Estudos
põem em dúvida se Maria Doroteia, ou a Marília de Dirceu, de Tomás Antônio
Gonzaga, se manteve fiel ao amado até o fim de seus dias
Marília de Dirceu entre o mito e a realidade |
Ana Jardim - do portal da Revista de História.
Esta é a
história de uma moça muito jovem, seduzida por um forasteiro português com
poemas de amor numa terra onde brotava o mais puro ouro, no Brasil do século
XVIII. Uma semana antes do casamento, a rainha mandou prender o poeta e seus
companheiros que lutavam pela liberdade. A moça esperou para sempre a volta do
seu príncipe. Bem, essa, pelo menos, é a história que sempre nos contaram.
No dia 23
de maio de 1789, Maria Doroteia Joaquina de Seixas (1767-1853) foi deixada para
trás pelo noivo, Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), preso por participação na
Inconfidência Mineira, e nunca mais tornou a vê-lo. Mas será que ela se manteve
fiel até o fim da vida? Antes de completar um ano de degredo, Tomás já estava
casado em Moçambique com a filha de um rico comerciante. Maria Doroteia, famosa
por inspirar o livro Marília de Dirceu (1792), permaneceu em Vila Rica, hoje Ouro Preto. Não se
casou nem teve filhos que reconhecesse como legítimos. Mas alguns vestígios
trazem revelações sobre a vida da musa da Inconfidência Mineira.
Diferentemente
das esposas de outros inconfidentes deixadas para trás com filhos para criar ou
bens para reclamar, Maria Doroteia ficou solteira e condenada a viver à sombra
da imagem poética criada por Tomás Antônio Gonzaga. Eternamente leal ao amor
cantado nos versos de Marília de Dirceu.
Ela
nasceu em Vila Rica. Foi batizada na Matriz de Nossa Senhora do Pilar no dia 8
de novembro de 1767 com o mesmo nome de sua mãe. Seu pai, Baltazar João
Mayrink, era capitão do Regimento de Cavalaria Regular. Tinha dois irmãos mais
novos, José Carlos Mayrink, que viria a ser senador do Império, e Francisco de
Paula Mayrink, tenente-coronel de Cavalaria, e duas irmãs: Anna Ricarda de
Seixas Mayrink e Emerenciana Evangelista de Seixas Mayrink, casadas com
militares. Órfãos de mãe ainda crianças, Maria Doroteia e os irmãos ficaram aos
cuidados do tio e de tias.
Tomás A. Gonzaga |
Tomás
Antônio Gonzaga nasceu no dia 11 de agosto de 1744 na cidade do Porto, em
Portugal. Seu pai era o magistrado João Bernardo Gonzaga, natural do Rio de
Janeiro, e sua mãe era Tomásia Isabel Clarque, nascida no Porto. Tomás ficou
órfão de mãe em maio de 1745 e foi entregue aos cuidados de tios. Veio morar no
Brasil ainda menino com o pai, que tomou posse em 1752 do cargo de
ouvidor-geral da Capitania de Pernambuco. Tomás seguiu para a Bahia, onde
estudou no Colégio dos Jesuítas até 1759, quando a Companhia de Jesus foi
expulsa do Brasil pelo marquês de Pombal. Em 1761, ele retornou a Portugal para
estudar na Universidade de Coimbra. Em 1768, colou grau de bacharel em Leis e
se transferiu para a cidade do Porto, onde exerceu a advocacia.
Maria
Doroteia era uma moça de 15 anos quando Tomás Antônio Gonzaga veio de Portugal
para Vila Rica a fim de assumir o cargo de ouvidor, no fim de 1782. No século
XVIII, não era costume as moças e mulheres de famílias distintas saírem
desacompanhadas. Por isso, é bem provável que o quase quarentão Gonzaga tenha
conhecido e ganhado intimidade com Maria Doroteia enquanto frequentava a casa
do seu tio, Bernardo da Silva Ferrão, chefe de considerada família da capital
de Minas Gerais. O convidado se enamorou da sobrinha do seu amigo advogado. Uma
moça belíssima, pelo retrato que dela fez o poeta.
Naquelas
longínquas paragens do Brasil colonial, Gonzaga compôs muitas liras para
seduzir sua musa, dando a ela o nome poético de Marília e chamando a si mesmo
de Dirceu.
