próximos anos e,
portanto, quantas escolas precisam ser abertas ou fechadas", exemplificou
a VEJA o educador João Batista Araujo e Oliveira. É o que lamenta Jack
Goldstone, professor da Universidade George Mason, em Virgínia (EUA). Daí o
livro Demografia política: como as mudanças populacionais estão remodelando
questões de segurança internacional e política nacional (em tradução livre),
que editou em companhia de Eric Kaufmann, da Universidade de Londres, e Momica
Duffy Toft, da Harvard. Lançada em junho de 2012, a obra alerta para as
tendências que vão redesenhar o mundo até 2050.
Essas mudanças já estão em curso
e em boa medida não têm precedente histórico. Isso porque o crescimento
populacional nunca foi tão desigual. Goldstone resume: o mundo de amanhã não
será simplesmente o mundo de hoje, só que com mais gente. As discrepâncias
entre os perfis demográficos tanto de países como, dentro de suas fronteiras,
dos grupos étnicos, religiosos e econômicos exercerão enorme pressão sobre a
arena política, deem-se as disputas nas urnas, nos foros diplomáticos ou nos
campos de batalha.
Bomba demográfica - Para
sucessivos governos israelenses, desde o primeiro gabinete do premiê David
Ben-Gurion, demografia é uma questão existencial. Yasser Arafat dizia que a altíssima
fertilidade das mulheres palestinas (6,8 filhos em média na Faixa de Gaza) era
a 'bomba biológica' que daria a 'vitória final' sobre os judeus. Por muito
tempo, Israel compensou a diferença das taxas de fertilidade com políticas de
estímulo a imigração. Mais recentemente, entrou no radar dos analistas uma nova
força demográfica: os índices de natalidade de judeus ultraortodoxos (8 filhos
por mulher), ainda mais altos que os de palestinos. Até 2025, 12% dos
israelenses serão judeus ultraordoxos e pode-se prever que esta parcela da
população passará a exigir crescente representação política.
A relação entre fervor religioso
e fecundidade é conhecida dos demógrafos. As principais religiões são todas
entusiastas do casamento e da procriação, com censuras ao divórcio, aborto e
homossexualismo. Famílias muito religiosas são comumente mais numerosas que as
seculares, o que vale tanto para fundamentalistas islâmicos, como judeus
ultraordoxos e cristãos conservadores americanos. Esta diferença explica, por exemplo,
a recente inversão no Líbano, onde muçulmanos passaram cristãos e hoje são
maioria. Em 1971, um raro estudo sobre fertilidade das mulheres libanesas
encontrou os seguintes números: sete filhos em média para muçulmanos xiitas,
quase seis para sunitas, cinco para famílias drusas e entre quatro e cinco para
cristãos.
Distrito financeiro de Pudong em Xangai, China |
A cartada evangélica - O Brasil
também caminha para uma inversão de seu perfil religioso, e a razão é a
emergência da população evangélica, em particular das correntes pentecostais e
neopentecostais. Em 1970, 91,8% dos brasileiros eram católicos. Em 2010, eram
64,6%. Mantida a tendência, evangélicos e católicos se igualarão em no máximo
30 anos, mas desde já o crescente peso do eleitorado evangélico ganha o
primeiro plano na disputa eleitoral.
Nos Estados Unidos, a mobilização
do eleitorado evangélico é uma cartada eleitoral dos anos 1970 e já não tem a
mesma força em 2012: o perfil demográfico americano está mudando, e até 2050 o
país de protestantes anglo-saxões será composto majoritariamente por
hispânicos, asiáticos e negros. Este tendência é interpretada como um trunfo de
longo prazo dos democratas, com quem as minorias, historicamente, têm maior
afinidade.
Outono europeu - O crescimento
acelerado das minorias americanas é o que tem mantido o perfil demográfico
relativamente saudável do país. Das grandes potências, os Estados Unidos são a
única onde a fertilidade (2,07 filhos em média) é próxima à taxa de reposição
(2,1), que garante uma população estável. A maioria dos países europeus e
muitos asiáticos convivem desde os anos 1970 com taxas bem inferiores e
atravessam agora a uma espécie de outono demográfico, marcado pelo
super-envelhecimento, o encolhimento da força de trabalho e, eventualmente,
redução populacional.
Na Alemanha e Japão, a média de
filhos por mulher é pouco maior que 1,3, e suas populações já estão diminuindo.
É o último estágio da chamada transição demográfica. Este fenômeno consiste na
passagem de uma população com alta taxa de fecundidade e baixa expectativa de
vida para a situação oposta. Evidentemente, os países não experimentam ao mesmo
tempo esta transição, daí as pressões políticas que a demografia permite
antever.
O primeiro estágio da transição
demográfica consiste na queda da mortalidade infantil e aumento da expectativa
de vida, indicadores que os mais básicos cuidados com saúde, saneamento e
alimentação são capazes de revolucionar. O resultado imediato é um vigoroso
aumento populacional. Muitos países empacam nesta primeira fase (atualmente são
45, a maioria na África e Oriente Médio). A Etiópia é um bom exemplo: de 2000 a
2010, a expectativa de vida aumentou de 51 para 56 anos, mas a fertilidade se
manteve alta (acima de 6 filhos por mulher). Em 1995, a Etiópia tinha uma
população equivalente à da França (57 milhões). Tudo o mais constante, em 2035
a França terá 71 milhões de habitantes, e a Etiópia, mais que o dobro, 154
milhões.
