Por Renan Truffi – do portal iG.
Livro conta história de hospício
em Barbacena que arrecadou R$ 600 mil com venda de corpos
“Milhares de mulheres e homens
sujos, de cabelos desgrenhados e corpos esquálidos cercaram os jornalistas.
(...) Os homens vestiam uniformes esfarrapados, tinham as cabeças raspadas e
pés descalços. Muitos, porém, estavam nus. Luiz Alfredo viu um deles se agachar
e beber água do esgoto que jorrava sobre o pátio. Nas banheiras coletivas havia
fezes e urina no lugar de água. Ainda no pátio, ele presenciou o momento em que
carnes eram cortadas no chão. O cheiro era detestável, assim como o ambiente,
pois os urubus espreitavam a todo instante”.
A situação acima foi presenciada
pelo fotógrafo Luiz Alfredo da extinta revista O Cruzeiro em 1961 e está
descrita no livro-reportagem Holocausto Brasileiro, da editora Geração
Editorial, que acaba de chegar às livrarias de todo o País. Ainda que tenha
semelhanças com um campo de concentração nazista, o caso aconteceu em um
manicômio na cidade de Barbacena, Minas Gerais, onde ocorreu um genocídio de
pelo menos 60 mil pessoas entre 1903 e 1980.
Apesar de ser uma história
recente, o fato de um episódio tão macabro permanecer desconhecido pela maioria
dos brasileiros inspirou a jornalista Daniela Arbex. “Eu me perguntei: como
minha geração não sabe nada sobre isso?”. A obra conta a história do maior
hospício do Brasil, que ficou conhecido como Colônia e leva este nome por ter
abrigado atos de crueldade parecidos com os que aconteceram na Alemanha
nazista, durante a Segunda Guerra Mundial.
“Dei esse nome primeiro porque foi um
extermínio em massa. Depois porque os pacientes também eram enviados em vagões
de carga (ao manicômio). Quando eles chegavam, os homens tinham a cabeça
raspada, eram despidos e depois uniformizados”, explica a autora. Daniela não
foi a única a comparar Colônia ao holocausto. No auge dos fatos, em 1979, o
psiquiatra italiano Franco Basaglia visitou o hospício com a intenção de tentar
reverter o que ocorria no local. “Estive hoje num campo de concentração
nazista. Em nenhum lugar do mundo presenciei uma tragédia como essa”, disse na
ocasião.
A Colônia foi inaugurada em 1903
e continua aberta até hoje, mas o período de maior barbárie aconteceu entre
1930 e 1980, quando pessoas eram internadas sem terem sintomas de loucura ou
insanidade. Segundo o livro-reportagem, cerca de 70% das pessoas não tinham
diagnóstico de doença mental. “Foi o momento mais dramático. A partir de 1930,
os critérios médicos desapareceram. Em 1969, com a ditadura, o caso foi
blindado. Não gosto de chamar assim, mas (entre 1930 e 1980) foi um período
negro. Foi criado para atender pessoas com deficiência mental, mas acabou sendo
usado para colocar pessoas indesejadas socialmente, como gays, negros, prostitutas,
alcoólatras”, contou.
Internação e sobrevivência
A autora: Daniela Arbex |
Daniela contou ainda que a ordem
para internação das pessoas na Colônia vinha dos mais influentes da sociedade
na época. “Quem decidia é quem tinha mais poder. Teve pessoas que foram
enviadas pela canetada de delegados, coronéis, maridos que queriam se livrar da
mulher para viver com a amante. Não tinha critério médico nenhum. Tem documento
que mostra que o motivo da internação de uma menina de 23 anos foi tristeza”,
criticou.
Ao chegarem ao manicômio, os
internados tinham uma rotina “desumana”. Eles dormiam juntos em salas grandes
sem cama. Todos tinham que se deitar sobre o chão do cômodo, que era coberto
apenas por capim. Acordavam por volta das 5h da manhã e eram enviados para os
pátios, onde ficavam até 19h, todos os dias. “Barbacena é uma cidade muita
fria. Até hoje tem temperatura muito baixa para os padrões brasileiros. Pessoas
eram mantidas nuas nos pátios em total ociosidade. Pensa bem que condição
sub-humana”, disse a jornalista.