Ando
já com o juízo,
Marília,
tão perturbado,
Que
no mesmo aberto sulco
Meto
de novo o arado.
Aqui
no centeio pego,
Noutra
parte em vão o cego;
Se
alguém comigo conversa,
Ou
não respondo, ou respondo
Noutra
coisa tão diversa,
Que
nexo não tem menor.
Que
efeitos são os que sinto?
Serão
efeitos de Amor?
Minha
Marília,
Se
tens beleza,
Da
natureza
É um
favor.
Mas
se aos vindouros
Teu
nome passa,
É só
por graça
Do
Deus do amor,
Que,
terno, inflama
A
mente, o peito
Do
teu pastor.
Mesmo
diante de sentimento tão arrebatador, algumas questões curiosas pairam no ar.
Uma delas é que em 1786 Tomás foi nomeado desembargador da Relação da Bahia, e
não é compreensível a presença dele em Minas Gerais ainda em 1789, quando a
Inconfidência Mineira foi denunciada. Por que não se casou e foi assumir o seu
cargo na Bahia durante todos esses anos? A explicação pode ter relação com seu
envolvimento na conspiração contra a Coroa portuguesa. E se Tomás demorou
tantos anos no namoro, por que marcou seu casamento às pressas quando soube que
estava ameaçado de prisão? O movimento foi denunciado por Joaquim Silvério dos
Reis em 15 de março de 1789. Em 20 de abril, Gonzaga procurou o visconde de
Barbacena, governador de Minas, e pediu licença para casar-se no dia 30 de
maio. O governador concordou e Gonzaga ficou tranquilo, acreditando que, com a
desculpa de que estava ocupado com o casamento, escaparia da acusação de
participar do movimento.
Quando os
inconfidentes foram denunciados e presos em maio de 1789, Maria Doroteia tinha
21 anos, e o namoro com Tomás já devia ter cerca de seis. Ele passou
ainda três anos preso no Rio de Janeiro, aguardando julgamento antes de ser
deportado. Durante esse período, escreveu na masmorra a segunda parte dos
poemas dedicados à musa Marília.
Nesta
cruel masmorra tenebrosa
Ainda
vendo estou teus olhos belos,
A
testa formosa,
Os
dentes nevados,
Os
negros cabelos.
Em
sentença de 20 de abril de 1792, Tomás Antônio Gonzaga foi condenado a dez anos
de degredo em Moçambique. Partiu do Brasil no dia 23 de maio e chegou a seu
destino no final de julho. Ele refez sua vida, e no depoimento para se casar,
no dia 9 de maio de 1793, com Juliana de Souza Mascarenhas, declarou “que nunca
dera palavra de casamento a pessoa alguma”. Com a esposa Juliana teve dois
filhos: Ana e Alexandre Mascarenhas Gonzaga. Adoeceu no final de 1809 e morreu
em Moçambique no início de 1810.
Maria Doroteia
continuava em Minas Gerais. A esta altura, tinha 42 anos e já vivera muitas
experiências na sua vida sem Tomás. Em algum momento, é provável que os fatos
mais importantes chegassem ao seu conhecimento, como o casamento do ex-noivo ou
sua morte. Durante sua vida longa, ocupou-se de assuntos da casa, obrigações
religiosas, demandas da família, realização de testamentos e inventários,
bordados, trabalhos domésticos e toda sorte de atividades atribuídas às
mulheres. Sobreviveu a vários parentes e entes queridos, como seu pai, o tio e
as tias que a criaram. Mesmo sendo a mais velha, foi a última dentre seus
irmãos a falecer. O abandono e o envelhecimento de Maria Doroteia repetem na
mulher a sina de uma Vila Rica já quase abandonada. Foram as duas escasseando
do ouro, da beleza, do tempo, da juventude, e se preservando do assédio dos
olhares externos.
A
fama dos poemas do livro Marília de Dirceu se
espalhava. Entre 1792 e 1810, ele foi reeditado sete vezes. A família real
portuguesa já estava vivendo no Brasil havia dois anos, e a edição de Marília de Dirceu de 1810 foi a primeira a ser
publicada no Brasil pela Imprensa Régia. A constante reedição do livro fazia
com que a fama da personagem Marília se propagasse e muitas pessoas fossem a
Vila Rica procurá-la. Queriam ver a mulher que inspirara o gênio poético de
Gonzaga. Uma popularidade que talvez soasse estranha para Maria Doroteia: ser
reconhecida por poemas escritos tanto tempo antes e por um amor que não se
concretizara.
