Tarsila do Amaral |
Em publicação de 276 páginas, Maria Alice Milliet analisa
trabalho da pintora e suas influências, inclusive a relação da pintora com a
cidade de Paris.
ANTONIO GONÇALVES FILHO - O Estado de S.PauloAbaporu - 1928 |
Contar a história do modernismo brasileiro e de sua
principal representante nas artes visuais, Tarsila do Amaral (1886-1973), exige
não só conhecimento das relações da artista com o protagonista dessa história,
Oswald de Andrade (1890-1954), como das articulações de ambos para projetar o
trabalho da pintora na Europa. A crítica Maria Alice Milliet mostra, em Tarsila
(Editora M 10, 276 págs., R$ 300), que o confronto entre a arte dos amigos
parisienses de Tarsila e as pinturas da artista abre uma nova trilha para o
estudo da modernidade brasileira - em particular, da antropofagia cultural
proclamada pelo primeiro marido da pintora, não por acaso o autor do Manifesto
Antropófago que deu início ao movimento, em 1928 - isso se desconsiderarmos que
Macunaíma, de Mário de Andrade, seu verdadeiro marco zero, começou a ser
escrito em dezembro de 1926, embora publicado em 1928. Maria Alice Milliet,
convidada pela família de Tarsila para escrever o livro, patrocinado pela
Brasilprev Seguros e Previdência, segue o caminho aberto por outra crítica,
Aracy Amaral, para desenvolver esse confronto. Ambas, aliás, são ex-diretoras
de uma instituição habituada a confrontos pedagógicos entre artistas, a
Pinacoteca do Estado. Aracy Amaral chamou a atenção, por exemplo, para a
influência do pintor alemão Hans Baluschek (1870-1935) na formação da
consciência social de Tarsila, antes uma modernista que circulava pelos salões
elegantes de Paris. Militante envolvido em movimentos de trabalhadores,
Baluschek foi perseguido pelo regime nazista e denunciado como artista
"degenerado" em 1933.
A Negra - 1923 |
O livro Tarsila mostra as duas fases da vida da artista, a
rica e ambiciosa pintora que mantinha relações com a intelectualidade francesa
para ter acesso às melhores galerias parisienses nos anos 1920, e o período de
decadência financeira de sua família, após o crack da Bolsa de Nova York, em
1929. A autora acompanha a evolução da pintura de Tarsila como se esta fosse
uma Zelig de saias vestida por Poiret, tão preocupada com a autoimagem como em
cultivar amigos em Paris que, de fato, facilitaram sua carreira (entre eles, o
poeta Blaise Cendrars, que recomendou a ela fazer sua primeira exposição como
uma parisiense, "não como uma manifestação sul-americana"). Aluna de
André Lhote, ela foi atrás de Léger, emulou o estilo do mestre e, entusiasmada
com a escultura de Brancusi, não só comprou uma escultura sua (Prometheus, de
1911) como tratou de pintar um autorretrato (em 1924) que traçasse uma
correspondência analógica com uma das esculturas mais conhecidas do romeno, La
Muse Endormie (A Musa Adormecida, 1909-10). Nesse jogo mimético, Tarsila,
antenada com a sedução que a arte africana exercia sobre Picasso, Brancusi,
Matisse e Man Ray, também escolheu a máscara do romeno e, intuitiva, concluiu
que esse apreço pela arte primitiva podia ser bastante útil para quem vinha de
uma terra de índios - com um rico folclore e um mundo mítico ainda inexplorado
nos anos 1920. Maria Alice Milliet chama a atenção não só para como a depuração
formal de Brancusi repercute na sinuosidade da pintura modernista de Tarsila
como sua posterior atração pelo primitivismo de Henri Rousseau (1844- 1910). As
naturezas-mortas e as tipologias alegóricas de Rousseau constituem um modelo
para as paisagens "antropofágicas" produzidas, em especial, em 1929.
Outra aproximação feita pela crítica ajuda a ver um dos quadros de referência
do modernismo, A Negra (1923), que antecede a fase Pau-Brasil, como um
cruzamento híbrido das mulheres de Picasso, de uma pequena escultura de
Brancusi, feita no mesmo ano (La Négresse Blanche), além de pinturas de Lhote,
Gleizes, Léger e, sobretudo, de uma foto que Tarsila guardava em seu álbum de
viagens com a imagem de uma mulher negra, a sua babá.