STUART JEFFRIES - do
"GUARDIAN"
"Quando primeiro falei às
pessoas de minha ideia para este filme, riram de mim", conta Michel
Hazanavicius. "Amigos, atores, produtores --todos riram. Eles diziam 'ok,
ok, mas o que você quer fazer de verdade?'." O problema era que
Hazanavicius queria fazer um filme mudo, 70 anos depois de o cinema falado ter
tornado os filmes mudos comercialmente obsoletos e esteticamente ultrapassados.
É verdade que já houve alguns diretores que fizeram filmes mudos de vanguarda
(o canadense Guy Maddin, por exemplo), mas Hazanavicius não era dessa estirpe.
"Eu queria fazer um filme comercial charmoso. Mas ninguém achou que o
mercado estivesse preparado para isso. Os produtores disseram 'ninguém quer ver
um filme assim'." Mas as pessoas querem, sim. O filme sempre charmoso e
inventivo que Hazanavicius criou, "The Artist" --sobre um astro de
Hollywood dos anos 1920 que é eclipsado pelo cinema falado e pela jovem
dançarina por quem se apaixona-- está seduzindo as plateias internacionais.
"Eu não sabia disso, mas existe algo chamado o índice de satisfação.
Quando o filme estreou em Paris, as plateias reportaram índice de satisfação de
95%, sendo que 80% relatou alto nível de satisfação. Em Paris! Geralmente as
plateias de cinema francesas não expressam nada. Com certeza não
satisfação." Além disso, "The Artist" conquistou os críticos,
deu a seu astro, Jean Dujardin, o prêmio de melhor ator em Cannes, e, ao que
parece, reacendeu de tal maneira o sentimento de amor ao cinema do magnata de
Hollywood Harvey Weinstein que ele comprou os direitos do filme para os EUA e o
lançou em novembro nesse país, um timing que sem dúvida assinala a intenção do
produtor de lançar uma investida ao Oscar. Hazanavicius está feliz. "É
muito bom estar falando com você, mas até isto daqui já supera meus sonhos mais
loucos." Estamos conversando em uma suíte do hotel Dorchester, em Londres,
enquanto em salas adjacentes Dujardin e a mulher de Hazanavicius, Bérénice
Bejo, estão sendo entrevistados por multidões de cinéfilos --o tipo de cenário
de relações-públicas que acompanha a divulgação de um blockbuster de Hollywood.
"Nunca imaginei que este filme seria feito, e com certeza nunca imaginei
que atraísse tanta atenção." E os Oscar? "É fantástico, porque não
sei ao certo se existe algum caso de um filme francês ir para o Oscar fora da
categoria de filme em língua estrangeira. Imagine se ele ganhasse! Mas, para
mim, basta saber que estão prevendo que sejamos indicados. Mesmo isso já é uma
grande coisa. Agora estou achando que tudo é possível." Se "The
Artist" de fato triunfar nos Oscar, será em parte porque o filme de
Hazanavicius é uma carta de amor de Paris a Hollywood, depois de décadas
durante as quais o amor foi todo no sentido contrário. Há no filme, por
exemplo, um lindo sapateado com os dois protagonistas, que é uma espécie de
resposta tardia às cenas de Gene Kelly sapateando nos bulevares parisienses 60
anos atrás em "Sinfonia em Paris". "Sou um francês incomum: não
tenho absolutamente nada contra os Estados Unidos", diz o diretor.
"Os franceses são estranhos quando se trata dos Estados Unidos, eu
acho." Em nenhum lugar isso é mais verdade que em sua atitude em relação a
Hollywood, digo eu. As queixas de Jean-Luc Godard contra Steven Spielberg são
típicas do escárnio esnobe francês, e, enquanto os autores da nouvelle vague
francesa criaram arte, Hollywood criava produtos. "É um relacionamento
altamente incestuoso", diz Hazanavicius, "porque há tanto repulsa
quanto atração. Mesmo os diretores da Nouvelle Vague, como Godard, admiravam
John Ford, Alfred Hitchcock, Anthony Mann, Howard Hawks - muitos diretores de
Hollywood eram considerados autores. Acho que há uma contradição
presente." Maravilha. Mas por que Hazanavicius quis arriscar o suicídio
comercial e o escárnio da crítica, fazendo um filme mudo? O diretor de 44 anos
é mais conhecido por dois filmes franceses, sucessos comerciais, que parodiam
os filmes de espionagem: "Agente 117 - Uma Aventura no Cairo" e sua
sequência, "Lost in Rio", que fazem pelos serviços de segurança da
França o que "Johnny English" fez pelos britânicos. Mas Hazanavicius
diz que havia tempo queria ser mais que criador de pastiches parisiense e fazer
um filme que encarnasse seu amor pelo cinema mudo. Não a comédia de pastelão de
Harold Lloyd, Buster Keaton ou Charlie Chaplin, mas um filme que ecoasse as
