PAULO WERNECK – Editor da "ILUSTRÍSSIMA"
– da Folha de São Paulo.
Nesta entrevista, concedida em
novembro de 2012, num hotel em São Paulo, durante uma rodada de divulgação
promovida por sua gravadora, Caetano Veloso comentou algumas das canções de
"Abraçaço", seu mais novo álbum, que encerra a trilogia iniciada com
"Cê", em 2006, e depois com "Zii & Zie" (2009). Ele
fala mais demoradamente de "Um Comunista", canção de sabor épico
dedicada ao guerrilheiro baiano Carlos Marighella, que foi assassinado em 1969,
numa emboscada planejada pela ditadura militar. A canção presta uma homenagem
ao guerrilheiro, mas também toma distância em relação à luta armada e sobretudo
ao stalinismo. "Aquilo, naquele ambiente romântico do tropicalismo, da
contracultura, era muito atraente, era o que eu mais admirava em
política", diz Caetano. "Eu gostava de Marighella, e gosto até
hoje."
Folha - "Abraçaço" encerra a trilogia com a banda Cê, depois
de "Cê" (2006) e "Zii & Zie" (2009). Algum dos álbuns
fica como o seu preferido, está no seu coração de maneira mais funda?
Caetano Veloso - Um deles eu acho
criticamente mais coeso, que é o Cê. Não sei se ele está no meu coração de modo
mais fundo, porque ainda nem me acostumei direito com esse novo, mas sei que o
"Cê" é mais coeso. Mas é pra ser assim mesmo, porque compus aquelas
canções e planejei aquele disco antes mesmo de formar a banda. Depois [em
"Zii & Zie" e "Abraçaço"] é muito diferente, já tenho a
banda, estamos acostumados a tocar, e aí eu fiz canções. Então é uma coisa mais
solta do que aquele primeiro disco, que foi todo composto antes.
Antes da banda?
Antes da banda ser formada.
No entanto, parece um disco feito
ali, com a banda.
É incrível a resposta da banda,
porque no "Cê" eu fiz tudo no violão, mostrei a Pedro Sá e disse pra
ele me sugerir um baixista e um baterista, e ele sugeriu Marcelo e Ricardo. E
eu dizia até o que eu queria que a bateria fizesse, as linhas de baixo. Foi
muito assim, ali eu parti para um negócio que era mais ou menos como fiz agora
no disco da Gal []. Mas o "Abraçaço" é mais como "Zii &
Zie". Deixei fluir o que fosse, as canções, porque a banda já existe. Agora,
é muito rápido como eles pegam. Eu apresento um negócio, eles fazem, dá tudo
certo.
Mas o "Zii & Zie"
foi concebido junto com o público, em shows e num blog. Isso mudou a forma de
conceber o disco?
É, foi um negócio de botar na
internet. Foi ideia do [antropólogo] Hermano Viana, de botar também na
internet. Eu quis fazer um show semanal, e fiz, no Rio, apresentando canções
antigas, canções do "Cê" e, pouco a pouco, canções novas. Quando eu
disse que ia fazer isso, o Hermano disse: "Então a gente precisa
acompanhar na internet". Então nasceu aquele blog que acompanhou a feitura
do "Zii & Zie".
E o "Abraçaço", você
compôs no violão?
A canção "Um Abraçaço"
eu compus quando a gente já estava gravando, já tinha mais da metade gravada.
Eu compus e ainda terminei dentro do estúdio, botando letra em cima da base já
pronta.
Você disse que
"abraçaço" é a forma que você usa para se despedir dos amigos por
e-mail. Outra canção do disco, "Parabéns", também parece texto de
e-mail, uma canção recortada de um e-mail.
Aquele foi corta e cola, um
e-mail inteiro, desde o título, o "subject" dos e-mails. E o texto
era o texto do e-mail, até o "hehe" tem, foi o email do [diretor]
Mauro Lima para o meu aniversário de dois anos atrás.
A trilogia é marcada por canções
melancólicas, como "Desolação de Los Angeles", no primeiro disco, e
"Por quem?", no segundo. "Estou triste", do terceiro,
parece a mais triste de todas. Está difícil se livrar da tristeza?
É mais um negócio desse período
da minha vida, mas eu conheço tristeza desde sempre.
Desde que o samba é samba?
Desde que o samba é samba.
A primeira faixa do disco,
"A Bossa Nova é Foda", começa com João Gilberto, "o bruxo de
Juazeiro"...
Como se diz "o bruxo de Cosme
Velho", Machado de Assis.
Evoca um Rio mítico, do
Vinicius...
Tem o Vinicius...
e termina com Anderson Silva,
Vitor Belfort...
