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quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Caetano Veloso fala sobre seu "Abraçaço"


PAULO WERNECK – Editor da "ILUSTRÍSSIMA" – da Folha de São Paulo.
Nesta entrevista, concedida em novembro de 2012, num hotel em São Paulo, durante uma rodada de divulgação promovida por sua gravadora, Caetano Veloso comentou algumas das canções de "Abraçaço", seu mais novo álbum, que encerra a trilogia iniciada com "Cê", em 2006, e depois com "Zii & Zie" (2009). Ele fala mais demoradamente de "Um Comunista", canção de sabor épico dedicada ao guerrilheiro baiano Carlos Marighella, que foi assassinado em 1969, numa emboscada planejada pela ditadura militar. A canção presta uma homenagem ao guerrilheiro, mas também toma distância em relação à luta armada e sobretudo ao stalinismo. "Aquilo, naquele ambiente romântico do tropicalismo, da contracultura, era muito atraente, era o que eu mais admirava em política", diz Caetano. "Eu gostava de Marighella, e gosto até hoje."
Folha - "Abraçaço" encerra a trilogia com a banda Cê, depois de "Cê" (2006) e "Zii & Zie" (2009). Algum dos álbuns fica como o seu preferido, está no seu coração de maneira mais funda?
Caetano Veloso - Um deles eu acho criticamente mais coeso, que é o Cê. Não sei se ele está no meu coração de modo mais fundo, porque ainda nem me acostumei direito com esse novo, mas sei que o "Cê" é mais coeso. Mas é pra ser assim mesmo, porque compus aquelas canções e planejei aquele disco antes mesmo de formar a banda. Depois [em "Zii & Zie" e "Abraçaço"] é muito diferente, já tenho a banda, estamos acostumados a tocar, e aí eu fiz canções. Então é uma coisa mais solta do que aquele primeiro disco, que foi todo composto antes.
Antes da banda?
Antes da banda ser formada.
No entanto, parece um disco feito ali, com a banda.
É incrível a resposta da banda, porque no "Cê" eu fiz tudo no violão, mostrei a Pedro Sá e disse pra ele me sugerir um baixista e um baterista, e ele sugeriu Marcelo e Ricardo. E eu dizia até o que eu queria que a bateria fizesse, as linhas de baixo. Foi muito assim, ali eu parti para um negócio que era mais ou menos como fiz agora no disco da Gal []. Mas o "Abraçaço" é mais como "Zii & Zie". Deixei fluir o que fosse, as canções, porque a banda já existe. Agora, é muito rápido como eles pegam. Eu apresento um negócio, eles fazem, dá tudo certo.
Mas o "Zii & Zie" foi concebido junto com o público, em shows e num blog. Isso mudou a forma de conceber o disco?
É, foi um negócio de botar na internet. Foi ideia do [antropólogo] Hermano Viana, de botar também na internet. Eu quis fazer um show semanal, e fiz, no Rio, apresentando canções antigas, canções do "Cê" e, pouco a pouco, canções novas. Quando eu disse que ia fazer isso, o Hermano disse: "Então a gente precisa acompanhar na internet". Então nasceu aquele blog que acompanhou a feitura do "Zii & Zie".
E o "Abraçaço", você compôs no violão?
A canção "Um Abraçaço" eu compus quando a gente já estava gravando, já tinha mais da metade gravada. Eu compus e ainda terminei dentro do estúdio, botando letra em cima da base já pronta.
Você disse que "abraçaço" é a forma que você usa para se despedir dos amigos por e-mail. Outra canção do disco, "Parabéns", também parece texto de e-mail, uma canção recortada de um e-mail.
Aquele foi corta e cola, um e-mail inteiro, desde o título, o "subject" dos e-mails. E o texto era o texto do e-mail, até o "hehe" tem, foi o email do [diretor] Mauro Lima para o meu aniversário de dois anos atrás.
A trilogia é marcada por canções melancólicas, como "Desolação de Los Angeles", no primeiro disco, e "Por quem?", no segundo. "Estou triste", do terceiro, parece a mais triste de todas. Está difícil se livrar da tristeza?
É mais um negócio desse período da minha vida, mas eu conheço tristeza desde sempre.
Desde que o samba é samba?
Desde que o samba é samba.
A primeira faixa do disco, "A Bossa Nova é Foda", começa com João Gilberto, "o bruxo de Juazeiro"...
Como se diz "o bruxo de Cosme Velho", Machado de Assis.
Evoca um Rio mítico, do Vinicius...
Tem o Vinicius...
e termina com Anderson Silva, Vitor Belfort...