"É uma novidade na história
da demografia mundial: grande parte do crescimento populacional ocorre em
países pobres. Se há 50 anos a população da Europa era duas vezes a da África,
daqui a 50 anos a população da África será três vezes maior do que a da
Europa", diz Goldstone. "Até 2050, as diferenças entre os países
pobres e ricos serão máximas", acrescenta Kaufmann.
Oportunidade única - Em um
segundo momento da transição demográfica, a taxa de natalidade começa a cair,
em função de fatores que se ligam à escolaridade, urbanização, crescimento
econômico, políticas de saúde pública etc. O resultado é o aumento da população
adulta – economicamente ativa –, ainda desobrigada do ônus de sustentar um
número muito grande de idosos ou de crianças. É uma chance rara e única de
desenvolvimento, que todos países ricos souberam aproveitar. Esta janela de
oportunidade está atualmente aberta a alguns dos países emergentes, como
Turquia, Irã, Vietnã, Indonésia, China, Indonésia e, notadamente, o Brasil. Em
1965, havia noventa brasileiros dependentes para cada 100 em idade
economicamente ativa. Hoje, essa relação é de 45 para 100.
"Países que tiveram uma
queda recente na taxa de fecundidade têm um futuro promissor pela frente. O
número de trabalhadores está crescendo muito, enquanto o número de crianças
dependentes tem um crescimento mais ameno", diz Goldstone. "Mas para
tirar proveito dessas oportunidades, é preciso se concentrar em algumas medidas
políticas e econômicas para melhorar as condições dos jovens, incluindo
investimento em educação e criação de empregos."
Este bônus demográfico tem prazo
para acabar. Até meados do século, o contínuo envelhecimento da população fecha
esta janela de oportunidade. E taxas de natalidade persistentemente baixas
lançam o país rumo à etapa final da transição demográfica.
Campanhas para acelerar os
primeiros estágios da transição já se mostraram eficientes, como mostram a
China e, principalmente, a Coreia do Sul. Nos anos 1970, Seul divulgava os
seguintes lemas: "pare em dois (filhos), independente do sexo " e
"uma garota bem criada vale por dois garotos". Nos anos 1980, a chave
era "dois (filhos) é demais". Hoje em dia o país tem o perfil
demográfico que os europeus levaram séculos para alcançar – e as mesmas
preocupações.
Já as tentativas de reverter a
transição têm se mostrado em geral ineficazes e não raro ridículas, como o
"dia do sexo". Instituída em 2007 na província russa de Ulyanovsk, a
campanha premiava famílias com um veículo utilitário por cada bebê nascido nove
meses depois do "dia do sexo".
Paz geriátrica - Demógrafos
tratam esta transição como uma fatalidade – efeito do próprio desenvolvimento
humano. Disso decorre, como exemplo mais óbvio, que os custos com
aposentadorias serão crescentes (mais de um quarto do PIB europeu até 2040). E
que será cada vez mais comum o modelo chinês conhecido como 4-2-1, resultado da
política de filho único com o aumento da longevidade: um filho sustenta o pai,
a mãe e os quatro avós. Mas há também um efeito até pouco tempo atrás
inesperado: sociedades com mais adultos e velhos tendem a ser mais pacíficas.
Mulheres idosas empurram carrinhos de compras em Berlim, Alemanha |
Estudando a frequência de golpes,
guerras civis e confrontos entre países vizinhos, demógrafos encontraram a
seguinte relação: onde a faixa etária predominante é jovem, são maiores as
chances de conflito armado; onde predominam os adultos e os idosos, são maiores
as chances de uma democracia liberal. A explicação para isso é que gangues,
milícias e revoltas populares têm um custo de mobilização muito mais baixo onde
há jovens em excesso e empregos em escassez. As evidências desta hipótese podem
ser encontradas em diversas épocas e continentes: nos Bálcãs, na América Latina
e no Sudeste Asiático de décadas recentes e também no Oriente Médio e norte da
África dos dias de hoje. Também esta oportunidade de "paz geriátrica"
exigirá maior atenção aos recados da demografia política.
Boom africano
A África será o novo gigante em
população. Até 2020, Etiópia terá mais habitantes do que a Rússia. Em 2050, o
continente será mais populoso do que Índia e China juntas. Muitas cidades africanas
terão dezenas de milhares de habitantes nas próximas décadas. A transformação
será muito mais intensa e acelerada do que aconteceu na Europa no século XVIII,
quando o saneamento e tecnologia médica contribuíram para reduzir a mortalidade
infantil e provocar uma explosão populacional na Europa. Até 1950, a população
europeia expandiu de 3 a 5 vezes. Agora, os países em desenvolvimento -
beneficiados com a mais recente tecnologia médica - podem esperar uma expansão
de 8 a 24 vezes. O demógrafo Jack Goldstone sugere que os países mais ricos
olhem para o crescimento em população dos mais pobres menos como um problema em
potencial e mais como uma boa oportunidade de negócios. O especialista lembra
que, nos anos 1980 e 1990, a entrada de 1 bilhão de trabalhadores da Índia e da
China aumentou de forma significativa a produção da economia global. Da mesma
forma, a entrada nas próximas décadas de bilhões de pessoas no mercado,
especialmente vindas da África, pode trazer um impacto positivo para o mundo.
“Mas, para isso, é preciso que os africanos tenham acesso à educação e
empregos. Se os países mais ricos investirem na África, para aprimorar seus
trabalhadores, podem ter uma boa surpresa no futuro, com benefícios para todos.
Se falharem nessa ajuda, a consequência também será global: mais disputas e
conflitos das mais diversas origens”, diz.