Começa com João Gilberto, tem o
Carlos Lyra, tem o Tom, tem o Vinicius e desemboca nos lutadores de MMA.
Mas como você conseguiu juntar
Anderson e João na mesma canção?
Cara, foi muito rápido, veio na
minha cabeça porque o João Gilberto gosta de luta.
Ah, é? Ele assiste?
Assiste. Ele era louco por boxe.
Caracterizou o estilo dele de ataque dos acordes e de escolha das divisões como
um golpe de caratê, quando voltou dos EUA, numa entrevista ao Tárik de Souza. E
gostava de ver boxe, era fã de Mike Tyson e seguramente assiste MMA. Mas isso é
o fato. Disso eu já gosto. O que eu acho também é que o MMA foi uma criação
muito brasileira, porque é uma mistura de lutas, de tipos de luta que nasceu com
os Gracie, em Belém do Pará.
É coisa nossa?
É mistura criada a partir do
Brasil, entendeu? Então nesse ponto tem um paralelo com a bossa nova. E tem um
desejo em toda a canção de fazer um retrato da bossa nova como gesto histórico
e estético agressivo. Não o clichê da coisa doce, e suave. Mas não é nenhuma
novidade, é apenas uma maneira de dizer. Essa canção é outra maneira de dizer
algo que vem sendo dito por mim, pelo Tom Zé, pelo Gil, por diversas pessoas há
muito tempo. Tom Zé tem um disco todo sobre isso, e tem muitas falas dele em
que ele apresenta a bossa nova como um gesto histórico de grande violência. E
eu gosto de dizer assim. Acho que também porque eu leio muito uns jornalistas
americanos, ingleses, que falam como se a bossa nova fosse um negócio mole,
doce. Eles estão errados.
Por outro lado, você adocicou o
funk, que é uma manifestação violenta, e misturou com Noel Rosa...
É, mas o Noel Rosa do tijolo na
testa.
A canção é um tijolaço na testa
da mulher.
É, eu gosto de brigar com mulher.
E "Um Comunista", sobre
o guerrilheiro Marighella, tem um refrão forte, que lembra o da música sobre a
base de Guantánamo...
É a música mais longa do disco.
Eu gosto desse refrão porque ele parece um três sobre uma base de quatro
tempos. Parece canção francesa sobre política, tem muito da tradicional canção
de protesto, essa longura, esse tom narrativo e explicativo, embora seja mais
complexa do que isso. E eu gosto que ela coincida com a chegada do livro, da
biografia [escrita pelo jornalista Mário Magalhães], com o filme da Isa
[Grinspum] e com a canção dos Racionais, que foi feita para o filme da Isa. Eu
não fiz por causa de nada disso, eu fiz também. E ela contrasta muito com a
música dos Racionais. E é interessante, porque ela é bem a canção de protesto
feita por artistas da classe média, tal como Chico Buarque comparou [em
entrevista a Fernando de Barros e Silva, na Folha, em 2006] quando disse que a
canção está desaparecendo e que o rap é uma manifestação... Aliás, o Chico e o
José Ramos Tinhorão coincidiram em dizer que o rap era a verdadeira canção de
protesto, porque era dita por eles mesmos [as classes baixas], como dizia o
Cacá Diegues a respeito dos filmes feitos pelos favelados sobre a favela.
Diferentemente de uma referência aos desfavorecidos por parte de um artista da
classe média, como era o caso na nossa geração, minha e de Chico. Então, nesse
caso, eu volto àquela força da canção de protesto de classe média, mas é uma
canção um pouco mais analítica, e também apresenta umas imagens que balançam a
cabeça do ouvinte.
O Mário Magalhães...
Eu estive com ele no Rio, nunca
tinha estado com ele, encontrei numa livraria.
Ele me mandou uma pergunta: por
que o Marighella, 43 anos depois da morte dele, parece provocar mais amor e
ódio do que nunca? Por que mexe tanto com as pessoas?
É curioso, parece que esse tempo
foi o tempo natural, histórico, de respiração para que essas coisas
aparecessem, o filme da Isa, o livro do Mário Magalhães, a música dos Racionais
e a minha canção. O Jorge Amado sonhou sempre que se fizesse um monumento a
Marighella em Salvador. Ele morreu com esse sonho. E é curioso, porque ele
apoiava o Antonio Carlos Magalhães no fim da vida, e no entanto ele queria um
monumento a Marighella em Salvador. Ele tinha muito orgulho do Marighella, que
naturalmente conheceu pessoalmente, porque eram do mesmo partido (Partido
Comunista Brasileiro). Só que o Marighella, no final, deixou a linha central do
partido, como todo mundo sabe, e deixou de obedecer às ordens de Moscou.