Com a
morte do tio, Maria Doroteia se tornou herdeira e testamenteira. No inventário
de 1820, ele aparece como o “Exmo. Marechal de Campo João Carlos Xavier da
Silva Ferrão”. O tio deixou para ela todos os bens. O principal foi a
casa em que vivia, no Largo do Antônio Dias, em um terreno amplo. Ali ela
passou praticamente toda a sua vida. Da antiga casa do ouvidor, onde Tomás
morou quando chegou a Vila Rica, resta ainda uma perfeita visão, até hoje
conhecida como a casa de Marília, alimentando a imaginação das pessoas. Outro
prédio foi construído no local, abrigando atualmente a Escola Estadual Marília
de Dirceu.
Em 1836,
com 69 anos, ela providenciou e assinou seu testamento, que o tabelião aprovou
em 16 de maio de 1840. Dele constam como seus testamenteiros e herdeiros Dona
Francisca de Paula Manso de Seixas, que vivia com ela, e o Sr. Anacleto
Teixeira de Queiroga, residente no Rio de Janeiro. Maria Doroteia era madrinha
de batismo de Anacleto, mas alguns autores afirmam que ele era filho ilegítimo
dela com um homem chamado Dr. Queiroga. Essa história gerou polêmica entre
pesquisadores e descendentes da família de Maria Doroteia. Uns brigando para
manter intacta a imagem de pureza e virgindade da mulher que se tornou a musa
da Inconfidência Mineira; outros, pelo direito da mulher de reconstruir sua
vida com outro homem.
O debate
registrado em livros só teve início alguns anos depois da morte. O viajante
inglês Richard Burton, em Viagem do Rio de Janeiro a
Morro Velho, publicado pela primeira vez em Londres em 1869,
relata que lhe foi contado que “um certo Dr. Queiroga, Ouvidor de Ouro Preto,
teve a honra de suplantar o poeta Gonzaga, mas não com ternura legalizada. Em
Ouro Preto ela é hoje, talvez, mais conhecida como a Mãe do Dr. Queiroga”, que
seria Anacleto.
A
informação foi contestada posteriormente por Thomaz Brandão, um primo em quarto
grau de Maria Doroteia. Em 1932, ele publicou um livro também chamado Marília de Dirceu. A primeira preocupação do livro é
assegurar que ela morreu donzela. O primo afirma que Anacleto era filho do Dr.
Queiroga com Emerenciana, e que a irmã caçula de Maria Doroteia teria passado
toda a gravidez na fazenda de sua irmã Anna Ricarda. Quando o filho nasceu, foi
deixado na porta de um casal de amigos, que o criou como enjeitado, e Maria
Doroteia o batizou. A madrinha teria amparado a criação de Anacleto desde a
infância.
É
certo que Maria Doroteia também poderia ter ocultado uma gravidez e deixado o
filho na porta dos amigos, batizando o menino posteriormente. No mesmo período,
ela também andava pelos lados da fazenda, distante dos olhares curiosos de Vila
Rica, segundo o próprio primo vigilante da honra deixa escapar. Mas tudo são
suposições de versões conflitantes que, embora precisem ser conhecidas, jamais
poderão ser apuradas, pois repousam no baú dos segredos familiares.
Avançando
um pouco no tempo, encontramos no Jornal do Comércio do Rio
de Janeiro, na edição de 18 de janeiro de 1893, uma nota de falecimento:
“Faleceu o major Pedro Queiroga, neto de Marília de Dirceu, vítima de lesão
cardíaca.” A nota do final do século abre mais lacunas onde não foram fechadas
as anteriores.
Maria
Doroteia morreu aos 85 anos, no dia 10 de fevereiro de 1853. Morava com
Francisca na casa herdada do tio. Em seu testamento, deixou algumas missas
encomendadas para sua alma e um último pedido: ser sepultada na Igreja de São
Francisco de Assis. O pedido não foi atendido, pois foi sepultada na Matriz de
Nossa Senhora da Conceição.
