RAQUEL COZER – da FOLHA DE SÃO
PAULO
A nota, discreta, saiu no
"Diário Oficial da União": desde o último dia 13, uma produtora
paulistana está autorizada a captar recursos, via Lei Rouanet, para financiar
viagens cujo objetivo é inspirar um grupo de autores a escrever romances. Em
tempos não muito distantes, recorrer ao Ministério da Cultura para financiar um
projeto que parecia mais vocacionado para o Ministério do Turismo inflamou
tanto os ânimos que o pai da ideia acabou desistindo do pleito e financiou as
viagens do próprio bolso. Era 2007, e o projeto, o Amores Expressos, agitou
rancores e protagonizou os dias mais conturbados desde que o meio literário
brasileiro descobriu a internet. Um dos questionamentos dizia respeito à
legitimidade de uma literatura financiada por fora do esquema tradicional, de
contratos de edição, vendas e direitos autorais de livros. Em outras palavras,
quando a feitura de romances se acerta entre escritores, produtoras e
ministérios, uma figura pode parecer dispensável ou obsoleta: o leitor.
ISENÇÃO FISCAL
Adriana Lisboa |
O novo projeto, chamado
Redescobrindo o Brasil, sai com alguns pés de vantagem. O aval do governo para
captação de R$ 672 mil via isenção fiscal já foi dado. Como prevê a Lei
Rouanet, o dinheiro ainda não está garantido, já que antes os produtores
precisam angariar o interesse de empresas em investir. Isso até pode ser
facilitado pelo fato de as viagens serem dentro do país, e não para o exterior,
como era no Amores Expressos. O Redescobrindo o Brasil é uma espécie de filhote
mais modesto do Amores Expressos, embora a comparação não seja do agrado da
escritora Adriana Lisboa, uma das idealizadoras da iniciativa. "Pensei no
projeto quando a editora americana Whereabouts me convidou a ter contos no
livro 'Brazil, a Traveler's Literary Companion', junto com Clarice Lispector,
Dalton Trevisan e outros", disse a autora à Folha. "Eles fizeram um
mapeamento literário organizado por regiões usando os contos. Imaginei que
seria interessante algo do gênero com livros inteiros." Goste-se ou não da
comparação, é inegável que o novo projeto se beneficia da porta aberta pelo
projeto de 2007, que tanta dor de cabeça causou ao produtor Rodrigo Teixeira,
da RT Features. A curadoria é dividida entre Adriana e o ficcionista Luiz
Ruffato. Ao todo, a coleção deve ter 14 romances escritos por 14 autores
convidados a passar 15 dias em 14 diferentes capitais brasileiras. A ideia é
que todos estejam publicados e traduzidos para a Feira de Frankfurt de 2013,
quando o Brasil será o país homenageado.
INEDITISMO
Com o Amores Expressos,
Teixeira inaugurou um método de produção de livros no Brasil. "De certa
maneira, ele pagou o preço do ineditismo", avalia o ficcionista e
jornalista Sérgio Rodrigues. "Era a primeira vez que se fazia um projeto
de ativamente produzir livros, com um projeto de marketing mais amplo
envolvido." Na ocasião, Rodrigues fez críticas ao projeto em seu blog,
Todoprosa, hoje no portal da "Veja". A caixa de comentários do blog
virou, como diz Rodrigues, "uma caixa de ressonância de malucos de todo o
Brasil, contra e a favor". "Até agora, o Rodrigo estava correndo meio
sozinho nisso. Há certa ousadia, porque é um mercado originalmente de vendas
fracas", diz. A notícia foi dada pela Ilustrada, em março de 2007, em
texto não propriamente crítico, mas sob o provocativo título "Bonde das
letras". Uma semana depois, a Ilustrada voltou ao tema, desta vez buscando
classificar as diferentes irregularidades em que o projeto de Teixeira poderia
incorrer, incluindo a acusação de configurar "formação de
panelinhas". A "Veja" publicou reportagem ácida com caricaturas dos
participantes, entre os quais estão alguns dos autores mais respeitados do
país, como Bernardo Carvalho, Sérgio Sant'Anna e o próprio Ruffato. O valor
orçado para o Amores Expressos era de mais de R$ 1 milhão. Uma solicitação
chegou a ser feita ao MinC, mas o pedido foi arquivado sem que Teixeira tivesse
dado entrada nos documentos. "Era um direito a que eu tinha, o de tentar,
mas preferi desistir."
FILMES
No fim, tudo ficou em R$ 510
mil, saídos dos bolsos dele e de dois sócios. A estratégia era clara: obter 16
romances que pudessem render filmes --a cessão de direitos cinematográficos
fazia parte do contrato. Teixeira diz que, se três dos livros virarem filmes, o
projeto "já se paga": "Nunca foi a ideia fazer 16 filmes. Queria
pautar para ver o que resultava disso". Cada viagem saiu por volta de R$
30 mil, incluindo direitos autorais e custos de viagem, com cachê. No
Redescobrindo o Brasil, cada livro sairá por R$ 48 mil, aí incluídos os custos
de edição, que não estavam contemplados no projeto de Teixeira. Os romances da
série Amores Expressos vêm saindo pela Companhia das Letras, que não é obrigada
a publicar todos e se encarrega dos custos editoriais, como faz com qualquer
outro de seus livros. Já no Redescobrindo o Brasil, a ideia é que a editora
carioca Casa da Palavra publique todos os romances, segundo Adriana Lisboa.