Além disso, a alimentação na
Colônia era precária, o que causou a desnutrição e, consequentemente, o
desenvolvimento de doenças em vários dos “pacientes”. “Eles tinham uma
alimentação muito pobre, de pouca qualidade nutritiva. Muitas pessoas passavam
fome. Tem histórias de gente que em momento de desespero comeu ratos ou pombas
vivas. (...) As pessoas acabavam tendo sede e bebiam urina ou esgoto porque
tinha fossas no pátio. Não tinha nenhuma privacidade. Até 1979 era assim,
faziam xixi e coco na frente de todo mundo", explicou.
O fato dos homens, mulheres e até
crianças ficarem pelados o tempo todo criava um clima de promiscuidade no
manicômio. Há relatos de mulheres que foram estupradas por funcionário.
“Consegui depoimentos nesse sentido de (estupro e abuso sexual), mas não
consegui provar. Tem um caso de uma mulher que disse ter engravidado de um
funcionário. Certo é que havia uma promiscuidade incrível. As pessoas eram
mantidas nuas, dormindo juntas nessas condições. Crianças eram mantidas no meio
dos adultos”, lamentou.
Além das condições insalubres, o
hospício chegou a ter 5.000 pessoas ao mesmo tempo, enquanto a capacidade
original era para 200 pacientes. Nesses períodos de maior lotação, 16 pessoas
morriam todos os dias. “Não era uma coisa determinada, não existia uma ordem
(para matar). As coisas foram se banalizando. Um funcionário via que outro
fazia tal coisa com o paciente e repetia. As pessoas deixaram as coisas
acontecerem. Não tinha essa coisa de vamos fazer com essa finalidade. Era exatamente
por omissão”, comentou.
Venda de corpos
Livro Holocausto Brasileiro conta história do genocídio de 60 mil pessoas em hospício de MG. Foto: Divulgação/Luiz Alfredo/Revista O Cruzeiro |
Mas a morte dava lucro. A autora
do livro conta que encontrou registros de venda de 1.853 corpos, entre 1969 e
1980, para faculdades de medicina. “O que a gente não sabia e conseguimos
descobrir, com a ajuda da coordenação do Museu da Loucura, foi que 1.853 corpos
foram vendidos para 17 faculdades de medicina do País. O preço médio era de 50
cruzeiros. Dá um total de R$ 600 mil reais, se atualizarmos a moeda. Tem
documento da venda de corpos. De janeiro a junho de um determinado ano, por
exemplo, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) recebeu 67 peças, como
eles mencionavam os corpos”, afirma.
Depois de algum tempo, o mercado
deixou de comprar tantos cadáveres. Os funcionários passaram, então, a decompor
os corpos dos mortos com ácido no pátio da Colônia, diante dos próprios
pacientes, para comercializar também as ossadas.
O caos estabelecido na Colônia
foi descoberto pela revista O Cruzeiro, que publicou em 1961 uma reportagem de
denúncia de José Franco e Luiz Alfredo, entrevistado por Daniela Arbex no
livro. A autora conta que, na época, houve comoção em torno do caso, mas as
condições continuaram as mesmas no hospício. “Na época, o (ex-presidente) Jânio
Quadros estava no poder. Ele falou que ia mandar dinheiro para a Colônia,
falaram que ia fazer acontecer e nada. Não foi feito nenhum tipo de intervenção
que fizessem os absurdos cessarem. De 1961 até 1979, a situação continuou tão
grave quanto”, explica.
As “atrocidades” no hospício só
começaram a diminuir quando a reforma psiquiátrica ganhou fôlego em Minas
Gerais, em 1979. Hoje, o manicômio é mantido pela Fundação Hospitalar do Estado
de Minas Gerais (FHEMIG) e conta com 160 pacientes do período em que o local
parecia mais um “campo de concentração”. Ninguém nunca foi punido pelo
genocídio.