Aquilo, naquele ambiente romântico do tropicalismo, da contracultura, era muito
atraente, era o que eu mais admirava em política. Eu gostava de Marighella, e
gosto até hoje.
Vocês chegaram a ter relações
pessoais?
Nunca vi Marighella. Eu tinha uma
colega, Maria de Lourdes Mello Vellame, que foi guerrilheira junto com ele, que
era do Partido Comunista, saiu com ele, pra luta armada, foi presa, muito
torturada, causou uma impressão forte no Fleury, que era o torturador. Que ele,
numa entrevista que eu tenho guardada, tenho uma fotografia das páginas na
internet, ele se refere a ela como caso mais impressionante de resistência à
tortura. Ela era minha amiga, era minha colega na Faculdade de Filosofia. Ela
me pediu na época pra prestar apoio logístico à guerrilha de Marighella, e eu
fiquei mais ou menos inclinado a talvez fazer isso, se me fosse possível, se
soubesse como, porque eu o admirava, mas eu temia, possivelmente não chegaria a
fazer. Mas não sei, porque eu fui preso poucos meses depois, não por isso,
porque eles me prenderam sem saber disso. Só se sabe disso hoje, que na altura
só sabíamos disso a Lourdinha e eu. Só sabíamos os dois, a Dedé, minha mulher,
teve uma altura em que ficou sabendo.
Na canção, você conta um episódio
pessoal, do recado que enviou do exílio para o Brasil quando soube da morte de
Marighella, recado que ninguém entendeu...
Foi um texto que eu mandei para o
Pasquim. Porque nós estávamos em Londres, não fazia muito tempo que tínhamos
chegado, ainda no primeiro ano, e chegou uma revista Manchete, ou Fatos e
Fotos, uma revista da editora Bloch, foi um fotografo para nos fotografar no
exílio. Ele no fotografou, eu e Gil, em Londres, fez uma entrevista. A imprensa
brasileira era muito limitada pela censura, não podia-se dizer que gente estava
exilado, apenas Caetano e Gil estão em Londres, etc. E tal. E a capa dessa
revista era uma fotografia, eu e Gil, sorrindo, na frente do Big Ben, né, na
ponte de Waterloo. E num boxe, assim, no alto da página, a foto de Marighella
morto, que era a notícia de Marighella morto. Então mandei um texto para o
Pasquim, dizendo "A revista chegou e nós estamos na capa. E eu falava de
minha tristeza e de Gil, dizendo assim: nós estamos mortos. Ele está mais vivo
do que nós. Nem uma só pessoa das que viviam no Brasil e eram minha amigas e
que se correspondiam comigo, nem aquelas que conheciam essas, nem depois quando
voltei e mencionei, na cabeça de nenhuma pessoa passou. Eles morando aqui e tal
não sentiram o impacto que era ter eu e Gil e eu aparecendo na capa da revista
depois de exilados, sorrindo, e o Marighella morto. O texto todo era sobre
isso, sobre a capa da revista: "na capa duma revista....". Você vê
que quando a gente está fora, a gente não pode imaginar como é a cabeça das
pessoas que estão dentro, porque ninguém sacou. Eu recebi várias cartas de
gente dizendo: você está deprimido porque está aí, não sei quê, e de fato
estava, mas não tinha escrito isso porque eu tinha visto uma capa em que eu e
Gil estávamos sorrindo no exílio e o Marighella morto a tiros nas ruas de São
Paulo, e eu gostava de Marighella, então achei aquilo um negócio meio terrível,
assim. Escrevi e ninguém entendeu. É uma parte totalmente pessoal que aparece
na letra da canção, que se refere a esse fato.
E na canção você escreve: Não há
vida sem utopia/Assim fala um comunista. Você concorda nesse ponto com os
comunistas?
Mais ou menos. Eu já fiz uma
canção que falava disso: (canta) "Na maré da utopia, banhar todo
dia..." Eu digo que a pessoa deve se banhar todo dia, ou pelo menos uma
vez, na "maré da utopia". Foi o que eu disse nos anos 80. Eu não posso
dizer que eu seja comunista, nem mesmo um socialista. Eu fui mais no meu
pensamento socialista do que vim a ser depois. Muita gente fica especulando por
que que eu me interesso tanto pelo Mangabeira Unger, e eu falo nele e tal. É
que ele representa um negócio de esquerda muito exigente intelectualmente, mas
que leva em consideração o essencial do liberalismo.
Que vem a ser o quê, exatamente?
Uma ideia de liberdade e de
direitos. De uma certa forma é você poder colocar a ideia de liberdade no
mínimo à altura da ideia de igualdade, senão acima, no meu entender.