"Estamos levando fé de que os 14 vão escrever livros dignos disso." Ela
própria não entrou em acordo com a Companhia das Letras e deixou inédito o seu
romance do Amores Expressos, ambientado em Paris. O mesmo aconteceu com André
de Leones, que lançou pela Rocco o único livro do projeto ambientado no Brasil
(São Paulo) --e que está entre os autores do projeto de Adriana e Ruffato. No
Redescobrindo o Brasil, a cláusula audiovisual não está inclusa. "Se os
livros despertarem o interesse de cineastas, ótimo", diz Adriana. A
terceira ponta é a agente literária Lúcia Riff, que tem autores agenciados
entre os convocados: Beatriz Bracher (Belém), Maria Valéria Rezende (Porto
Alegre), Lívia Garcia-Roza (Salvador), João Anzanello Carrascoza (Natal),
Flávio Carneiro (São Paulo) e a própria Adriana, que não vai escrever.
CENA
"O importante é movimentar
o mercado. Há gente criticando, outros projetos aparecendo. Mesmo que nenhum
dos livros fosse uma obra-prima, o Amores Expressos já teria esse mérito",
diz o escritor Ronaldo Bressane, amigo de Rodrigo Teixeira que não entrou em
nenhum dos dois projetos. O Amores Expressos ainda não se pagou. Dois filmes
estão em pré-produção: "Cordilheira", baseado no livro de Daniel
Galera (Buenos Aires), tem previsão de ser filmado no fim de 2012, por Carolina
Jabor. Outro, que ainda demora, é "O Filho da Mãe", adaptação do
romance de Bernardo Carvalho ambientado em Moscou. Dirigido por Karim Aïnouz,
não terá vínculo com dinheiro nacional, diz Teixeira, já que não há personagens
brasileiros. Além disso, o filme baseado no livro de Ruffato (Lisboa) está
sendo realizado por uma produtora portuguesa. Segundo Teixeira, há gente
interessada no de Chico Mattoso (Havana) e no de Sérgio Sant'Anna (Praga). O de
Joca Reiners Terron (Cairo) e o de Lourenço Mutarelli (Nova York) Teixeira diz
querer ele mesmo produzir.
EXTERIOR
Criticada no Brasil, a
iniciativa foi elogiada no exterior. "Os estrangeiros valorizaram mais.
Recebi e-mails de editores e autores enaltecendo a ideia das viagens e o fato
de isso ser feito com vista a adaptações cinematográficas", diz Teixeira. Segundo
ele, isso animou o escritor americano Denis Johnson a vender os direitos de
"Ninguém se Mexe" (Companhia das Letras) à RT Features. "Além
disso, fechamos parcerias com Scott Rudins, produtor de cinema que investe em
livros, e com a McSweeney's, editora do Dave Eggers." O pedido inicial do
Redescobrindo o Brasil ao MinC foi de R$ 1 milhão. Como foram aprovados R$ 672
mil, foi preciso pensar em cortes cá e lá. Com isso, da ideia inicial de duas
viagens de 15 dias por autor, restou uma. Cada viagem está orçada em R$ 6.000,
mais um cachê de R$ 10 mil por escritor. Se o Amores Expressos foi criticado
por focar um tema anacrônico na literatura no século 21, seu correspondente
nacional incorre num outro risco --terão os autores coragem de retratar mazelas
de locais visitados, tendo em vista que empresas locais patrocinariam os
títulos, ou farão relatos para o turismo local gostar?
CRÍTICA
Resta saber se o Amores
Expressos produziu boa literatura. Para Sérgio Rodrigues, dos sete livros que
saíram até agora, o resultado ficou "um pouco abaixo do investimento e do
barulho que se fez". "Não me parece que tenha saído nenhum grande
livro, fora o do Bernardo Carvalho, que faria um grande livro de qualquer
jeito." O crítico e poeta Alcides Villaça, que leu só o de Ruffato, avalia
que "o tema do amor entrou lateralmente. O tema que conta é o do desajuste
cultural vivido pelo brasileiro pobre e desenraizado em Lisboa". O
colunista da Folha Manuel da Costa Pinto diz que, "se a coisa da história
de amor era uma brincadeira que soava anacrônica, os autores souberam lidar com
isso de maneira irônica. Foi uma brincadeira que eles transgrediram." O
projeto rendeu também uma resposta galhofeira do pernambucano Marcelino Freire,
escritor tão agitador cultural quanto avesso à trabalheira que dá inscrever
projetos para captação de recursos pelo MinC. Dele nasceu o "projeto"
Que Viagem, pelo qual Marcelino mandou autores desconhecidos a lugares "para
onde os escritores realmente vão", como o "Inferno" e a
"Casa da Mãe Joana". Os livros saem pela independente Edith, que
Marcelino estreou no ano passado e pela qual lançou seu recente "Amar É
Crime".
PRODUTORA
Se Rodrigo Teixeira queria
obter boas histórias para filmar, o que quer a produtora Motirô, do
Redescobrindo o Brasil? "É um escritório recente", diz um dos sócios,
Osvaldo Alvarenga, "montado em janeiro e focado em teatro e
literatura". Entre os trabalhos da casa, estão uma peça inédita de
Ferreira Gullar, "O Homem Como Invenção de Si Mesmo" (2009) e uma
série chamada "Aqui Nasceu a Literatura Brasileira", com fotos de
Márcia Zoet e textos de Ruffato, sobre as casas onde nasceram e viveram grandes
autores brasileiros. Os dois foram aprovados para captação de recursos via Lei
Rouanet. A meta agora é publicar em julho os dois primeiros livros do
Redescobrindo --o de Tatiana Salem Levy (São Luís) e o de Flávio Carneiro--,
para já serem apresentados a editores internacionais. A ver se os autores pegam
o ritmo. Quando o Amores Expressos foi anunciado, esperava-se que todos os
títulos saíssem em quatro anos. Perto do fim do prazo, menos da metade dos
livros encomendados chegou às lojas.