conquistas de seus diretores favoritos do cinema mudo: Murnau, Pabst, Von
Stroheim, Lang e King Vidor. "Não era o pastelão que significava tanto
para mim, eram os melodramas. O que eu queria era compartilhar a experiência
sensual que eu tinha quando estava no cinema assistindo a 'Aurora', de
Murnau." O diretor conta que, quando era garoto, seu avô o levava ao
cinema Max Linder, no Boulevard Poissonière, que exibia filmes mudos nos
sábados e quartas-feiras. Mais tarde, ele viveu num apartamento no mesmo
edifício do cinema, como que gravitando em torno de seu primeiro amor. Sua
primeira mulher e seus dois filhos ainda vivem no apartamento. Mas foi na
cinemateca, do outro lado da cidade, que ele realmente aprendeu sobre o cinema
mudo. "Fui um ladrão", diz Hazanavicius. "Roubei o formato e fiz
um filme moderno com ele." Quando decidiu fazer "The Artist" e
convencer um produtor, Thomas Langmann, a contribuir com parte do orçamento de
US$ 12 milhões (cerca de R$ 22,3 mi) com dinheiro de seu próprio bolso, ele
tinha várias ideias diferentes como tramas possíveis. Em uma delas, a história
de seu herói acontecia em Berlim. "Gostei realmente disso, porque eu
poderia evocar o cinema expressionista alemão e traçar um paralelo entre a
chegada do som e a chegada dos nazistas ao poder. Mas, por uma questão de
cortesia com o público, decidi não fazer isso. Um filme mudo, em preto e
branco, francês - e com nazistas? Teria sido demais." Ao invés disso,
"The Artist" trata de George Valentin, um astro do cinema mudo de
Hollywood inspirado em Douglas Fairbanks, cuja carreira decai com a chegada dos
filmes falados. Mas Valentin não é uma Gloria Swanson, e o filme não é uma
tragédia. Ao invés disso, é um romance. Valentin se liga à estrela em ascensão
Peppy Miller, papel que é feito pela segunda esposa de Hazanavicius, a atriz
francesa, mas nascida na Argentina, Bérénice Bejo.
Como se faz um filme mudo em
2010? Afinal, os estúdios estão equipados para filmes em 3D, os atores são
programados para decorar falas, e dificilmente se vê uma orquestra ser
convidada para tocar a trilha sonora do filme ao vivo num fosso abaixo da tela
do cinema. "Não é tão difícil assim", diz Hazanavicius. "Não
existe um estilo de atuação próprio do cinema mudo." Mas Dujardin teria se
sentido perdido, inicialmente, porque costuma encontrar-se em um papel por meio
da voz do personagem. "Sim, ele ficou muito confuso num primeiro momento
porque não sabia como se preparar. Uma coisa que ajudou foi tocar música no set
que transmitisse aos atores o clima de cada cena. Usei muitos grandes
compositores clássicos de Hollywood --Hermann, Bernstein, Korngold, Waxman,
música de filmes como 'Crepúsculo dos Deuses' ou 'Laura' - para transmitir aos
atores o clima que eu buscava." Rodar um filme mudo também teve benefícios
para a equipe técnica, em sua maioria americana: ela não precisava manter
silêncio depois de Hazanavicius gritar "ação!". Os treinadores de
Uggy, por exemplo, o cãozinho que é o companheiro fiel de Valentin, podiam gritar
instruções durante as filmagens, sabendo que suas ordens de "senta!"
ou "se faça de morto!" não seriam ouvidas no filme final. Ninguém
esperava que "The Artist" fosse um sucesso, mas é, e por isso vem
servindo a Hazanavicius como cartão de visitas em Hollywood. "Agora estão
me mandando roteiros de filmes de época, como se é isso que eles acham que eu
faço. Se pensam que é só isso o que eu faço, mudarei. Só sei que a melhor
maneira de fazer merda é repetir o que você já fez, como se seguisse uma receita."
Mas uma das ofertas que ele recebeu veio do chefe de ficção da HBO. "Ele
disse que gostou de 'The Artist' e que ficaria feliz se eu tivesse uma ideia
para um seriado. Vindo do pessoal que fez 'The Sopranos', que para mim está no
nível de Dostoiévski, isso é muito lisonjeiro." Sugiro que "The
Artist" deve ter feito maravilhas pela reputação de Hazanavicius.
"Não me importo com minha reputação. As pessoas pensavam em mim como
parodiador, mas também sou coautor de um documentário sobre o genocídio de Ruanda.
Não sou esse sujeito neandertal que faz apenas um filme bom, embora isso já
seja suficientemente difícil. Tenho apenas uma obsessão: não ser
entediante." "The Artist" chega aos cinemas em 30 de dezembro.
Tradução de Clara Allain – do caderno
ILUSTRÍSSIMA – da FOLHA DE SÃO PAULO.