A notícia
da morte foi publicada no Marmota Fluminense – Jornal de
Modas e Variedade, em nota assinada pela prima e poetisa
Beatriz Francisca de Assis Brandão, que diz: “Maria Dorothéa era dotada de
espírito vivo e elegância natural; tinha bons ditos, respostas prontas e
adequadas; lembranças felizes, que faziam apreciável sua conversação, sempre
adubada desse sal ático, que também a fazia muitas vezes temível, quando
propendia para o sarcasmo, que praticava com a maior graça e firmeza”. Vemos ampliar-se
à nossa frente a imagem de Maria Doroteia, diferenciando-a daquela frágil e
singela musa do poeta inconfidente. A prima descreve uma mulher de força e
atitudes próprias. Parece bem mais interessante vislumbrar a ideia de que
Gonzaga teria se apaixonado por uma mulher inteligente, além de bela, firme,
além de graciosa.
Com Maria
Doroteia sucedeu o mesmo que ocorre com os mitos: a morte serve para
fortalecê-los. É realmente difícil resistir ao brilho fulgurante do mito dentro
da história. Sua proporção e seu volume crescem quanto mais questões
indefinidas pairam sobre sua história, reverberando e propagando-os
infinitamente.
A
propagação do livro Marília de Dirceu ultrapassou
o período do Romantismo. Em 1944, o presidente Getulio Vargas repatriou os
restos mortais dos inconfidentes. Em 1955, os restos mortais de Maria Doroteia
foram retirados da Matriz de Nossa Senhora da Conceição e levados para o Museu
da Inconfidência, com o objetivo de ficarem com os de Gonzaga. Lá permanecem
para apreciação pública. Finalmente juntos os personagens líricos Marília e
Dirceu.
Em
julho passado, a prefeitura de Ouro Preto inaugurou um busto de bronze dedicado
a Marília de Dirceu. Colocado na antiga Casa do Ouvidor, tem duas faces
indefinidas e, no peito, o “Sonoro passarinho,” mensageiro do amor de Tomás
Antônio Gonzaga para sua musa.
Meu sonoro
Passarinho,
Se sabes do meu tormento,
E buscas dar-me, cantando,
Um doce contentamento,
Se sabes do meu tormento,
E buscas dar-me, cantando,
Um doce contentamento,
Ah!
não cantes, mais não cantes,
Se me queres ser propício;
Eu te dou em que me faças
Muito maior benefício.
Se me queres ser propício;
Eu te dou em que me faças
Muito maior benefício.
Ergue
o corpo, os ares rompe,
Procura o Porto da Estrela,
Sobe à serra, e se cansares,
Descansa num tronco dela,
Procura o Porto da Estrela,
Sobe à serra, e se cansares,
Descansa num tronco dela,
Toma
de Minas a estrada,
Na Igreja nova, que fica
Ao direito lado, e segue
Sempre firme a Vila Rica.
Na Igreja nova, que fica
Ao direito lado, e segue
Sempre firme a Vila Rica.
Entra
nesta grande terra,
Passa uma formosa ponte,
Passa a segunda, a terceira
Tem um palácio defronte.
Passa uma formosa ponte,
Passa a segunda, a terceira
Tem um palácio defronte.
Ele
tem ao pé da porta
Uma rasgada janela,
É da sala, aonde assiste
A minha Marília bela.
Uma rasgada janela,
É da sala, aonde assiste
A minha Marília bela.
Para
bem a conheceres,
Eu te dou os sinais todos
Do seu gesto, do seu talhe,
Das suas feições, e modos.
Eu te dou os sinais todos
Do seu gesto, do seu talhe,
Das suas feições, e modos.
O
seu semblante é redondo,
Sobrancelhas arqueadas,
Negros e finos cabelos,
Carnes de neve formadas.
Sobrancelhas arqueadas,
Negros e finos cabelos,
Carnes de neve formadas.
A
boca risonha, e breve,
Suas faces cor-de-rosa,
Numa palavra, a que vires
Entre todas mais formosa.
Suas faces cor-de-rosa,
Numa palavra, a que vires
Entre todas mais formosa.
Chega
então ao seu ouvido,
Dize, que sou quem te mando,
Que vivo nesta masmorra,
Mas sem alívio penando.
Dize, que sou quem te mando,
Que vivo nesta masmorra,
Mas sem alívio penando.
O culto
aos mitos não tem fim. Maria Doroteia morreu, mas Marília é imortal.
Ana
Jardim é
professora de Arte no Cefar – Fundação Clóvis Salgado e coautora de Marília de Dirceu? (Edição do autor, 2007).