Começa com João Gilberto, tem o Carlos Lyra, tem o Tom, tem o Vinicius e desemboca nos lutadores de MMA.
Mas como você conseguiu juntar Anderson e João na mesma canção?
Cara, foi muito rápido, veio na minha cabeça porque o João Gilberto gosta de luta.
Ah, é? Ele assiste?
Assiste. Ele era louco por boxe. Caracterizou o estilo dele de ataque dos acordes e de escolha das divisões como um golpe de caratê, quando voltou dos EUA, numa entrevista ao Tárik de Souza. E gostava de ver boxe, era fã de Mike Tyson e seguramente assiste MMA. Mas isso é o fato. Disso eu já gosto. O que eu acho também é que o MMA foi uma criação muito brasileira, porque é uma mistura de lutas, de tipos de luta que nasceu com os Gracie, em Belém do Pará.
É coisa nossa?
É mistura criada a partir do Brasil, entendeu? Então nesse ponto tem um paralelo com a bossa nova. E tem um desejo em toda a canção de fazer um retrato da bossa nova como gesto histórico e estético agressivo. Não o clichê da coisa doce, e suave. Mas não é nenhuma novidade, é apenas uma maneira de dizer. Essa canção é outra maneira de dizer algo que vem sendo dito por mim, pelo Tom Zé, pelo Gil, por diversas pessoas há muito tempo. Tom Zé tem um disco todo sobre isso, e tem muitas falas dele em que ele apresenta a bossa nova como um gesto histórico de grande violência. E eu gosto de dizer assim. Acho que também porque eu leio muito uns jornalistas americanos, ingleses, que falam como se a bossa nova fosse um negócio mole, doce. Eles estão errados.
Por outro lado, você adocicou o funk, que é uma manifestação violenta, e misturou com Noel Rosa...
É, mas o Noel Rosa do tijolo na testa.
A canção é um tijolaço na testa da mulher.
É, eu gosto de brigar com mulher.
E "Um Comunista", sobre o guerrilheiro Marighella, tem um refrão forte, que lembra o da música sobre a base de Guantánamo...
É a música mais longa do disco. Eu gosto desse refrão porque ele parece um três sobre uma base de quatro tempos. Parece canção francesa sobre política, tem muito da tradicional canção de protesto, essa longura, esse tom narrativo e explicativo, embora seja mais complexa do que isso. E eu gosto que ela coincida com a chegada do livro, da biografia [escrita pelo jornalista Mário Magalhães], com o filme da Isa [Grinspum] e com a canção dos Racionais, que foi feita para o filme da Isa. Eu não fiz por causa de nada disso, eu fiz também. E ela contrasta muito com a música dos Racionais. E é interessante, porque ela é bem a canção de protesto feita por artistas da classe média, tal como Chico Buarque comparou [em entrevista a Fernando de Barros e Silva, na Folha, em 2006] quando disse que a canção está desaparecendo e que o rap é uma manifestação... Aliás, o Chico e o José Ramos Tinhorão coincidiram em dizer que o rap era a verdadeira canção de protesto, porque era dita por eles mesmos [as classes baixas], como dizia o Cacá Diegues a respeito dos filmes feitos pelos favelados sobre a favela. Diferentemente de uma referência aos desfavorecidos por parte de um artista da classe média, como era o caso na nossa geração, minha e de Chico. Então, nesse caso, eu volto àquela força da canção de protesto de classe média, mas é uma canção um pouco mais analítica, e também apresenta umas imagens que balançam a cabeça do ouvinte.
O Mário Magalhães...
Eu estive com ele no Rio, nunca tinha estado com ele, encontrei numa livraria.
Ele me mandou uma pergunta: por que o Marighella, 43 anos depois da morte dele, parece provocar mais amor e ódio do que nunca? Por que mexe tanto com as pessoas?
É curioso, parece que esse tempo foi o tempo natural, histórico, de respiração para que essas coisas aparecessem, o filme da Isa, o livro do Mário Magalhães, a música dos Racionais e a minha canção. O Jorge Amado sonhou sempre que se fizesse um monumento a Marighella em Salvador. Ele morreu com esse sonho. E é curioso, porque ele apoiava o Antonio Carlos Magalhães no fim da vida, e no entanto ele queria um monumento a Marighella em Salvador. Ele tinha muito orgulho do Marighella, que naturalmente conheceu pessoalmente, porque eram do mesmo partido (Partido Comunista Brasileiro). Só que o Marighella, no final, deixou a linha central do partido, como todo mundo sabe, e deixou de obedecer às ordens de Moscou. Aquilo, naquele ambiente romântico do tropicalismo, da contracultura, era muito atraente, era o que eu mais admirava em política. Eu gostava de Marighella, e gosto até hoje.
Vocês chegaram a ter relações pessoais?
Nunca vi Marighella. Eu tinha uma colega, Maria de Lourdes Mello Vellame, que foi guerrilheira junto com ele, que era do Partido Comunista, saiu com ele, pra luta armada, foi presa, muito torturada, causou uma impressão forte no Fleury, que era o torturador. Que ele, numa entrevista que eu tenho guardada, tenho uma fotografia das páginas na internet, ele se refere a ela como caso mais impressionante de resistência à tortura. Ela era minha amiga, era minha colega na Faculdade de Filosofia. Ela me pediu na época pra prestar apoio logístico à guerrilha de Marighella, e eu fiquei mais ou menos inclinado a talvez fazer isso, se me fosse possível, se soubesse como, porque eu o admirava, mas eu temia, possivelmente não chegaria a fazer. Mas não sei, porque eu fui preso poucos meses depois, não por isso, porque eles me prenderam sem saber disso. Só se sabe disso hoje, que na altura só sabíamos disso a Lourdinha e eu. Só sabíamos os dois, a Dedé, minha mulher, teve uma altura em que ficou sabendo.
Na canção, você conta um episódio pessoal, do recado que enviou do exílio para o Brasil quando soube da morte de Marighella, recado que ninguém entendeu...
Foi um texto que eu mandei para o Pasquim. Porque nós estávamos em Londres, não fazia muito tempo que tínhamos chegado, ainda no primeiro ano, e chegou uma revista Manchete, ou Fatos e Fotos, uma revista da editora Bloch, foi um fotografo para nos fotografar no exílio. Ele no fotografou, eu e Gil, em Londres, fez uma entrevista. A imprensa brasileira era muito limitada pela censura, não podia-se dizer que gente estava exilado, apenas Caetano e Gil estão em Londres, etc. E tal. E a capa dessa revista era uma fotografia, eu e Gil, sorrindo, na frente do Big Ben, né, na ponte de Waterloo. E num boxe, assim, no alto da página, a foto de Marighella morto, que era a notícia de Marighella morto. Então mandei um texto para o Pasquim, dizendo "A revista chegou e nós estamos na capa. E eu falava de minha tristeza e de Gil, dizendo assim: nós estamos mortos. Ele está mais vivo do que nós. Nem uma só pessoa das que viviam no Brasil e eram minha amigas e que se correspondiam comigo, nem aquelas que conheciam essas, nem depois quando voltei e mencionei, na cabeça de nenhuma pessoa passou. Eles morando aqui e tal não sentiram o impacto que era ter eu e Gil e eu aparecendo na capa da revista depois de exilados, sorrindo, e o Marighella morto. O texto todo era sobre isso, sobre a capa da revista: "na capa duma revista....". Você vê que quando a gente está fora, a gente não pode imaginar como é a cabeça das pessoas que estão dentro, porque ninguém sacou. Eu recebi várias cartas de gente dizendo: você está deprimido porque está aí, não sei quê, e de fato estava, mas não tinha escrito isso porque eu tinha visto uma capa em que eu e Gil estávamos sorrindo no exílio e o Marighella morto a tiros nas ruas de São Paulo, e eu gostava de Marighella, então achei aquilo um negócio meio terrível, assim. Escrevi e ninguém entendeu. É uma parte totalmente pessoal que aparece na letra da canção, que se refere a esse fato.
E na canção você escreve: Não há vida sem utopia/Assim fala um comunista. Você concorda nesse ponto com os comunistas?
Mais ou menos. Eu já fiz uma canção que falava disso: (canta) "Na maré da utopia, banhar todo dia..." Eu digo que a pessoa deve se banhar todo dia, ou pelo menos uma vez, na "maré da utopia". Foi o que eu disse nos anos 80. Eu não posso dizer que eu seja comunista, nem mesmo um socialista. Eu fui mais no meu pensamento socialista do que vim a ser depois. Muita gente fica especulando por que que eu me interesso tanto pelo Mangabeira Unger, e eu falo nele e tal. É que ele representa um negócio de esquerda muito exigente intelectualmente, mas que leva em consideração o essencial do liberalismo.
Que vem a ser o quê, exatamente?
Uma ideia de liberdade e de direitos. De uma certa forma é você poder colocar a ideia de liberdade no mínimo à altura da ideia de igualdade, senão acima, no meu entender.